Volta à Literatura

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Pelo Amor de Deus

1º Ato

Ricardo entra numa lanchonete e senta-se ao lado de Cristina. Os dois são jovens, de aproximadamente 20 anos, muito bonitos. Não se conhecem ainda. Ricardo tenta iniciar conversa.
Ricardo: - Com licença (ao sentar-se). Calor insuportável, não?
Cristina não responde.
Ricardo: - Desculpe-me. Você deve ser tímida e estou a importuná-la.
Cristina: - Não sou tímida, é que não sou de ficar dando atenção a qualquer um na rua.
Ricardo: - Você está certa. Não deve mesmo conversar com qualquer um, que já me disseram que esse fulano não presta. Ainda bem que eu não sou qualquer um, meu nome é Ricardo, e você? Como se chama?
Cristina acaba por rir e fala baixinho seu nome. Ricardo a cumprimenta e depois os dois se quedam em silêncio, um admirando a beleza do outro, ela se furtando ao olhar mais incisivo dele. Ricardo quebra o gelo:
Ricardo: - Será que posso pedir o número do seu telefone para conversarmos depois..
Cristina: - Não sou uma garota qualquer para dar meu telefone a uma pessoa que sequer conheço.
Ricardo: - Eu só quero falar com você. Como pode saber se sou uma pessoa interessante se não der a você mesma a chance de me conhecer?
Cristina: - Meu pai sempre me diz, boas palavras, más intenções. Você tem um jogo de palavras incrível, mas não vou lhe dar meu telefone, seja quais forem seus argumentos.
Ricardo então escreve o número do seu telefone e entrega a ela.
Ricardo: - Talvez esta seja uma atitude inútil, de qualquer maneira, eis meu número de telefone, peço que me ligue.
Cristina pega o papel. Ela já findou o lanche, levanta-se para sair e se despede de Ricardo.

 

 

 

2o Ato

Ricardo está em casa conversando com um amigo.
Ricardo: - João, hoje conheci uma menina linda, de beleza indescritível. O rosto dela foi tomado daquelas bonequinhas de louça, o corpo esculpido por um artista grego depois de transar com Afrodite.
João: - Você ficou maluco? Que entusiasmo todo é este? Ela lhe "deu mole"?
Ricardo: - Não, mas eu deixei o meu número de telefone com ela.
João: - Ah, você lhe deu o telefone! (falando em tom de deboche.) Da maneira como você falou, pensei que ela estava caindo de amores por você. Ela aceitou o seu telefone apenas por uma questão de educação.
Ricardo: - É que ela não quis me dar o número do telefone.
João: - Então ela não está interessada e não vai ligar.
Ricardo: Você tem razão. É uma pena. Ela é a mulher mais linda que eu já vi. Coxas roliças e colo liso e sedoso. O pescoço é firme, longo e imponente, sorriso aberto, rosto marcante. Cabelos negros que caem como a noite sobre o seu rosto. Olhos grandes, atentos e sinceros, nariz pequeno e discreto. Tudo encaixado com harmonia, métrica e rima, sem contradições. Beleza sem enfeites, forte, natural. Embriagou-me.
João: Você realmente enlouqueceu, está falando como se fosse um poeta.
Ricardo: - Eu queria sentir o cheiro dela. Seu corpo deve ter odor de um botão de rosa por abrir, ainda por colher, bebendo a relva das manhãs e namorando as abelhas. Hoje vou sonhar com ela numa cama eclipsada pela luz vermelha de um abajur, recebendo-me de braços abertos, joelhos dobrados para o alto, as pernas abertas no ato de tragar-me. Vou lambuzá-la toda com meu néctar: seu umbigo, sua coxa, seu útero. Vou fazê-la sentir minha força de homem.
João: - Além de louco, você está tarado. A única coisa que você vai fazer é sujar o lençol. Você sequer a beijou e já está assim.
Ricardo: - Você não me entende. Ela é a Gabriela de Jorge Amado, simples e perfeita, que posso ter nos braços meus.
Apagam-se as luzes e focaliza-se apenas Ricardo. Cristina aparece em outro canto do palco como se fosse na imaginação dele. Então ele canta "Valsa Brasileira".

Valsa Brasileira
Edu Lobo / Chico Buarque
Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias em que não te vi
Como de um filme
Ação que não valeu
Rodava as horas para trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Para encostar no teu.

Subia na montanha
Não como era um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer.

3o Ato

A mãe de Ricardo, Regina, atende a um telefonema.
Regina: - Ricardo, é para você.
Ricardo: - Quem é, mãe?
Regina: - Uma menina chamada Cristina.
Ricardo levanta-se rapidamente do sofá e corre para atender o telefone.
Ricardo: - Cristina, que surpresa! Pensei que não fosse me ligar.
Cristina: - Fiquei curiosa, só isso. Você é muito ousado.
Ricardo: - Satisfaça melhor sua curiosidade. Vamos marcar um encontro para nos conhecermos melhor.
Cristina: - Eu não estou nem um pouco interessada em marcar um encontro com você. Mas se você estiver interessado, minha igreja está de portas abertas para você.
Ricardo: - É claro que eu vou, é só me dizer o dia, a hora e o local.
Cristina: - Minha igreja é a "Vinde a Mim", ela fica aqui em Botafogo, numa rua transversal a Voluntários da Pátria, onde era o cinema Paratodos. Você conhece.
Ricardo: - Sim, fui várias vezes a esse cinema.
Cristina: - Pois bem, agora é um templo de Deus. Tem um culto amanhã às sete.
Ricardo: - Pode esperar por mim amanhã às seis e meia na porta da igreja.
Cristina: - Até amanhã.
Ricardo: - Até logo, um beijo gostoso no seu rosto delicado - Ricardo faz um estalido de beijo no fone e desliga.
A mãe de Ricardo, que ficara escutando o assunto, o interroga:
Regina: - Se bem eu ouvi, você vai à igreja amanhã, posso saber qual?
Ricardo: - A "Vinde a Mim", daquele pastor que pensa que é dono do mundo. Comprou emissoras de rádio e televisão, cinemas.
Regina: - Mas você é quem disse para mim que tinha ojeriza à prática dele.
Ricardo: - Mas as pessoas que vão a igreja são honestas, elas são iludidas, enganadas por ele. Além do que, eu vou à igreja por causa de uma pessoa.
Regina: - Agora eu entendi, é a menina do telefone. Vê se não vai arrumar confusão, Você é muito avançadinho para ficar namorando essas carolinhas de igreja.
Ricardo: - Mãe, faz-me o favor de não se meter na minha vida.
A mãe de Ricardo sai resmungando, fim de ato.

4o Ato

Ricardo e Cristina sentados num banco na entrada da igreja, após o culto.
Ricardo: - Eu só não sabia que seu pai era um dos pastores da igreja.
Cristina: - Por que? Alguma coisa contra?
Ricardo: - Não, é que o pastor principal de vocês, qual o nome que vocês dão...
Cristina: - Reverendo.
Ricardo: - É que o reverendo Moisés é uma pessoa muito criticada.
Cristina: - Isto faz parte, é a perseguição do mundo contra os cristãos.
Ricardo: - Bem Cristina, não é bem assim, eu também sou cristão, não sou ateu, e acho que boa parte das acusações têm um fundo de verdade.
Cristina: - Um cristão que não vai à igreja! Que grande testemunho você dá. Acho melhor nós sairmos aqui da porta da igreja, pois se alguém ouvir o que você está falando é bem capaz de acabar em discussão.
Os dois saem do adro da igreja e vão sentar-se em uma praça circunvizinha.
Ricardo: - Você só fala quando o assunto é religião, fora isso você é tão calada. Ainda bem que você não necessita abrir a boca. Miro no fundo dos seus olhos e meu pensamento invade-lhe a alma. Você parece olhar e compreender a tudo. Eu sinto a presença da eternidade quando vasculho seu âmago. O tempo pára a nos admirar, pedindo que eu lhe dê um beijo para que ele continue seu caminho, depois de gravar esse momento mágico. Em sua simplicidade ocultam-se tantos mistérios. Ultrapassa os segredos que eu nunca compreendi, sacia minha curiosidade sem que eu consiga qualquer resposta.
Cristina: - Às vezes eu não consigo compreender muito bem o que você fala.
Ricardo: - É que eu disse muita coisa, quando necessitava apenas dizer que estou apaixonado por você.
Cristina: - Você me conheceu anteontem, não está exagerando um pouco?
Ricardo: - O coração tem razões que a própria razão desconhece. Se você pensar só com a cabeça não irá sentir o que sinto no fundo da minha alma. Como se você fosse um filme que eu já vi há muito tempo atrás. Como se eu a conhecesse com uma força superior ao simples conhecimento. Não é só o seu corpo que mexe comigo, tudo que é seu me estremece: o cheiro, o caminhar, a calma, o silêncio; e uma beleza muito maior que esse corpo lindo, que emana como se fosse sua aura e me penetra fundo.
Ricardo a surpreende com um beijo, que ela aceita e corresponde, beijo terno, calmo, voluptuoso e profundo. Ao terminar, ela está confusa.
Cristina: - Eu não o devia ter beijado... Só vou namorá-lo com a permissão dos meus pais... Você é carinhoso demais, porém não estou acostumada a tanto dengo. Nem sei bem se quero. É melhor não falarmos nada com meu pai, por enquanto. Deixe-me ter a certeza de que quero realmente ficar contigo.
Cristina fica em silêncio, então Ricardo a envolve novamente nos braços, com abraços beijos e carinhos, até que ela o afasta.
Cristina: - Calma, você é avançado demais para o meu gosto. Vamos conversar um pouco. Falar de algo importante para mim. Qual é a sua religião?
Ricardo: - Já disse que sou cristão.
Cristina: - Mas, de que igreja?
Ricardo: - Não freqüento nenhuma igreja, apenas acredito em Deus tanto quanto você.
Cristina: - Como você pode acreditar em algo sem praticar, sem ir à igreja.
Ricardo: - Pelo que eu saiba, a igreja de Cristo somos nós, nosso corpo é templo dele. Ele irá nos julgar, vamos dizer assim, de acordo com nossas obras, não pela quantidade de vezes que fomos à igreja.
Cristina: - Mas que obras são essas. Você fala palavrão, bebe, é cheio de volúpia.
Ricardo: - Meu conceito de pecado é diferente do seu. Acho possível acreditar em Deus sem ser subserviente. Acredito em Deus, mas não, em Arca de Noé, Adão e Eva, nem que costumes conservadores sejam virtudes humanas, isto em sentido religioso ou mesmo meramente em termos de cotidiano. Acredito que a maior virtude do cristão, e da humanidade, seja o amor. A vida, que é a maior das dádivas que Deus deu para cada um de nós, nos ensina a cada instante. Basta termos olhos para ver, ouvidos para ouvir e o coração aberto para se indignar contra a injustiça. O amor é a centelha divina no homem e se manifesta de diversas maneiras. Por exemplo, não acredito que uma prostituta seja má e pecadora, maus são os moralistas, o sistema em si e os que exploram a pornografia em seus mais diversos graus, que expõem tantas mulheres a esta situação.
Cristina: - Pare de falar besteira, você está blasfemando.
Ricardo: - Eu, blasfemando? Você é engraçada, só há uma maneira de ver as coisas, a sua e a dos que concordam contigo. Vêem pecado em tudo; eu, não. Mas vejo outros, maiores: o pecado da hipocrisia, o da ignorância, da generalização da burrice como norma de conduta, o pecado da exploração da fé do povo, para que ele espere satisfeito qualquer coisa que a vida ofereça, mesmo que miséria, frustração, medo e dor. Quem espera a morte como recompensa, adora a Cristo morto. Meu Jesus está vivo. Ele me deu o sol, o futebol, a música e esse corpo maravilhoso de mulher que está a minha frente, perfeito para amar. Para você, a volúpia é pecado, para mim, uma graça divina.
Cristina: - Em que bíblia você encontrou isso? Na sua bíblia? Não admito essa forma torpe de interpretar as escrituras.
Ricardo: - Não estou falando isso para que você mude, só estou sendo sincero com você sobre meu pensamento.
Cristina: - Pois eu acho difícil que nós tenhamos futuro algum se você não mudar. Vou orar para que a verdadeira graça de Deus toque seu coração.
Ricardo fica calado e pensativo. Principia a fazer carinho em Cristina e a beijá-la. Então canta "Por Quem Merece Amor".

 

Por Quem Merece Amor
Autor: Sílvio Rodrigues
Versão: Miltinho
Te pertuba esse amor, Amor de juventude
Meu amor é amor de virtude.
Te pertuba esse amor, sem máscaras por trás
Meu amor é uma arte de paz.
Te pertuba esse amor, amor de humanidade
esse amor é amor de verdade.
Te pertuba esse amor, com todos ao redor
Meu amor é uma arte maior.

Meu amor, minha prenda encantada
Minha eterna morada, meu espaço sem fim.
Meu amor não aceita fronteiras
Como a primavera não escolhe jardim.
Meu amor não é amor de mercado, esse amor tão sangrado
Não se tem pra lucrar
Meu amor é tudo quanto tenho, e se vendo ou empenho
Para que respirar.

Te molesta mi amor, mi amor de juventud
Y mi amor es una arte en virtud
Te molesta mi amor, mi amor sin antifaz
Y mi amor es un arte de paz
Te molesta mi amor, mi amor de humanidad
Y mi amor es un arte en su edad
Te molesta mi amor, mi amor de surtidor
Y mi amor es un arte mayor.

Meu amor alivia e acalma
É o remédio da alma p'ra quem quer se curar
Meu amor é humilde é singelo
E o destino mais belo é torná-lo maior
Meu amor, o mais apaixonado pelo injustiçado, pelo mais sofredor
Meu amor abre o peito p'ra morte e se entrega p'ra sorte por um tempo maior
Meu amor, esse amor destemido
Arde em fogo infinito por quem merece
Amor.

 

 

 

 

 

 

5o Ato

Cristina discute com seu pai o namoro com Ricardo.
Pastor Pedro: - Eu não vejo com bons olhos seu namoro com esse rapaz de fora da igreja, mas não vou proibi-lo, por enquanto.
Cristina: - O Ricardo tem qualidades, pai. É honesto, fiel, sensível, trabalhador, inteligente...
Pastor Pedro: - Vejo que você não consegue esconder que está apaixonada por ele, salta aos olhos. A paixão pode ser perniciosa e levar uma cristã a se furtar do caminho do Senhor. Lembre-se que esse mundo é cheio de tentações. Ele pode ser apenas mais uma prova para você. Afinal, há muitos rapazes da igreja interessados em namorar com você.
Cristina: - Mas, pai, no momento, eu não estou interessada em nenhum. Quem sabe a graça de Deus não toca o coração dela e ele se converte.
Pastor Pedro: - Embora para Deus nada seja impossível, duvido que o consiga. Ricardo parece-me extremamente orgulhoso e auto-suficiente para ser tocado pela graça, pelo menos por agora.
Cristina: - Acho que você está exagerando um pouco, pai. O que sinto por Ricardo é tão forte, que acho que é exatamente parte daquele amor, do qual Cristo fala nos evangelhos.
Pastor Pedro (exaltando-se): - Que é isso, menina!? Está louca!? Comparar o amor de Jesus, que salvou o mundo do pecado, com esse sentimento mundano! Corrija seus passos e tenha vergonha de suas palavras.
Cristina: - Pai, ele esteve no meio de nós e nos amou de tal forma, que deu a própria vida, seu próprio corpo em martírio para nos salvar. Tornou-se em homem para sofrer o que sofremos. Não é o amor uma centelha do fogo divino queimando em nós?
Pastor Pedro: - Cala, já não disse? Quem lhe ensinou tais besteiras? Está de castigo por blasfemar. Não sairá esse final de semana. Não sei onde estou com a cabeça que já não proíbo esse namoro. Vai, para o quarto, orar pedindo a Deus para iluminar esse cabeça mergulhada em pecado.
Cristina vai para o quarto abalada, em prantos.

 

 

 

6o Ato

Cristina e Ricardo encontram-se na casa de Ricardo.
Cristina: - Estou fazendo coisas que nunca fiz antes , por sua causa. Estou mentindo para meu pai e me encontrando com você às escondidas. Para completar, ainda estou sozinha, com você, em sua casa.
Ricardo começa a beijá-la e excitá-la. Ela aceita as carícias, o agarra com tesão, depois o afasta num impulso.
Ricardo: - O que foi, meu amor? O que houve?
Cristina: - O que houve! Você não acha que é muito ousado. Nunca ninguém havia tocado nos meus seios, nas minhas coxas, você me faz ficar toda arrepiada...
Ricardo: - E qual é o mal, você fica arrepiada de prazer.
Cristina: - Escuta, Ricardo. Não é lícito que estejamos aqui. Se quer ficar comigo, que você me respeite, do jeito que sou. Parece que você está louco para fazer sexo comigo.
Ricardo: - Cristina, eu amo você! Estou louco de paixão. Quero fazer amor com você, amor! Quero ser seu homem, a quero como minha mulher, agora e sempre.
Cristina: - Você não pode ter tanta certeza que me ama, em tão pouco tempo. Ricardo, eu gosto de você, talvez até o ame, não sei. Mas, não vou conseguir sentir prazer pecando contra minha consciência cristã. Sexo é pecado, o pecado original. Só é abençoado para os casais ungidos pelo matrimônio, na intenção de constituir uma família.
Ricardo: - Já lhe falei do meu amor, ainda que você não acredite nele. Ele é profundo e sincero e sabe esperar. Só que não consigo sentir culpa, nem pecado no nosso desejo, no meu desejo: o de sentir o seu corpo jovem e lindo se entregar, mergulhando no meu. Responda-me com sinceridade: você sente-se como uma pecadora quando está do meu lado?
Cristina: - Quando estou contigo, não consigo pensar em mais nada. Mas, depois, não consigo fugir da minha consciência, da visão de Deus, mirando-me como uma pecadora.
Ricardo: - Deus, ou seu pai?
Cristina: - Ricardo, não distorça as coisas. Já estou bastante crescida para seguir com a minha própria cabeça, sem necessitar de ninguém pensando por mim. O problema não é meu pai, se é que isso é um problema. O fato é que minha consciência em relação a sexo é bem diferente da sua.
Ricardo: - Pelo menos você não nega que também me deseja.
Cristina: - Como poderia negar com a boca aquilo que meu corpo fala a você. O problema é que somos apenas namorados, não marido e mulher. Como posso me entregar a um homem que não sei se é aquele companheiro que Deus me destinou. Deus a tudo vê, não há como fugir a sua presença. Se você me deixar depois, como será? Até sonho com o dia que poderei me entregar a você, casada, pura, sem máculas.
Ricardo: - Eu amo você, como jamais imaginei pudesse um sentimento alcançar. Estou escravizado pela visão do seu corpo e o desejo como jamais desejei qualquer coisa no mundo. Não acredito em pecado quando estou com você. Sinto nossa relação mais pura que a de qualquer casal de papel passado, ainda que tenham chegados virginais ao altar.
Cristina: - O que sinto por você não é mais forte que meu sentimento por Deus. Mas quando olho no fundo dos olhos seus, passeio no infinito e desacredito na morte. Posso estar enganada totalmente, pela paixão, mas sinto que foi Deus que o pôs na minha vida como amado verdadeiro e único. O meu sentimento é forte e denso como as pulsações do meu coração a cada reencontro com você. Mas eu preciso do tempo, da certeza, quem sabe até do comprometimento.
Ricardo: - Eu me caso com você!
Cristina: - Ricardo, tenho apenas dezoito anos, você, vinte.
Ricardo: - E daí? Aqui em casa, quem "segura a barra" sou eu. Trabalho desde cedo com eletrônica, aprendi com meu pai. Quando ele morreu, tive que praticamente sustentar a casa, porque minha mãe tinha que ficar com meu irmão pequeno. Pagar uma babá era mais caro do que minha mãe ficar em casa, e a pensão que ficou, da morte do meu pai, não dá para todas as despesas.
Cristina: - Eu não sabia que você tinha um irmão, onde ele está?
Ricardo: - Morreu ano passado, atropelado. Quase morri junto, de tristeza, era como se fosse um filho para mim. Mas é melhor não falar nisso. Você trouxe alegria de volta ao meu coração. Nosso primeiro filho vai ter o nome de Róbson, como ele.
Cristina: - Ricardo, vejo que minha responsabilidade aumenta, em relação a meu sentimento. Você é carente, perdeu um pai e um irmão, se entrega demais.
Ricardo: - Mas existe como medir o se entregar no amor? Ou você se entrega, ou você não se entrega.
Cristina: - Ricardo, não é bem assim. Se esta proposta de nos casarmos for séria, ela é meio louca. Você passa o maior aperto para sustentar sua casa, como vai se casar.
Ricardo: - Mas estou melhorando, já terminei meu segundo grau e pretendo fazer vestibular, meu salário aumentou. Se nós "apertarmos o cinto" um pouco, poderemos viver com dignidade.
Cristina: - Eu não estou acostumada a viver no limite, lá em casa a gente tem um certo conforto.
Ricardo: - Isto é tão importante assim para você, para mim, não. Pelo meu amor sou capaz de enfrentar qualquer adversidade.
Cristina: - Você quer insinuar com isto o quê, o seu amor seria mais verdadeiro que o meu? Ricardo, sou apenas mais realista, quero viver uma vida tranqüila, com um cantinho nosso onde nós dois possamos viver em paz. E acho que isso não é possível agora.
O ato termina com Cristina cantando "Todo Sentimento".

Todo Sentimento
Chico Buarque
Preciso não dormir
Até se consumar
Um tempo da gente
Preciso conduzir
Um tempo de te amar
Te amando devagar
E urgentemente
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo o sentimento
E bota no corpo uma outra vez.

Prometo te querer
Até o amor cair
Doente
Doente
Prefiro então partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder
Te encontro, com certeza, talvez num templo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei, como encantado
Ao lado teu.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

7o Ato

Cristina e Regina conversam à espera de Ricardo.
Cristina: - Dona Regina, parece que a senhora não vê com bons olhos meu namoro com seu filho.
Regina: - Não é nada disso. Só fico preocupada. Ricardo teve uma infância até certo ponto difícil. Teve que começar a trabalhar cedo, sem, contudo, nunca ter largado os estudos. Quando meu marido morreu, há três anos, foi Ricardo que equilibrou a situação em casa. Nunca deixou faltar nada para mim ou para o irmão dele. Quando o Róbson morreu, ele ficou mais traumatizado que eu. A tristeza tomou conta de Ricardo. Você o tirou de um trauma, não o faça sofrer uma decepção.
Cristina: - A senhora tem medo que eu o magoe.
Regina: - Eu conheço meu filho muito bem. Nunca o vi apaixonado assim por ninguém. Você pode pensar que falo isto por ciúmes de mãe, mas não é. Ele encara tudo tão seriamente: o estudo, a profissão, agora o namoro.
Cristina: - Eu sei disso. Mas nós temos nossas diferenças. Às vezes fico pensando e acho que vou me sentir culpada se o nosso namoro não der certo.
Regina: - Você fala isso por causa de sua religião.
Cristina: - Também.
Regina: - Principalmente! Será que você não pode acordar um pouco para a vida? Seu jeito me assusta. Ricardo é um menino tão alegre, tão cheio de amigos, de vida. Você é tão sorumbática. Vive à espera da morte para viver a vida eterna. Se for para viver eternamente como você vive a sua vida hoje, é preferível que não haja eternidade. É terrivelmente enfadonho seu modo de encarar a vida. Tudo está mesclado de pecado: da música ao prazer há mil formas de pecar e sentir-se culpado. Seu Cristo veio para pregar a morte, aquele no qual Ricardo crê, veio para pregar alegria, música e perdão.
Cristina: - A senhora está me julgando, quem a senhora pensa que é para me julgar. Garanto-lhe que já fiz muito mais da obra de Deus que a senhora. Meus joelhos a todo momento se dobram em busca de louvor e adoração. Minha boca não profere más palavras. Sigo os mandamentos. Estou sempre no caminho da igreja e nunca me desviei.
Regina: - Não sou, com certeza, mais religiosa que você. Isso você pode constatar pelo jeito de ser do Ricardo, que tem muito que ver com aquilo que ensinei. Mas já vivi muito. Talvez eu não saiba muito de oração e jejum, mas sei bastante de amor, carinho e perdão. Sei de dores que você ainda não conhece: a dor e alegria de dois partos, e também a sensação de amputação de perder um filho e um marido amados. A dor de viver lutando para que nunca falte comida dentro de casa, sempre na incerteza do amanhã. Com certeza conheço muito mais da vida que você, e vejo que você não vive a sua. Deixa o seu tempo aqui na terra passar numa expectativa de viver outra vida. Faz-me lembrar até uma frase do Vinícius de Morais: "Cuidado meu amigo, a vida é uma só. Duas que é bom ninguém vai me provar que existe, senão com assinatura embaixo escrito: Deus, e com firma reconhecida em cartório no céu."
Cristina: - Mas tudo isso é uma grande bobagem. Vinícius de Morais e todos esses outros são poetas mundanos, o que sabem de Deus? Tudo isso que você me falou é passageiro, eterno somente Deus. Cuidado, você só toma tento dos problemas do mundo, e o seu espírito? Você deve prepará-lo, pois Cristo vem.
Regina: - Você realmente está muito cega. Nada do que falei é passageiro ou transitório, depois que você vive está guardado para sempre com você. Você ainda está muito obcecada para entender meu espírito. Acredito em Deus tanto ou mais que você. Só que eu não cultivo minha fé vivendo para a morte. Acredito em um Deus que se fez homem e veio pregar a libertação, a vida e o amor. Que pregou a libertação numa sociedade escravocrata extremamente cruel. Que foi um revolucionário e pagou pela vida com suas idéias. Que fez dos pobres, dos fracos, dos trabalhadores, enfim, do povo, sua igreja. É esse Cristo vivo que vejo estampado no rosto de meu filho. Quando eu olho para Ricardo eu me recordo de todo o amor que o gerou. Esse milagre que é de dentro do meu útero sair outra vida.
Cristina: - Não acredito que você possa confundir o amor divino com o sentimento carnal humano.
Regina: - Eu amei e fui amada, só vejo um único princípio de amor a reger o mundo. A mesma energia que faz um homem e uma mulher entregarem-se um ao outro é a que faz o rio alimentar de húmus a floresta. Uma flor que se abre à polinização é tão divina quanto a mulher que fica úmida e macia para receber o amado.
Cristina: - O que você fala é profano e sem sentido, nada tem que ver com o que ensina a bíblia.
Regina: - Ou o que seu pastor ensina baseado na bíblia.
Cristina: - Ele apenas segue fielmente as escrituras. Está escrito no Apocalipse que pagaria com a própria alma, aquele que tirasse ou acrescentasse algo à bíblia.
Regina: - Não existem argumentos possíveis para conversar com quem se esconde da vida atrás da religião. Só tenho medo de que meu filho seja infeliz com você. A escolha entretanto é só dele, não tenho o direito de interferir.
Nesse momento Ricardo chega. O ato termina com um beijo entre ele e Cristina.

 

 

 

8o Ato

O pastor Pedro está pregando um sermão e Ricardo e Cristina estão presentes na igreja.
Pastor Pedro: - Não devemos pois nos desesperar com a nossa situação, por pior que ela seja, nem nos revoltar, pois em Deus tudo podemos esperar e superar. Se o teu patrão te paga mal, não deves desesperar ou desejar mal a ele, nem mesmo ficar com ódio dele, pois este não é um sentimento próprio de um cristão. O que se deve fazer e orar e esperar que Deus faça a obra. Resignar-se com o sofrimento. Pode ser que tudo seja apenas uma prova que Deus está colocando em seu caminho. Deus, às vezes, age dessa maneira. Põe um homem do mundo numa situação melhor que a de um cristão e então o fiel blasfema dizendo: como posso eu, Deus, continuar a crer, quando sigo teu caminho, creio em tua justiça, entretanto estou em situação pior que a de um ímpio. Os que seguem o mundo, estes vivem uma vida abastada. Lembre-se irmão, o ímpio não é maior ao olho de Deus que você. Oh, Aleluia - A igreja em coro responde aleluia.
Pastor Pedro: - Que exemplo maior do que Jó? Por pior que fora sua situação, jamais reclamou do destino que Deus lhe deu. Ou lembremos de Jesus, que sofrendo tudo que sofreu, pediu ao pai que perdoasse aqueles que o martirizaram, a Cristo.
O pastor faz uma pausa para tomar água, depois continua:
Pastor Pedro: - Alguns irmãos lembram de uma ovelha nossa, o irmão Jessé, que passou por alguns momentos difíceis. Muitas vezes o diabo coloca entraves no caminho do bom cristão. O irmão Jessé perdeu o emprego e a esposa, que se deixou levar pelas tentações do mundo. Pois bem, o irmão Jessé esperou em Cristo, com confiança. Os irmão da igreja arrumaram um emprego para ele, onde ganha bem mais. Mesmo com a esposa fora de casa Jessé esperou. Não pensou nos prazeres da carne. então, um ano depois de ter abandonado o lar, ela retornou, arrependida, à aliança sagrada do casamento e à igreja. Oh, aleluia, glória a Deus. João é um exemplo para todos nós.
O Pastor Pedro dá uma nova pausa para beber água, no que Ricardo comenta no ouvido de Cristina.
Ricardo: - Se fosse mulher minha eu não aceitava de jeito nenhum. Quem garante que o amante é quem a deixou na rua da amargura. Se ela está insatisfeita vai trair de novo.
Cristina faz um gesto severo para que ele se cale. Retorna a pregação.
Pastor Pedro: - Oh, Senhor, dai-me forças para resistir às tentações que satanás põe no caminho dos cristãos. Fazei com que não guarde ira em meu coração, que possa resignar-me ao sofrimento e procurar auxílio na igreja, nos meus irmãos, na tua misericórdia para resistir como uma muralha, amém. Irmãos, vamos para casa, com a paz do senhor e a graça do espírito santo, amém.
Os fiéis vão saindo e o Pastor Pedro encontra sua filha de mãos dadas com Ricardo.
Pastor Pedro: - O que você achou do culto de hoje, Ricardo? Não o convenceu a aceitar Cristo como seu salvador?
Ricardo: - Já sou Cristão praticamente desde que nasci, só não sou evangélico.
Pastor Pedro: - Então é católico.
Ricardo: - Não, não sou católico, sou apenas cristão. Tenho minha própria ética e não aceito certos dogmas de nenhuma igreja.
Fiel 1: - Como quais?
Ricardo: - Adão e Eva, a Arca de Noé. Para mim são apenas simbologia. Deus é o primeiro motor do mundo, mas os povos primitivos não tinham instrumentais para analisar a criação de uma forma maravilhosa como o ser humano e o próprio mundo. Não conheciam o cérebro, a função dos sonhos, por isso acreditavam que a alma podia visitar outras durante o sono, e que a morte era um sono eterno. Por isso há tantos mitos parecidos dos povos da antigüidade sobre a criação.
Fiel 2: - Mitos, você diz que a Bíblia são mitos?
Ricardo: - Não ponha palavras na minha boca, eu não disse tal coisa. Para mim a bíblia é um livro sagrado, mas extremamente simbólico em determinados pontos, servindo às mais diversas interpretações, até para a pregação de coisas estúpidas e reacionárias como o destino manifesto. Nós temos de temperá-la com a razão humana, através da evolução da ciência.
Pastor Pedro: - Filho, não vê que toda ciência humana é vã diante da sabedoria divina?
Ricardo: - Não, se você consegue ver a ciência humana como uma manifestação da natureza divina no homem. Seria por acaso o saber obra do diabo? Não posso acreditar em tal coisa, é por demais burra. A própria religião mudou por causa da ciência. Hoje em dia ninguém mais discute o sexo dos anjos, o que era uma prática muito séria, a que se dedicaram durante décadas alguns dos mais sábios homens da antigüidade. Aí Copérnico e Galileu provaram que a terra não era o centro do universo. Todo o conhecimento de então foi por água abaixo. Hoje em dia ninguém tem mais coragem de afirmar que o inferno é no centro da Terra. Isto porque a ciência já conseguiu prescrutar o interior da Terra e provar, que se o inferno existe, ele não é aqui. E olha que o fato dele estar no centro de nossa Terra e poder se chegar a ele através de uma barca era uma verdade incontestável até alguns séculos atrás. Veja a teoria da evolução, na qual alguns religiosos não crêem, é que ela só pode ser demonstrada através de achado de fósseis relativos a milhões de anos de evolução, não estão aqui mais para evidenciar como, de uma pequenina célula, a vida evoluiu até se transformar nessa coisa magnífica que é cada um de nós.
Pastor Pedro: - O que deseja você aqui, provocar confusão no meio do meu rebanho? você não foi convidado a vir a esta igreja para por em dúvida a fé cristã! - fala com exaltação.
Ricardo vai responder, mas Cristina puxa-lhe a mão e o retira de dentro do salão da igreja.
Cristina: - Parece que você só vem aqui à igreja para provocar os irmãos e provar suas próprias convicções.
Ricardo: - Desculpe-me, ficarei mais quieto de agora em diante, afinal, é como um diálogo de surdos.
Cristina: - O único surdo que vejo aqui é você.
Ricardo: - Cristina, em vez de vocês usarem a bíblia como fonte de libertação, vocês se escondem do mundo atrás dela!
Cristina: - É você que se esconde de Deus através desse seu discurso orgulhoso. Você não vê que toda sabedoria humana e vã diante de Deus?
Ricardo: - E o que é bom então, a burrice humana? Ora, essa é uma forma muito tacanha de pensar, que só é boa para os poderosos, a de que os explorados sejam burros e medrosos, usando a religião como forma de se esconder da realidade e achar um céu azul no além.
Cristina: - Você fala igualzinho a sua mãe. Não me admira que você seja assim. Você é apenas cópia fiel do pensamento dela.
Ricardo: - O que minha mãe falou contigo?
Cristina: - Eu não devia ter tocado nesse assunto.
Ricardo: - Devia sim. O que ela falou para você?
Cristina: - As mesmas coisas que você e algo mais. Ora, Ricardo, você sabe que ela não simpatiza muito comigo.
Ricardo: - Eu já falei para ela não se meter no nosso relacionamento. Pode deixar que vou falar com ela.
Cristina: - Você só vai sair daqui quando me prometer que não vai tocar nesse assunto com ela. Eu não quero confusão. Promete?
Ricardo faz que sim com a cabeça e vai embora.

 

 

 

 

 

9o Ato

Ricardo começa uma discussão com sua mãe:
- Mãe, o que a senhora andou falando para Cristina.
Regina: - Por que? Ela já foi fazer intriga para nós brigarmos.
Ricardo: - Não tem intriga nenhuma, mãe. Ela nem queria que eu falasse contigo. Aliás, foi você que foi arrumar intriga, metendo-se na nossa vida. Quantas vezes eu já pedi para você não se interpor na minha relação com a Cristina?
Regina; - Filho, Eu não quero me intrometer em sua vida. Mas, já que você tocou no assunto, eu estou preocupada contigo. Você anda se entregando demais a essa relação, e eu conheço você, por trás dessa aparência forte, está uma pessoa frágil e sensível. Será que eu errei, deixei você carente após a morte do seu pai e seu irmão? Você está ligado demais a uma pessoa que não tem nada que ver contigo.
Ricardo: - Mãe, o que eu acho é que a senhora está invadindo demais a minha privacidade. Quem tem que ver se ela tem ou não tem alguma coisa que ver com o meu jeito de ser sou eu, não a senhora. Eu não me meto em sua vida, não lhe dou o direito de se meter na minha.
Regina (perde o controle): Que grosseria é essa, eu sou sua mãe que lhe levou nove meses na barriga e te atura há 19 anos. Se você quer brigar comigo por causa de uma qualquer...
Ricardo: - Se você for tratar a Regina como uma qualquer eu vou brigar contigo sim.
Regina: - Pois para mim está bem então, seu filho da puta. Se você quer para de falar com a sua mãe, que sempre esteve do seu lado, que faz todos os sacrifícios por você em troca do primeiro rabo de saia que te encantou, que assim seja. Vai procurar aquela carola, aquele percevejo de igreja e me esquece. Você não gosta mais dela do que de sua mãe?
Ricardo (chorando): - Você acha que está certa me tratando assim. Eu devo merecer, afinal eu sou um filho ingrato, um vagabundo que não trabalha e explora a mãe, não é? Que fica o dia inteiro na esquina paquerando e soltando pipa, que não quer trabalhar, que tem todo o tempo do mundo para se divertir, não é? Afinal, eu não perdi quase toda minha adolescência trabalhando para ajudar a senhora, deve ter sido algum filho do vizinho. Não sou eu que me mato a semana inteira para pagar o aluguel e ajudar a botar comida dentro de casa, é algum outro, pois afinal, fazendo tudo que eu faço, sem desreispeitá-la jamais, só porque eu quero um pouco de privacidade, eu sou é um filho da puta!
Ricardo sai num rompante e bate a porta, Regina fica em casa chorando e passando mal.

10o Ato

Ricardo vai procurar Cristina, ela está sozinha em casa, pois seu pai fora com a mãe dela a uma excursão da igreja.
Ricardo: - Onde está todo mundo?
Cristina: - Meu pai foi com a igreja numa excursão a uma outra cidade. Eu falei que não estava me sentindo bem para não ir e ficar em casa esperando você. Minha mãe e meus irmãos também foram.
Ricardo: - Estou vindo de casa. Discuti com minha mãe, ela me falou coisas um pouco fortes, estou triste.
Cristina está sentada no sofá, pega Ricardo e deita a cabeça dele no colo dela.
Cristina: - Se eu soubesse que você iria me desobedecer e brigar com a sua mãe, não teria contado nada. Agora estou me sentindo mal, com remorsos, como se fosse uma fofoqueira.
Ricardo: - Deixa de ser boba. Você não tem culpa de nada. Você nada fez a minha mãe para ela antipatizar contigo.
Ricardo levanta o corpo e começa a acariciar Cristina beijando-lhe levemente o pescoço, as orelhas, a boca, trançando os dedos nos cabelos longos dela.
Cristina: - Ricardo, pára, dá para você me respeitar!?
Ricardo nada responde, com carinho toma Cristina e a derruba no carpete, ela não tenta se levantar, no início apenas tenta evitar as mãos dele. Ele, entretanto lhe faz mil carinhos, vai beijando todo o corpo dela e acariciando cada parte com atenção e desvelo, com fome e amor. Ela murmura palavras quase incompreensíveis de resistência e prazer. Ricardo vai tirando a roupa dela aos poucos peça por peça, devagar, com carinho e tesão. Agora ela está magnetizada, não reage mais, apenas geme, alto, e agarra o corpo de Ricardo, ora beijando, ora mordendo e beliscando. Ela chega ao orgasmo quando Ricardo lhe toca o sexo com os lábios e lhe suga a flor com tesão e amor, era como se ele desse um longo beijo naquela gruta ainda virginal, onde emanava um aroma e um perfume de causar inveja à mais perfumada das flores, Ricardo bebeu todo aquele licor, com sede, até sentir Cristina completamente exangüe, inebriada de tanto prazer. Então ele sobe nela, lhe beija a boca e pergunta:
- Você quer fazer amor comigo, quer que eu seja seu homem a lhe desvirginar e encher de prazer?
Cristina: - Ricardo, eu devo estar louca, mais quero sim. Porque eu te amo demais.
Ricardo então a penetra com calma, doçura e virilidade, Cristina geme e chora baixinho. Os dois vão numa loucura crescente, gemendo, chorando, gritando, xingando, até perderem o controle, a noção do mundo, sentindo apenas um ao outro, o membro viril e duro de Ricardo, teso de sangue quente dentro da carne úmida de Cristina. Sentiam cada afluxo de sangue, como se a excitação fora una, até chegarem a um orgasmo louco, se apertando, mordendo, dançando e mesmo arranhando e machucando o sexo até caírem, um ao lado do outro, completamente realizados. Os dois gritam um para o outro frases como eu te amo, eu te adoro, etc...
O ato se encerra com os dois cantando juntos a música "Eu Te Amo".

Eu Te Amo
Antônio Carlos Jobim / Chico Buarque

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir.

Se ao te conhecer, dei para sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz para onde é que 'inda posso ir

Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir.

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veias e se perdeu.

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu.

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair.

Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir.

 

 

 

 

11o Ato
Ricardo e Cristina acordam abraçadinhos depois de sua primeira noite de amor.
Cristina: - Meu Deus do céu, o que foi que eu fiz?
Ricardo: - Ora, Cristina, você se entregou ao homem que você ama e que te ama com loucura.
Cristina: - Loucura, essa é a palavra. Eu só posso estar ficando louca!
Ricardo: - Que isso, meu amor! Foi maravilhoso.
Cristina: - Sim, foi bom, ótimo, maravilhoso, mas não deveria ter sido, aliás, não deveria ter acontecido.
Ricardo: - O que entendo, é que foi o melhor momento de toda a minha vida, em que consumi toda a beleza do mundo e transcendi meu corpo. Parecia que você tinha duas almas. Enquanto uma me olhava assustada dentro do seu corpo a outra embarcava no meu sangue e velejava minhas veias, descobrindo alegrias ignotas, libertando tristezas ilhadas, destruindo esperas, trazendo uma vela ao lado escuro do meu ser. Depois você apagou a luz para amar o meu lado mais sério na escuridão, em que perdi seu corpo, toda a beleza dele e amei seu ventre. Você não tinha mais cabelos, olhos, um corpo lindo, você só era aquilo que meus olhos fechados viam no fundo do meu sonho: sua energia, sua fragrância de mulher. Minhas mãos apertavam você e eu não via. Eu não queria gozar, só estar ali, eternamente, com todas as explicações sentidas no fundo do meu peito. Sem esperar nada, sem qualquer querer, indecifrável, na noite, no mais profundo da noite, você correndo pelo espaço noturno enquanto eu sorvia tua respiração penetrando seu corpo. O amor é isso, só pode ser isso, uma vontade de ser livre sendo seu escravo, um desejo de me perder encontrando você.
Cristina: - Estou embevecida com suas palavras, pena que só sei lhe responder eu amo você.
Ricardo: - Basta, e me arranca uma lágrima.
Cristina: - Mas do que palavras, eu lhe dei meu corpo.
Ricardo: - Fez minha alegria.
Cristina: - Esta foi minha grande prova de amor.
O ato termina com Ricardo cantando canção do amanhecer para Cristina.

Canção do Amanhecer
Edu Lobo / Vinícius de Morais

Ouça, fecha os olhos meu amor
É noite ainda
Que silêncio
E nós dois
Na tristeza de depois
A contemplar
O grande céu do adeus.

Ah, não existe paz
Quando o adeus existe
E é tão triste o nosso amor
Oh, vem comigo em silêncio
Vem olhar esse noite amanhecer
Iluminar os nossos passos tão sozinhos
Todos os caminhos
Todos os carinhos
Vem raiando a madrugada
Música no ar.

 

 

 

 

12o Ato

Cristina está sozinha em casa com sua mãe e decide conversar com ela.
Cristina: - Mãe, eu queria lhe falar uma coisa muito séria e que está me perturbando um pouco.
Antônia (mãe de Cristina): - O que é minha filha?
Cristina: - É que eu andei conversando com uma amiga minha da igreja e ela disse para mim que estava fazendo sexo com o namorado dela.
Antônia: - São as falsas ovelhas que nós temos em nosso meio. São pessoas que ainda não foram tocadas pela graça divina.
Cristina: - Mas, mãe, ela me disse que não era pecado, pois ela ama o namorado dela e ele a ama.
Antônia: - Que absurdo, Cristina! Se eles se amassem teriam temor de Deus e iam e se casar. Eles estão tomados e pela sem-vergonhice, que é coisa do diabo. Estão fazendo é o mundo rir do cristão.
Cristina fica um tempo pensativa e depois acaba dizendo:
- Mãe... não é minha amiga não. É que eu estou confusa e precisava falar com você. Lembra aquele dia que vocês foram à excursão com a igreja. Pois bem, o Ricardo veio aqui e a gente acabou... transando.
Cristina não teve tempo de falar mais uma palavra. Antônia partiu para cima da filha, dando tapas em seu rosto enquanto falava:
- Safada, sem vergonha, endemoniada. Então você só esperava a gente virar as costas para cair na descaração.
Cristina livrou-se da mãe com um empurrão, correu e se trancou no quarto.

 

 

 

 

 

 

13o Ato
Pastor Pedro: - Sua atitude foi indigna de uma cristã. Estás proibida de sair de sua casa até palavra em contrário. E o seu namoro acabou. o único local para o qual irás é para a igreja, em nossa companhia.
Cristina: - Sim, senhor.
Pastor Pedro: - Seu namoradinho ligou. Eu falei lhe que não te ligasse mais. Encontrei uma carta endereçada a você, dele, e rasguei-a. A culpa dessa situação é minha, por não ter proibido desde o início esse namoro. Não devia ter confiado em você.
Cristina: - Não, pai. A culpa é minha por ter me deixado cair em tentação como uma pessoa do mundo. O senhor só confiou em mim, na minha conduta cristã e eu traí, a ti e a meu Deus. Agora, irei jejuar, orar e vigiar para que possa voltar a merecer o seu respeito e o de Deus.
Pastor Pedro: - Que assim seja, não a quero, de maneira nenhuma novamente com esse rapaz. Sou capaz de expulsá-la de casa se tal o fizer.
Cristina: - Não precisa se preocupar, pai. O único sentimento que me restou de Ricardo, agora, é o desprezo.

 

14o Ato

Ricardo cerca Cristina na saída do colégio dela.
Ricardo (pegando o braço de Cristina e a impedindo de andar): - O que está havendo, meu amor. Há duas semanas que tento ver você e não consigo. Ligo para sua casa e as pessoas dizem que você não está, ou então, seu pai atende o telefone e me diz para não tornar a ligar porque você não me quer ver. Já fui várias vezes a seu prédio e o porteiro sequer me deixa chamá-la pelo interfone, dizendo ter recebido ordens, aí fico zanzando pela portaria inutilmente, à espera de encontrar por acaso com você. Até a sua igreja eu fui, para poder lhe falar . Mas, como? Não me deixavam aproximar de você, quando o culto terminava, ia para companhia de seu pai e rapidamente se retirava. Por quê? Que mal lhe fiz?
Cristina: - Largue o meu braço, está me machucando.
Ricardo: - Primeiro, você vai me escutar - Ricardo solta o braço de Cristina, mas ela pára para escutá-lo -. Eu amo você. Fiz vários sacrifícios por você. Deixei de sair com meus amigos para me dedicar a sua vida e porque você não aprovava as minhas companhias. Briguei com minha mãe e até hoje estamos sem nos falar direito. Reorganizei toda minha vida em sua função. Estou batalhando um emprego melhor para podermos nos casar.
Cristina: - Casar comigo? Será que não entendeste, eu tenho nojo de você. Nojo, ouviu? Você é nojento, pecaminoso. Ensinou-me o caminho do pecado.
Ricardo: - Não fale assim, por favor. Magoas por demais a quem só lhe quis bem. Você deve estar sofrendo, seus pais devem ter descoberto que nós transamos. Foi o que aconteceu, não foi. Seus pais estão a perseguindo em casa. Vamos enfrentar isso juntos. Se quiser, pode sair de casa, nós moraremos junto, por seu amor sou capaz de enfrentar o mundo. Mas, sem ele nada vale à pena.
Cristina: - És ridículo, pequeno e pretensioso. Você acha que só porque aconteceu aquilo entre nós estou morrendo de amores por você? Eu não sinto nada por você, nada, nada, nada. Não quero nunca mais te ver em minha frente, entendeu?
Ricardo, tenta beijá-la, mas ela lhe empurra e grita:
Cristina: - Nunca mais me toque, você não tem este direito, Ouviu?
Ricardo: - Mas, depois de tudo que aconteceu entre nós.
Cristina: - Não aconteceu nada de importante entre nós, nada.
Cristina sai andando resoluta, enquanto Ricardo canta às suas costas a música "Sobre Todas as Coisas", após a música ela desaparece, ele então senta num canto e chora.

Sobre todas as coisas
Edu Lobo - Chico Buarque/1982

Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus

Ao Nosso Senhor
Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor
Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor
Criado pra adorar o Criador

E se o Criador
Inventou a criatura por favor
Se do barro fez alguém com tanto amor
Para amar Nosso Senhor

Não, Nosso Senhor
Não há de ter lançado em movimento terra e céu
Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel
Pra circular em torno ao Criador

Ou será que o deus
Que criou nosso desejo é tão cruel
Mostra os vales onde jorra o leite e o mel
E esses vales são de Deus
Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus

 

15o Ato

Ricardo chega a sua casa e conversa com sua mãe.
Ricardo: - Mãe, hoje, finalmente, eu consegui falar com a Cristina. Foi horrível, parecia que ela nunca sentiu por mim o que eu senti por ela. Foi tão fria e insensível. Sequer me olhou nos olhos.
Regina: - Para mim, ela sempre pareceu uma pessoa fria, com os sentimentos congelados, impedida de viver. Você é que se iludiu, deu para ela um amor imenso, o qual ela nunca compreendeu e jamais teria condições de compartilhar.
Ricardo: - Venho buscar consolo e apoio e vejo que você está tão contente quanto os pais dela com o término do nosso namoro. Você não é nem um pouco diferente deles. A mesma mesquinhez, a mesma insensibilidade. Torcendo todo o tempo para que tudo desse errado e ainda contribuindo para isto. Vejo que não tenho o que falar contigo. Deve estar bastante feliz.
Ricardo não deixa sequer que sua mãe lhe responda, sai e tranca-se no quarto onde começa um monólogo:
Ricardo: - Não há nada compreensível no mundo, nenhum porto seguro, apenas o caos. Um lugar vazio e frio onde as pessoas sempre põem seus interesses pessoais e medos acima dos sentimentos e aspirações. Tudo gira em torno dessa hipocrisia. Sexo, poder, relações entre as pessoas, sempre permeados por mentira e covardia. Quem não tem uma posição social, nome, dinheiro, o que é? É quem tem, o que tem além de coisas exteriores a si, que na verdade estão muito longe de ser aquilo que importa, o ser humano cheio de dúvidas e interrogações que se esconde por trás das aparências. Tudo são sombras, aparências e mentira. Sexo e desencontro. Quanto tempo dura o prazer e com que intensidade o procuramos. Será que o amor é essa aflição que deixa uma sede que esvazia e aflige, ou um sentimento superior, a única coisa pela qual realmente vale à pena a vida? Talvez a morte seja uma libertação. Este amor de que falo, só pode existir realmente dentro de mim, um devaneio que me domina e dilacera.
Começa a pensar em Cristina e cantar a música "Pedaço de Mim".

Pedaço de Mim
Chico Buarque
Oh pedaço de mim, Oh metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar.

Oh pedaço de mim, Oh metade exilada de mim.
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais.

Oh pedaço de mim, Oh metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu.
Oh pedaço de mim, o metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi.
Oh pedaço de mim, oh metade ancorada de mim.
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor, Adeus.

Ao terminar de cantar ele tira um revólver da gaveta e se mata com um tiro. Sua mãe escuta o barulho, e entra no quarto onde começa a chorar desesperada.
Regina (abraçada no corpo moribundo de Ricardo): - Meu filho...

 

 

 

 

 

 

 

16o Ato

Um amigo do pastor Pedro chega perto dele e fala:
Amigo: - Você ficou sabendo que o ex namorado de sua filha se suicidou.
Pastor Pedro: - Não, como você ficou sabendo disso.
Amigo: - Um fiel da igreja mora perto dele e me contou.
Pastor Pedro: - Não quero que minha filha fique sabendo disso.
Amigo: - Bem, vai ser um pouco difícil, ele não mora tão longe assim de nossa igreja, e o assunto é o comentário da semana. Afinal dizem que ele se matou por amor.
Pastor Pedro: - Bobagem, não quero que haja esse comentário na igreja, entendeu?
Amigo: - Tudo bem, vamos tentar abafar esse assunto.

 

17o Ato

Regina chega ao apartamento de Cristina e afunda o dedo na campainha. A mãe de Cristina vem atender.
Antônia: - Deseja falar com quem?
Regina: - Sou a mãe de Ricardo, quero falar com Cristina.
Antonia (com a porta semi aberta): - Ela não está.
Regina empurra a porta e Antônia e entra pela sala adentro gritando:
Regina: - Cristina, Cristina, não saio daqui sem falar com a Cristina.
Pastor Pedro: - Se a senhora não se retirar daqui agora chamarei a polícia.
Nesse momento Cristina aparece na sala.
Cristina: - Pode deixar que eu mesmo dispenso essa senhora, pai.
Pastor Pedro: - Não quero que você fale com ela, filha.
Regina: - Para que você não saiba que o Ricardo morreu.
Cristina solta um grito e despenca desamparada no sofá, chora convulsivamente. Os pais de Cristina ficam sem ação. Regina senta carinhosamente ao lado dela.
Regina: - Primeiro eu pensei em vir aqui gritar contigo, aliviar minha dor, minha raiva, meu despeito. Mas estava errada. Você não tem culpa de nada. Ninguém morre por amor. Vive-se por amor. Ele era uma pessoa muito sofrida, perdeu o pai e teve que trabalhar desde cedo para cuidar do irmão e de mim. Depois perdeu o irmão estupidamente. Era um rapaz, no fundo, apesar da aparência alegre, com uma tristeza enorme no coração. Quando ele a encontrou, junto ele obteve uma nova razão e recuperou a alegria de viver. Eu fui egoísta, não o compreendi. Depois que ele a perdeu, ficou tão só que acabou, num momento de fraqueza, fazendo uma loucura irremediável e se matou.
Cristina: (com a cabeça encostada no ombro de Regina): - O Ricardo não era um fraco. Ele achava que a vida só valia a pena de ser vivida por amor. Eu fui covarde, com medo de perder o conforto desse féretro que é a casa de meus pais. Ele preferiu morrer a viver a morte em vida. Agora, tão tarde, eu compreendo tudo. Que preço tal alto, uma pessoa tão preciosa pagou, para que uma outra descobrisse o amor, a verdade e a vida. Eu queria que você soubesse que ele foi a única coisa que realmente valeu à pena nesses meus dezoito anos de vida. Entregar o meu corpo para ele foi a coisa mais importante e gostosa desses meus dezoito anos. Não consigo te olhar nos olhos. Será que a senhora me perdoa.
Perdôo sim, minha filha.
Será que a senhora me deixaria visitar o Ricardo no cemitério e levar flores para ele?
Regina assente com a cabeça e o ato termina com as duas abraçadas se consolando.

 

18o Ato

Ato final
A igreja reunida canta a musica Segura na Mão de Deus, de repente, o pastor Pedro vê sua filha entrando no culto.
Pastor Pedro: - É com imensa alegria que vejo que minha filha, depois de vencer sua tristeza, retorna ao seio da igreja.
Cristina vai direto até o púlpito, sobe e pede o microfone ao pai.
Cristina: - Gostaria de cantar para a igreja uma música muito especial, que ouvi pela primeira vez na companhia de uma pessoa da qual me lembrarei sempre como um verdadeiro cristão. Cristina canta então a música "Rei morto, Rei Posto" de Edu Lobo e Joyce.

Rei Morto, Rei Posto
Edu Lobo / Joyce
Deixa iluminar
Deixa quem quiser ir
Um dia a verdade vai ter que sair
Mais cedo ou mais tarde não está mais aí.

É, contra a luz do sol não tem argumento
Que possa apagar
Não tem força que segure esse tempo
E faça parar
Ninguém prende o sopro da ventania
Esse movimento nasce todo dia.

Deixa desatar
Deixa a vida fluir
Um dia a verdade vai ter de sair
Mais cedo ou mais tarde não tá mais aí
Por cima do muro ela tem de sair
E a força do escuro não tá mais aí
Com graça e com gosto ela tem que sair
Rei morto, Rei posto não tá mais aí.

Cristina: - Agora, que acabei de cantar, gostaria de dizer algumas palavras à congregação. Gostaria de dizer que estou deixando a igreja de meu pai sem deixar de ser cristã, porque finalmente descobri a essência do cristianismo. Essa essência sempre esteve na minha frente e nunca tive a coragem de vê-la. Foi necessário que eu sofresse a perda da melhor pessoa que já conheci nessa vida para que se me abrissem os olhos, e para que, como Lázaro, eu levantasse e andasse. Hoje descobri que eu não vivia, apenas me escondia de viver dentro da igreja, falando do mundo como se eu não fosse parte dele. Sou uma cidadã também. Sofro e rio como qualquer frágil vida humana lá fora, e a correta atitude cristã está em procurar cada ser humano e nos dar um pouco para cada um, até nos darmos completamente. O pecado, irmãos, e não chamo de irmãos só a vocês da igreja, mas toda e qualquer pessoa, não está na roupa curta, ou na música e dança, não está no palavrão e muito menos no prazer. O pecado está no egoísmo, na insensibilidade, na avareza e na cobiça. O pecado está em nos isolarmos do mundo que Deus nos presenteou com uma atitude superior de grandes julgadores morais. Nós não podemos condenar a vida. Ela é a grande dádiva divina, um milagre maravilhoso e alegre, não um féretro cinza que carregamos todos os dias como maldição. Também não podemos nos esconder na igreja, cantando e rezando à espera da morte. Hoje eu sei, compreendi tudo. Existe um reino dos céus a ser construído, mas é aqui, na terra. Com coragem, com verdade, com amor e sexo, com compreensão e carinho. Sem condenação, sem atitude hipócrita falso moralista. É triste ver que Cristo veio pregar a igualdade e a fraternidade enquanto nós apenas nos escondemos da vida, defendendo nossos interesses no culto dominical, enquanto a semana inteira nada fizemos para melhorar o mundo. Será que nos relacionamos com a mensagem de Cristo apenas pelo fato de não bebermos, não fumarmos, andarmos com roupas inconvenientes ao nosso clima tropical e com uma bíblia embaixo do braço? Isto não é cristianismo, é apenas uma atitude formal de aceitação de uma doutrina qualquer. Cristianismo é escutar música, é dançar, é rir e muito mais do que isso ainda. É se preocupar com o futuro dos nossos filhos, com o futuro da humanidade, com o futuro da Terra. É ter dignidade e não vender a consciência. É ter coragem e procurar realmente a verdade em lugar de comprá-la pronta de um pastor ou seja lá de quem for. Se for necessário dar até a vida pela verdade. Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, lembram? Pois, então. Saio da igreja nesse momento, não por leviandade, saio porque simplesmente não encontrei a verdade aqui.
Cristina entrega o microfone a seu pai e sai andando calmamente da igreja, que está como que hipnotizada, em silêncio, esperando que ela se vá.

FIM.

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