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Boletim Mensal * Ano VII* Setembro de 2008 * Número 63 |
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FADO TAMBÉM É CULTURA (21)
Alfredo Antunes
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Amigos! No mês
passado, deixei vocês na Mouraria do Séc. XIX, em plena época do Romantismo e
Ultra-romantismo português. Temos agora em mãos os principais elementos para
explicar o triste ambiente moral e sócio-psicológico, que a fadistagem da época
reflete. Já falamos do “Fadista”- o anti-herói da Mouraria. Falamos dos
temas românticos que agravavam ainda mais os temas fadistas. Um dos mais cruéis,
insistimos, era o da mulher “desonrada” à força de tanto amar! Diz uma
desgarrada da época: ”Anda cá mulher perdida/ Que eu te quero abraçar/ Na
flor da tua vida/ A honra te fui roubar”. Ao que a desditada responde:
“Por ti a quem tanto amei/ Fui desprezada, esquecida/ Hoje vivo lamentando/ A
minha honra perdida”. Este tema da “desonra da mulher” é tão recorrente nos
fados desses tempos, que quase não há orgia fadista onde ele não caia. Era o que
se chamava de “poesia da desgraça”. Um dos fados mais antigos que se conhece já
dizia: “Quem tiver filhas no mundo/ Não fale das desgraçadas,/Porque as
filhas da desgraça/ Também nasceram honradas”. Repare-se que, por de trás
deste ‘conselho, parece subentender-se que ninguém é desonrado por que quer. Ou
seja, subentende-se que é o Destino que traça as nossas linhas da vidaEra
tão indecente que, já no século anterior, chegou a ser proibido pelo
Rei Dom José, como atesta um autor da época (A.Pimentel). E o mesmo autor
revela que a Severa (com o seu 13º. Conde de Vimioso à tiracolo) ia amiúde para
as “esperas de touros”(daqui, o chamado “Fado das esperas”) e ,
“naqueles ambientes excitantes, no calor das noitadas, ao luar e ao relento,
cantava fados gaiatos, cantigas a ‘atirar’, irônicas, picantes, desafiando as
outras Cantadeiras menos famosas”. E por falar em cantigas a ‘atirar’, ou
ao ‘desafio’ (ou, se menos agressivas, à “desgarrada’), ficou célebre uma destas
orgias que a ‘Cesária’ (uma das maiores Cantadeiras de sempre) sustentou com uma
tal ‘Luzia Cigana’, num desses ambientes “fora de portas”,a qual durou dois dias
e uma noite!Mais: havia pela Mouraria (sobretudo no “Café da Quitéria”) orgias
fadistas deste gênero que chegavam a durar três e quatro dias seguidos! (Sem
dúvida que, durante tais delírios, se punha em boa prática aquele verso do poeta
Horácio: Nunc est bibendum!; ou, em bom português: é hora de beber,
malandragem!). Este Fado batido (com suas formas cantadas ao
Desafio e, quando menos agressivas, repito, à Desgarrada) chegou a
ser tão popularizado por todos os ambientes de Lisboa que, já antes, em 1789, um
senhor branco exclamava com desgosto: “Chegou a minha casa a ser Senzala”.
Foi deste “aparar o fado” que nasceu o termo “faia” (referência à árvore
faia, que é alta e esbelta, e se segura firme) o qual, com o tempo,
passou a ser sinônimo, na gíria fadista, de elegante, janota e bem aprumado).
Na 2ª. metade do século, porém, quando o fado ganhou, enfim, dignidade e
nobreza, este “faia” passou a assumir o lugar daquele antigo “fadista” - de tão
triste lembrança! É nesta fase também que, como veremos, o Fado – enquanto
intermezzo cantado dentro das danças – atingirá sua completa
autonomia como canção e constituirá a grande base musical e expressiva do nosso
Fado de hoje.Mas voltemos aos tempos da Severa e da malandragem.“Bater e cantar
o Fado” passou a ser uma onda tão avassaladora que, logo, a fidalguia boêmia
aderiu. Primeiro foi o Conde de Marialva – o lendário ícon das touradas reais.
Mais tarde foi o Conde de Vimioso que, aos 20 anos de idade, se embrenhava pelas
baiúcas da Mouraria, acompanhado dos, também jovens, Conde de Castelo-Melhor,
Conde de Anadia e D. José de Almada e Lencastre (este, filho do Conde de Souto
d’El Rei e parente da nossa querida Comadre Maria do Carmo Lencastre...).
Sabemos que eles estroinavam nas noitadas da Mouraria, para cantar e bater o
fado e, depois, amar as Cantadeiras. Sobre o D. José de Almada e Lencastre, diz
um seu conterrâneo que: “foi o primeiro entre os mais notáveis cantadores de
fado, que cantava de uma maneira verdadeiramente comovedora!”. (Mas não se
constranja, Comadre Maria do Carmo! Sabe-se que o próprio Dom Miguel,futuro Rei,
“batia o fado”, com sua turma, quando moço...). Até à próxima!
! Assim cantava a Severa: “Tenho vida amargurada/Ai que
destino infeliz!/ Mas se eu sou tão desgraçada/ Não fui eu quem assim quis”.
A Severa tinha razão, como razão tinha o nosso Bocage quando, mais de cem anos
antes, já escrevia: “Que eu fosse enfim desgraçado,/ Escreveu do Fado a mão;/
Lei do Fado não se muda,/ Triste do meu coração! Na primeira metade do Séc.
XIX, como disse, o Fado-canto era sempre integrado na dança. Já falamos na
“dança – ou fado – de umbigada”, que foi evoluindo para outras formas. Uma
delas (também chamada de “chegança”) era a dança – ou fado – “de aparar”,
que se popularizou definitivamente como “Fado batido”. Pinto de Carvalho,
que chegou a vivenciar este “fado batido” na juventude, descreve-o da seguinte
maneira: “É um tipo de dança ou meneio em que entram duas ou três pessoas:
uma que apara (ou, às vezes duas) e que deve estar quieta e o mais firme
possível, e outra que bate , dando regularmente as pancadas com a parte
anterior das coxas nas coxas do que apara, e meneando-se com requebros
obscenos”. Já podem imaginar, caros Amigos, como seria esta dança e este
nosso pobre “Fado”!