"Mon
Animal"
(Elisa Lucinda)
Eu
a vejo quase todas as manhãs.
Não é exatamente bonita.
Aliás ela é de uma feiúra estranha como
se carregasse uma boniteza espalhada
em si, nos gestos e não nos traços exatamente.
Não importa.
Importa é que a vejo acompanhada perenemente pelo seu
cão.
Um pastor alemão com cara de bom companheiro.
E o é. Eu vejo. Olha-a muito, encaixa seu focinho entre
os joelhos dela,
brinca com ela, gane querendo dengo.
Ela também, essa minha vizinha de uns quarenta e vividos
anos, brinca de
não-solidão com esse cachorro específico;
gosta dele, ri: Não Duque, assim
não, deixa o moço, Duque, me espere.
Não vá na minha frente assim, cuidado com o
carro, menino. Ele a olha como
quem agradece.
E vão os dois, não em vão, pelas ruas
de Copacabana sob o sol, felizes que
só vendo.
Eu vejo. Ela é camelô; nos encontramos no elevador
e eu:
- Vocês se divertem tanto, é tão bonito.
- É, nos conhecemos na rua. Ele olhou pra mim bem nos
meus olhos. Eu estava
trabalhando.
Vi logo que era um cão bem cuidado fisicamente mas
faltava-lhe carinho.
Deixei minhas bugigangas (ela vende coisas que querem imitar
jóias antigas)
por não sei quanto tempo e fiquei agachada na calçada
na Avenida Nossa
Senhora, só namorando ele.
Decidimos que ele viveria comigo. Naturalmente.
Tudo aconteceu "naturalmente", ela frisou, como
se quisesse dissipar de mim
qualquer sombra de suspeita de um possível roubo. Noutro
dia no mesmo
elevador, ela com seu carrinho de balangandãs, eu e
Duque.
O elevador apertado e ela continuou femininamente a conversa
do último
elevador nosso:
- Tenho certeza que ele é de câncer. É
muito sensível. Só falta falar.
Né Duque? ... ele não é lindo? Eu disse:
Lindíssimo. E você que signo é?
- Ah, sou capricórnio mas com ascendente em câncer,
combina sim.
Eu vejo Duque lambendo as mãos dela, as magras mãos
cujos dedos ela oferecia
de propósito e distraidamente a imordida dele.
Eu olho admirando receosa por conta dos afiados dentes dele.
Quase não entendo de cães.
Você tem medo... ô não ofenda ele; Duque
entende pensamentos e não gostou do
que você pensou. Jamais me morderia, jamais me trairia.
Né Duque? Senti o
pensamento de Duque latindo que jamais a trairia.
Achei bonito.
Chegamos.
Tchau, bom trabalho.
Tchau Duque. Fui para a rua pensando longamente nos dois.
Depois pensei nos
mistérios da astrologia e perdi o fio do meu pensamento.
Ao final da tarde avistei pela janela Duque e Angela indo
ver o crepúsculo
na praia.
Depois vi os dois voltando sorridentes e caninos, sob a noite
estrelada; ela
com fitas de vídeo penduradas ao braço; sempre
conversando com ele.
Tenho inveja de Angela. This is the true. O animal que eu
quero não mora
comigo, não almoça mais comigo, não brinca
mais, não me telefona, não me
advinha os pensamentos, não me acompanha ao crepúsculo,
não gane querendo
dengo, nossos signos parecem não mais
combinar.
O animal que quero, pensa demais e por isso não passeia
mais comigo.
E o pior: Não me lambe mais.
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