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Revivescer
Patrícia já nem acreditava mais no amor. De sua vida, como uma
impressão em escala de tons cinza, este sentimento já não
mais fazia parte. O dia era uma sucessão de folhas rasgadas no calendário,
e trabalhar, e cursos, e diplomas, e promoções, e ocasiões
sociais formais, com que ela preenchia seu tempo e pensava poder enganar sua
vida. E assim ia vivendo, se dizendo feliz. Morava só, às vezes
visitava pai e mãe, aquele papo careta, marido e filhos, do que desistira.
Sexo, só furtivamente, meio com namorados rápidos ou flertes,
que não deixavam marcas. Já estava na casa dos trinta e pensava
paixão como algo adolescente e que jamais tornaria ocorrer em sua vida.
Daquela doce menina com cacho de cabelos meio castanhos, meio dourados, caindo
pelas costas, não sobrara muito do riso, só da beleza, na verdade
uma beleza acre e autoritária que afastava tudo que se aproximava. E
assim ia, de cargo em cargo, de jantar em jantar, de trabalho em trabalho, sem
parar, sem pensar mais em desejo, como uma cama sempre arrumada, nunca mais
desfeita para o amor, sem cheiros de amor consumado, um quarto com odor de vazio,
uma vida em linha reta, igual, sucessiva, previsível.
Um dia fora obrigada a ir a uma festa de aniversário de um chefe, numa
casa de veraneio. Vontade tinha nenhuma, mas seria uma desfeita. Era um chefe
nada formal, e na festa havia muita dança e bebida. Ela bebeu, socialmente,
ela dançou, socialmente, ela sorriu, socialmente, ela se sentou, socialmente,
ela conversou, socialmente, ela falou socialmente, ela olhou, socialmente. Tudo
tão contido que era possível medir num paquímetro suas
atitudes e criar um tratado de engenharia só sobre tal comportamento.
Era de uma geometria reta, onde tudo se encaixava, aresta por aresta. Lado por
lado, sem espaços para curvas em seus risos, sem abismos para enganos
em suas certezas. Era tão coerente que dela a certeza se envergonhava
por lhe ser inferior. Era uma pessoa calculada, arquitetada, que não
via o luar ou o vento, nem se dava da conta de alento ou tempo.
Todos saíram para continuar a festa numa boate. Ela não quis ir.
Aceitou o convite de uma amiga, que tinha uma casa perto para dormir. Esta amiga
se chamava Alessandra, tinha um irmão chamado Omar. Depois, Alessandra
voltou para festa deixando os dois a sós. Foi um total desconforto no
ar. Enquanto Patrícia estava bem vestida da cabeça aos pés,
parecendo uma boneca embalsamada, Omar era um desequilíbrio só.
Uma calça jeans puída, uma camisa de mangas curtas, um tênis,
simpatia no rosto, sorrisos sempre na pele morena. Ela se sentou e pediu a ele
uma toalha, pois queria tomar banho para dormir. Ele pegou a toalha e um violão.
Ela saiu do banho com uma bermuda bem comportada e uma camisa de mangas compridas.
Ele já estava tocando. Era uma melodia linda e ela não pode deixar
de dar atenção, soava assim:
AQuem passou por esta vida e não viveu,
Pode ser mais mas sabe menos do que eu,
Porque a vida só se dá para quem se deu
Para quem amou, para quem chorou, para quem sofreu.
Quem nunca curtiu uma paixão,
Nunca vai ter nada não...@
Ela se sentou numa cadeira longe dele e perto da lareira apagada, murmurou:
- Bonito...
- É Vinícius.
- Não sabia...
Depois um silêncio, outra música.
AEu sem você não tenho porque
Porque sem você, não sei nem chorar...@
Patrícia estava realmente tocada pela música. Ele sabia cantar
muito bem, tocar melhor ainda e o repertório era sensível e lindo.
Ela não conhecia praticamente nenhuma, mas ali, sozinha, foi se deixando
levar pela emoção e, quando deu por conta, estava sentada, com
as pernas dobradas ao lado do corpo, no chão, próximo da cadeira
onde ele tocava. Omar estava visivelmente fascinado com ela. Ela era muito linda,
de uma beleza glacial, bem verdade, mas era. Ele tocava o violão e seus
olhos se tocavam e a música se fazia mais linda e a voz se fazia mais
meiga, como que um canto de primavera saindo viril de dentro de seu peito:
AUm dia Marcela se achou e se deu,
Seu corpo se vida me amou foi meu
Das dores, vencida, nasceu a mulher
Que sabe o porquê,
Que se abre e se vê...
...Os homens, por pressa, por medo de amar
Passaram por ela, sem nada encontrar
Levaram comigo, o engano de quem não viu
Nem sabe do que fugiu
Da estrada, da estrela.
Ficaram comigo, seus nervos se dando aos meus...@
Ele agora dedilhava o violão levemente como a tocar no corpo daquela mulher tão próxima. Seus olhos se tocavam a todo instante. O verde mar dos olhos dela, deixavam de ser glaciais e passavam a ser de uma profundidade dos oceanos, em chuvas estivais, levemente molhados de lágrimas com cheiro de terra e ela percebia... apenas percebia... percebia como se ele fosse uma parte esquecida do ser dela, uma parte sensível semi-morta como Lázaro... as notas do violão, a poesia lhe dizia agora, aquela mulher maravilhosa e esquecida da vida, levanta, toma de teu amor e anda...
AVocê é mais bonita que a flor,
Quem dera a primavera da flor
Tivesse toda esta beleza.
Perfume da natureza
Numa forma de mulher@
E ele cantou esta estrofe já navegando nas águas dos olhos dela. Agora os olhares não mais se desviavam, se tocavam intensamente, se falavam surdamente, se incendiavam loucamente...
AUm dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar...
... E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos...@
Ela o interrompeu, com um leve toque no violão. Ele parou e nada fez.
Ela levemente afastou o violão e debruçou-se sobre ele, nunca
houvera para ela um desconhecido tão conhecido. Sem saber sua profissão,
procedência, diplomas, títulos... estava intuitiva e instintiva
como antes jamais houvera... sentia o cheiro de seu macho, e se comportava como
uma fêmea da espécie... Começou a lambê-lo, como uma
cria... E a pele dele tinha gosto de suor, gosto de macho... Um aroma diferente,
que a arrepiou de um jeito que ela pensou que fossem tremer as paredes juntas,
desconjuntar seus alicerces, mas eram as pernas dela que suavam e tremiam...
Ele não ousava sequer tocá-la, observava paralisado, enfeitiçado,
como a olhar uma deusa glacial. Logo ela lhe tomou a boca e perderam em horas
de beijos angustiosos sem fim. Na verdade, perderam a noção do
tempo e do espaço. Rolavam por entre tapetes até parar em milhões
de beijos num capacho. Ela se sentia como uma garota. Ele não era seu
amante, não!!! Era seu namorado!! E como esta palavra suava doce: namorado.
- Você quer me namorar? B ela perguntou.
- Sim, para sempre...
Eram palavras desconexas, absolutas, de um amor adolescente atrasado, e que
chegava profundo e sem aviso. As roupas foram saindo praticamente sozinhas,
e iam voando pela sala como pedaços de pudície e medo abandonados.
Mas não tinham presa em se penetrar, em se encontrar corpo dentro de
corpo. Tinham até receio de quebrar o encanto. Suas línguas brincavam
soltas, em mil beijos e pequenos chupões, descobrindo coxas, pelos, seios,
virilhas, bicos de peito, queijos, covinhas do rosto, demoravam-se em ouvidos
e pescoços num tesão que parecia ia lhes fazer invadir o espaço
e sair dos seus próprios corpos para descobrir transubstanciados a alquimia
daquele momento mais que perfeito.
A penetração veio calma e profunda. Ela sentiu dor, como há
tempos não sentia. Ela gritou alto e rasgou as costas dele com os dedos.
Era uma emoção renovada, parecia uma novata e ele um menino perdido.
Ele desculpou-se, beijou-a, beijou-a, beijou-a, beijou-a, beijou-a, na boca,
nos olhos, no pescoço, nos seios. E ela o puxava para dentro, como a
querer devorá-lo, aranha glacial. O sexo dela torcia e apertava o membro
duro dele com um desespero de apocalipses. E ele sentia que estava mergulhado
nela, sem mais limites, tocando-a no mais íntimo, num momento de pura
mágica, na mais delicada emoção corporal que os dois já
sentiram. Era como se ele estivesse no corpo dela e ela dentro dele, num mimetismo
sobrenatural, onde a vontade dos dois era uma só, como espíritos
almagamados. Ele se derretia e se entregava, ela voava embaixo dele. Havia uma
mistura de prazer, dor, entrega, malícia, ingenuidade, amor, safadeza,
sal, pimenta, açúcar, uma alquimia que fazia o quarto cheirar
a bruxedos e os amantes embriagarem-se no mais doce cheiro que já sentiram
que era o dos seus corpos molhados de sexo misturados em perfume. O orgasmo
veio lento mas violento, numa súbita explosão conjunta que os
fez perderem-se de si mesmos, neste terremoto, cataclisma, vulcão, nada
os salvava, gritos, urros, beijos, mordidas, beliscões, nada, nada os
fazia pisar a terra, habitaram por minutos uma dimensão cósmica,
onde eram deuses sem pecados, nascidos um do ventre do outro, numa fome angustiante
que fez renovar seguidas vezes esta penetração.
A irmã de Omar voltou da rua e os surpreendeu assim, numa conjunção
tão profunda, num tão estertor que eles sequer a perceberam. Ela
voltou e ficou na rede da varanda a esperar. Horas se passaram em torvelinho.
Nada parecia pará-los. Alessandra adormeceu, foi acordada pelos primeiros
raios de sol do dia. Qual não foi sua surpresa ao entrar em casa e ver
a porta do quarto trancada. Os amantes não deram por si ou pelo mundo.
Só seu irmão saiu durante a tarde para pegar comida e novamente
se trancar no quarto. Era domingo.
A vida não voltou ao normal na segunda. Patrícia não era
a mesma. Seu olhar glacial se derreteu. Hematomas no seu braço a denunciavam,
fora uma alegria e gentilezas anormais. Olheiras passaram a se ver nela e um
ar ausente e meio abobalhado. Trocou seu apartamento solitário por uma
casa comum com cachorros e tudo, e noites de uma guerra carnal que a consome
e a torna sempre uma outra pessoa, cada vez mais alegre, e que só conta
seus anos pelo dia que conheceu aquela canção, que agora cantarola
sem parar:
A Quem passou por esta vida e não viveu...
Não há dor pior do que a descrença.
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão...