Uma breve leitura sobre a história social da infância
no Brasil revela que o tratamento dispensado às crianças,
teve um forte componente discriminatório.
As recentes e recorrentes matérias publicadas não só
pela imprensa local, como também por revistas de circulação
nacional, abordando graves situações de violência sexual
cometidas contra crianças e adolescentes, com destaque à
''polêmica'' entrevista concedida ao repórter do O POVO pela
jovem de iniciais P.A.T. (caso de Santana do Acaraú), traz à
tona uma das questões mais difíceis de abordagem dentro do
universo cultural brasileiro, principalmente quando atinge diferentes categorias
historicamente estigmatizadas, desqualificadas e exploradas.
É importante compreender como a sociedade brasileira construiu
os conceitos de infância, sexualidade e violência e entender
de que forma estes temas são na maioria das vezes tratados sem qualquer
profissionalidade ou competência, até mesmo como se não
fossem questões intrinsecamente ligadas a um contexto histórico
social que nunca valorizou o papel da mulher.
Uma breve leitura sobre a história social da infância no
Brasil revela que o tratamento dispensado às crianças (especialmente
''as meninas''), teve um forte componente discriminatório e de não
reconhecimento de direitos. A natureza e a identidade da infância
no nosso País foi construída na base de estigmas e preconceitos
(''enjeitados'', ''expostos'', ''pivetes'', ''meninos de rua'', ''sem vergonha'')
percebidos pelos gestores públicos no conjunto das políticas
como portadores de necessidades. Pena e compaixão ou medo e revolta
- se constituem sentimentos contrapostos presentes nas diferentes abordagens
e/ou intervenções direcionadas a esse segmento populacional.
Os recentes acontecimentos da cidade de Santana do Acaraú se tornam
emblemáticos, sobretudo por revelar dois aspectos fortemente impregnados
na nossa cultura:
a) A aceitação social do poder que o adulto exerce sobre
a criança (no caso específico, um padre ''autorizado'' socialmente
a usar de seu poder para ''proteger'' as meninas); e b) As meninas abusadas
e violentadas se transformam de ''vítimas'' em ''rés'' e
toda a sociedade passa a rejeitá-las.
A naturalização do fenômeno da violência ultrapassa
todos os limites éticos. É mais fácil apontar que
as meninas são culpadas, afinal elas ''consentiram''... ou dizer
que a imprensa é sensacionalista por ter exposto um depoimento triste
de uma menina vítima de violência. A ideologia machista de
gênero que autoriza o exercício do poder/força de um
adulto sobre crianças/adolescentes não pode se constituir
um elemento explicativo para as situações em que meninas
são vitimizadas sexualmente. Basta! As nossas crianças e
adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual
não podem continuar sendo duplamente punidas: a) Pelo violentador/agressor;
e b) Por uma rede de silêncio, de conivência, de medo e de
impunidade ou por uma rede de hipocrisia e de falsa proteção.
A questão da violência sexual que teve maior visibilidade
a partir da década de 90, com a promulgação do Estatuto
da Criança e do Adolescente, passou a ser incluída na agenda
da sociedade civil e na luta nacional e internacional pelos direitos humanos
- o tema deve ser tratado dentro de um padrão civilizatório
- e requer o envolvimento de todos - família, Estado e sociedade
para o enfrentamento de tão complexo problema que pressupõe
mudanças na natureza estrutural da pobreza/desigualdade social (que
criam espaços apropriados à exploração) e de
mentalidade que passe a incorporar novos valores ao papel sexual masculino
e feminino da sociedade brasileira.
Redefinir o papel das políticas públicas no processo de
desenvolvimento integral de crianças e adolescente, sobretudo aquelas
vítimas de violência sexual passa pelo reconhecimento de que:
a) Falta investimento para formação e capacitação
de profissionais que devem atuar de forma competente nesta área;
b) Falta estrutura nos hospitais públicos para o atendimento
especializado as vítimas de violência sexual;
c) Falta estrutura nas escolas públicas e particulares para a
abordagem e denúncia dos casos de violência (trabalho de prevenção);
d) Ausência de serviços sociais de atendimento as vítimas
para o necessário apoio psicossocial e terapêutico;
e) Ausência de locais adequados para acolhimento das vítimas;
f) Há necessidade de intervenção em redes de proteção,
articulando com todas as políticas setoriais, com reforço
ao papel da família;
g) Deve ser realizado um trabalho com a mídia para formação
e informação qualificadas;
h) É necessário o melhor aparelhamento e equipamentação
dos órgãos de segurança e dos IML's para atendimento
as vítimas;
i) Deve ser fortalecida a ação das ONG's que atuam, complementarmente,
nesta área;
j) Há necessidade de unificação dos dados de violência,
e realização de diagnóstico sobre os casos de abuso
e de exploração sexual para melhor articular os serviços
de denúncias, notificação e atendimento.
Estes são apenas alguns dos desafios a serem superados e que
demandam uma séria intervenção pública. Desafios
que devem ir além dos discursos ou das promessas, afinal há
mais de três séculos que as nossas crianças precisam
ser tratadas com mais respeito em nosso País!
Graça Gadelha é socióloga e coordenadora
do Pommar/Usaid-CE
O POVO - 09 de fevereiro de 2002
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