A construção da Calçada

Devido ao tratado de  Santo Ildefonso em 1777, onde foram revistos todos os limites da colônia, fizeram-se necessárias novas equipes de demarcação. Assim, nesta época, foram enviados vários engenheiros militares ao Brasil.

Na nau em que veio de Portugal Bernardo José de Lorena estava João da Costa Ferreira, engenheiro militar com vasta experiência em obras civis e militares. Destacou-se em Portugal nas obras da reconstrução de Lisboa e em obras de edifícios públicos como hospitais, museus e laboratórios. No Brasil, foi o que mais se destacou entre os engenheiros enviados, principalmente devido à sua contribuição à capitania de São Paulo.

Veio inicialmente para trabalhar em demarcações no Rio de Janeiro, mas sendo estas obras paralisadas, destinou-se a São Paulo junto com Bernardo de Lorena, onde chegou a 4 de julho de 1788.

Entre outros trabalhos, levantou o mapa da costa da capitania, tombou as matas reservadas às construções reais, preparou o palacete, a alfândega e o hospital de Santos além da calçada da Serra de Paranapiacaba, a “Calçada do Lorena”.

Contava com a ajuda de um auxiliar: Antônio Rodrigues Montesinhos, cuja formação se deu na “Aula Militar” do Rio de Janeiro.


Carta Corohidrográfica da Capitania de São Paulo -  João da Costa Ferreira, 1789 - fonte: www.novomilenio.inf.br 

 

A ligação entre São Paulo e Santos compreendia três trechos distintos: o de planalto até o Rio das Pedras, o de Serra até o Cubatão e o da baixada, com seu emaranhado de rios e canais. Para o primeiro e último trecho havia a alternativa de navegação. O problema consistia no trecho de serra. Para tal, Bernardo de Lorena contou com a experiência de João da Costa Ferreira e seu auxiliar.

As obras iniciaram-se em 1790 e foram finalizadas em 1792. Para financiar a construção, foram tomados indevidamente como empréstimo  2:820$172 (dois contos, oitocentos e vinte mil, cento e setenta e dois réis) do Cofre dos Ausentes, proveniente de heranças (Mendes, pág 48). Lorena teve que justificar esse empréstimo indevido à Coroa e restituir o dinheiro.

O engenheiro responsável pela construção da Calçada, João da Costa Ferreira, e seu ajudante,  Antônio Rodrigues Montesinhos, encontraram como desafio transpor mais de 700 metros de desnível na Serra, em região de mata densa, e de altos índices pluviométricos.  Para tal, utilizaram uma técnica ainda nova na capitania de São Paulo para a construção de estradas: a cantaria. A pedra foi utilizada na pavimentação, na construção de muros de arrimo e de proteção junto aos despenhadeiros e nos canais pluviais da Calçada. No entanto, ainda era difícil a mão-de-obra especializada neste tipo de serviço, tanto que cartas relatam que o engenheiro Ferreira trabalhou por muitas vezes como mestre-de-obras na serra, devido à carência deste tipo de profissional.

 

 

A construção da Calçada do Lorena retratada em painel de azulejos no monumento "Cruzeiro Quinhentista", em Cubatão, de autoria de Wash Rodriguez

 

A mão-de-obra era obtida de escravos cedidos à obra por devedores à capitania, indígenas, pessoas marginalizadas recrutadas, soldados, marinheiros e desocupados capturados a noite em rondas policiais. Assim, havia desinteresse em desenvolver e aprimorar técnicas profissionais (Mendes, pág 51).

Não há documentos que relatem o dia-a-dia da construção da calçada, mas sabe-se que houve grande rotatividade de mão-de-obra devido às condições ásperas de trabalho da Serra do Mar e ao desinteresse dos operários na construção.

É incerto o local de origens do material da construção utilizado, as pedras. Provavelmente vieram de pedreiras de Santos (pedreira São Bento já ativa da época) ou da própria Serra do Mar e arredores. No entanto, um único documento relata que “vieram (as pedras) de longas distâncias”.

 

Tudo indica que a Calçada do Lorena foi projetada e construída no mesmo local onde antes havia o caminho do mar, que foi precariamente reformado por Martins Lopes Lobo de Saldanha, governador que antecedeu Lorena em 2 mandatos. Lorena já encontrara o caminho todo precário, apesar das cartas de Saldanha enaltecendo sua reforma que tornaria o caminho o “melhor de toda a América”.  É certo que houve um projeto em carta topográfica, já que nos documentos escritos por Lorena, o mesmo anexa as tais cartas do caminho, as quais se perderam.

Fato curioso é o apresentado em uma carta que Bernardo de Lorena escreve ao sargento-mor da vila de Santos, Francisco Aranha Barreto, em 1789, onde o governador envia um índio para traçar o caminho na serra. Provavelmente, este índio indicou o melhor traçado do caminho na Serra para os construtores. 

Foto de Satélite da região da Baixada Santista, onde é possível observar a região da Serra do Mar onde a Calçada do Lorena a transpõe.

 

Ampliação da foto anterior na região da Serra do Mar onde a Calçada do Lorena a transpõe.

 

A Calçada do Lorena está assentada em uma das cristas da Serra do Mar, sem grandes acidentes geográficos e relativamente longe de fontes e leitos d’água. Essa localização foi estrategicamente escolhida a fim de preservar o caminho das grandes cheias e tornar a travessia da Serra do Mar com menos percalços. O traçado ocupa a crista do divisor de águas na maior parte do percurso e quando sai desta, posiciona-se a meia encosta, no lado norte do espigão. Essa posição não é aleatória: o lado norte, além da maior insolação, está protegido dos ventos e das chuvas provenientes do sul.

 

No trecho de planalto, entre o Rios das Pedras e o Monumento do Pico, a construção da Calçada ocasionou cortes e aterros de menores dimensões, com a finalidade de proteger a estrada de inundações e suavizar seu traçado. Possui perfil abaulado e largura entre 3,20 a 4,2 metros e a diferença de nível entre os bordos da estrada e seu centro está entre 10 e 125 centímetros.

Segundo TOLEDO, não há seixos rolados na composição da pavimentação da Calçada, o que exclui, segundo o referido autor, a possibilidade das pedras provirem de rio. Isso reforça a hipótese que vieram de uma pedreira de Santos.

O mesmo autor identificou uma uniformidade na dimensão das pedras utilizadas na pavimentação (TOLEDO, pág. 126):

  • Na faixa central: largura entre 60 e 80 cm;

  • Duas faixas laterais de pedras menores e menos regulares que as da faixa central;

  • Duas faixas de bordo de pedras mais volumosas e com face superior voltada ao centro

Talude em trecho a meia encosta no setor planalto da Calçada do Lorena

Desenhos da seção da Calçada do Lorena na região do planalto. (in TOLEDO, pág 130)

 

 

Desenho da seção da Calçada do Lorena na região de serra. (in TOLEDO, pág 131)

 

O alto índice pluviométrico da região formava grandes enxurradas que desciam a serra em grande velocidade. Se a Calçada não fosse dotada de um sistema de captação, transporte e dissipação dessas correntes, não duraria um único verão. Assim, no trecho de serra a Calçada foi projetada de maneira tal que seu perfil tivesse a forma de um "V", concentrando as correntezas de águas pluviais no meio da Calçada, evitando-se o assoreamento das bordas da mesma. Assim, as  pedras que se encontram no centro do leito são maiores e mais resistentes, o que garante sua estabilidade quando da passagem das correntes pluviais. Nos cotovelos, havia caixas de dissipação de energia onde as correntes de água eram desviadas para fora da Calçada.

 

Calçada do Lorena, na região de Serra

 

 

Foram construídos muros de contenção de até 15 metros de comprimento e parapeitos nos precipícios. Os parapeitos não existem mais.

 

Gravura de Hercules Florence representando a calçada do Lorena na região do Pico, onde é visível um parapeito de proteção 

 

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