O PASSADO DA ÍNDIA ATUAL, PAQUISTÃO E HISTÓRIA

Autor: Maruf Khwaja

14/08/02

Resumo:

O eterno conflito entre Índia e Paquistão tem sua origem nas circunstâncias de sua criação. A teoria das "duas nações", que justificou a partilha, está morta mas as consequências de políticas centralistas e uma história falsificada ainda permanecem.

Conteúdo:

Não são os fatos que estão em questão. A cronologia dos eventos que quase levaram ao primeiro conflito nuclear do mundo é bastante conhecida. É lógico que Gurharpal Singh está certo quando diz que as compressas de gelo dos Estados Unidos, aplicadas com persistência, conseguiram fazer baixar a temperatura. A febre da guerra desceu, mas o vírus letal que a causou permanece no corpo político da entidade sudeste asiático. Sabemos que os vírus não morrem com compressas de gelo ou com qualquer outra forma de intervenção externa. O paciente tem que desenvolver seus próprios mecanismos de defesa, seus anticorpos, que o possiblitem realizar o trabalho sozinho.

No caso da Índia e Paquistão, isto exige várias medidas preliminares. A primeira delas é a aplicação da vontade, um  exercício de auto-avaliação, e uma análise absolutamente honesta das opções que poderiam indicar o caminho para uma solução.

Aqui temos um problema. Ambos os países jamais mostraram capacidade ou inclinação para conduzir este exercício penoso - não em público, pelo menos. Diferentemente da percepção popular, as partes recalcitrantes nem sempre foram governos nos dois países. As sociedades que eles representam, que parecem congenitamente incapazes de chegar a um acordo baseado na realidade, precisam participar desta responsabilidade. Isto, é claro, no final, se transfere para a forma de seus respectivos governos (ou, para ser mais exato, desgovernos) e  na duração do tempo que isto vem acontecendo - alguém diria desde a eternidade.

Políticas incompetentes invariavelmente liberam gênios incontroláveis. Na Índia-Paquistão, certas atitudes políticas e sociais ficaram profundamente enraizadas. Ao analfabetismo e à pobreza - formas tradicionais de comportamento e percepções públicas - agora pode-se acrescentar a corrupção desenfreada não só no governo mas na sociedade como um todo.

Indianos e paquistaneses, salvo pequenos bolsões da elite esclarecida, agora são mais corruptos ou mais suscetíveis à corrupção e, assim, intelectualmente mais desonestos e menos tolerantes do que eram há 30 anos atrás. Há um grande percentual de evasão. Cidades e aldeias mal administradas, mal planejadas, com suas estradas  esburacadas e valas cheias são um testemunho da inépcia e descaso institucionais, bem como da falta de recursos ou desperdício cruel. Conflitos étnicos periódicos indicam sociedades arruinadas pelo fanatismo e intolerância social, étnica e religiosa composta pela má educação e propaganda.

Raízes do Conflito

Nem sempre foi assim. No caso do Paquistão, suas origens podem estar na Queda de Dhaka e na criação de Bangladesh. Dos escombros do Paquistão original veio uma rajada de ar fresco produzindo uma mensagem verdadeira, porém dolorosa: a teoria das duas nações, a base para a criação do Paquistão, estava morta.

Esta teoria, desenvolvida, entre outros, por Jinnah, o líder do Movimento Paquistão - levava em consideração o fato de que viviam no subcontinente indiano duas nações, hindus e muçulmanos, e que suas identidades distintas davam direito a cada uma delas a um estado em separado. Para apoiar esta alegação, os protagonoistas salientavam que havia grandes áreas da Índia (principados ou províncias) nas quais os muçulmanos eram a maioria.O fato de pelo menos 5 dessas regiões - Punjab, Sindh, Baluquistão, Fronteira Ocidental Norte e Caxemira (um estado principado) - serem  geograficamente contíguas, fez com que a idéia de um Paquistão se tornasse não só plausível como obrigatória. A sexta região, Bengala, na Índia oriental, era, admitiam eles, separada por um território de maioria hindu, mas também poderia ser incluída no Paquistão, afinal de contas, este era o mundo moderno onde deveria haver uma coexistência civilizada entre estados - e certamente a Índia hindu concederia permissão para o acesso aéreo e terrestre aos dois lados do Paquistão.

À primeira vista, este foi o caso do Paquistão. Mas, por trás do argumento, havia um medo real de que assim que a Inglaterra fosse embora, os hindus começariam a se vingar dos muçulmanos pelos mil anos de governo, nem sempre benevolente. (O que não perceberam é que a vingança aconteceria com ou sem o Paquistão).

Havia dois tipos de nacionalistas hindus: os progressistas modernos, como Gandhi e Nehru, cuja educação ocidental enraizara neles os ideais seculares e democráticos: e os defensores tradicionalistas (agora no poder) do ideal Mahabharata, de que todo o subcontinente, de Cabul até Colombo, pertencia à nação hindu (Akhand Bharat) e os "estrangeiros" poderiam voltar para o lugar de onde tinham vindo.

O Congresso Nacional Indiano, basicamente hindu, liderado por Gandhi e Nehru, sentiu-se afrontado com a idéia de que o movimento de independência da Inglaterra pudesse ser sequestrado pelas exigências de muçulmanos separatistas. Da mesma forma que os outros,  inclusive uma grande quantidade de muçulmanos que não eram partidários de Jinnah, eles percebiam várias falhas no caso do Paquistão.

Em primeiro lugar, disseram eles, o conceito de nação no mundo moderno não era definido pela religião. Havia vários outros fatores que contribuíam para o conceito de nação que não apareciam no argumento paquistanês.

Em segundo lugar, mesmo que a religião fosse admitida como uma base lógica para a formação da nação, havia no subcontinente não duas mas, pelo menos, 8 ou 10 comunidades religiosas distintas que poderiam, igualmente, exigir a criação de um estado, entre eles os sikhs, os jains e uma população crescente de cristãos (neste último caso, graças a um proselitismo agressivo patrocinado por uma organização missionária ocidental).

Em terceiro, o Congresso considerou que tendo convivido por séculos, todas essas nacionalidades ou grupos étnicos estavam implacavelmente ligados em grande parte à Índia e que seria impossível a separação sem um banho de sangue e destruição material inaceitáveis.

A primeira manhã da criação ...

"A primeira manhã da criação escreveu o que a última madrugada de acerto lerá" (’ (Rubaiyat de Omar Khayyam). O Paquistão, truncado e deformado como foi em seu nascimento, foi quase um candidato improvável para a nação que era reivindicada. No fundo, seus fundadores talvez soubessem que não funcionaria.

A terrível 'dificuldade' geográfica estava lá para todos verem (exceto os obtusos divisionistas ingleses) como um motivo principal; o outro motivo era o uso de uma ideologia religiosa impraticável pelo sectarismo beligerante e pelas facções. Historicamente, as religiões muito mais dividem do que unificam. Elas não são um substituto para a cultura conforme afirmam muitas crenças fundamentalistas. Elas não são e nem podem ser ponte para divisões culturais. E isto ficou provado no caso do Paquistão.

Tem-se como certo que o que aconteceu com o Paquistão oriental (depois Bangladesh) era inevitável. A mensagem era que a tese das duas nações não funcionava. Era impossível construir ou manter uma nação tendo por base valores religiosos (apenas 50% deles verdadeiramente partilhados). Outras partes do Paquistão se desmantelariam no decorrer do tempo porque o motivo  que as mantinha unidas não era forte o suficiente (daí a determinação desesperada dos partidos religiosos para provarem aquele erro).

A impossibilidade do Paquistão original também deve ter ficado evidente no primeiro ano de sua existência, com os conflitos de língua disseminados no Paquistão oriental onde praticamente toda a população se levantou em protesto pela imposição do urdu como a única língua nacional do Paquistão. O  suborno - a inclusão do bengali como uma língua co-nacional - não surtiu efeito. Ninguém no ocidente se preocupou em aprender o bengali, que os punjabis condenavam como uma "língua hindu".

Centralização herdada

A mensagem sobre a falência da tese das duas nações foi arquivada na poeira dos arquivos mentais onde os dois países tradicionalmente enterram verdades desagradáveis. Houve uma razão muito simples para este enterro. Se a tese das duas nações estava morta então qual seria a alternativa? Voltar a ser uma nação? Ou admitir que a região, na verdade, era composta de várias nações, cada uma com identidade linguística e cultural diferente?

A última opção teria que trazer um mínimo de concessão de autonomia plena para cada uma das vinte e tantas entidades do subcontinente, para que elas pudessem aspirar à satisfação das aspirações nacionals que o governo colonial tinha frustrado por tanto tempo. Mas, quase 200 anos de governo inglês estabeleceram firmemente o conceito de centralização de poder governamental, que se tornou mais forte com todo sinal divisionista entre os principados e outros estados. Estabeleceu-se uma tradição que foi incorporada aos sistema federal, que os dois governos herdaram na independência.

Este centralismo foi mantido cuidadosamente, o cuidado mais evidente na forma como os governos dos dois países esmagaram ou refrearam aquilo que percebiam como movimentos étnico-nacionalistas separatistas nas  remotas províncias e regiões . A Índia esmagou seus movimentos em Nagaland, Khalistan, Tamil Elam, Naxalite-Bengali - e, é claro, a continuada rebelião na Caxemira, que não chega a ser um problema como uma caixa de Pandora. Uma vez aberta e metade da Índia desprende-se. O Paquistão mais ou menos isola seu nariz no Paquistão oriental para vingar-se, enquanto seus soldados têm sido enviados sistematicamente para o Baluquistão e Sind para abafar mesmo que não completamente, os movimentos nativos pela independência.

Uma alternativa federal

Tudo isto poderia ter sido evitado com a devolução inicial.  As províncias ou as entidades étnico-nacional dificilmente teriam sido deixadas à deriva pela forma como a Inglaterra tratou os países que ela criou com a partilha. Havia uma estrutura constitucional no local. Tudo o que era necessário para devolver o poder àquelas unidades era a instituiçao de mudanças adequadas na estrutura federal. Porém, as pessoas que governavam a India e o Paquistão, apesar da aclamação internacional que alguns receberam, eram pessoas medíocres despreparadas para considerarem uma opção como esta.

Bem depois de ter deixado o governo, mas não muito depois da supressão do movimento sikh de independência realizada por Indira Gandhi e seus filhos, seu antigo ministro do exterior, Swaran Singh, passou por um aeroporto estrangeiro onde  foi cercado por um grupo de jornalistas de plantão. Até então, Swaran tinha conseguido disfarçar qualquer demonstração pública de sua angústia pela forma como os sucessivos governos indianos, inclusive aqueles aos quais ele servira, tinham tratado as aspirações sikh.

Desta vez, ele se abriu um pouco, revelando sua percepção de que, sob uma liderança de visão, corajosa, o futuro do subcontinente como um todo poderia ser uma confederação. Ele acreditava que, no final, as aspirações nacionais dos grupos étnicos individuais que compunham a população teriam que ser reconhecidas. E isto não implicaria na desintegração ou da Índia ou do Paquistão. Porém, os poderes teriam que ser devolvidos. As unidades confederadas precisariam ser fortalecidas. Se isto acontecesse nos dois países, as fronteiras e divisões entre eles ficariam irrelevantes.

Singh também tratou pormenorizadamente dos mecanismos de devolução. As províncias indianas (e paquistanesas) são muito grandes e densamente povoadas, o que era um motivo para que fossem difícies de ser governadas. Era preciso que fossem subdividas em entidades menores. De acordo com sua percepção, o resultado seria uma democracia mais eficaz.

Os membros do Parlamento que agora representam um eleitorado de mais de um milhão, representavam um décimo, ou menos, daquela população.  Tendo em vista que todos os níveis de governo sofreriam cortes, os governantes (ou representantes) seriam mais acessíveis aos seus eleitores. Nenhuma unidade desejaria se separar  porque o centro teria apenas o mínimo de súditos - ecos do Six Points Programme, de Mujibur Rahman, que o então governante do Paquistão e quase que a maioria dos políticos da ala ocidental tinham recusado. O aumento das receitas seria de domínio das unidades federadas e, na medida em que nenhum poder residual seria usurpado, ninguém se sentiria ameaçado ou inseguro.

Devolução: a contra-gosto político

Talvez se Swaran Singh tivesse vivido ou propagado suas novas crenças com a tenacidade e determinação com que  serviu aos primeiros ministros centristas, alguns políticos poderiam ter levado o bastão a um final vitorioso. No entanto, o sonho de Singh, até onde pode se perceber, morreu com ele. Não há ninguém de estatura no país para levá-lo adiante.

A dificuldade em vender esta idéia à atual geração de políticos míopes, egoístas e inescrupulosos, é que, além de seus erros óbvios, eles também são covardes e pouco inventivos para assumirem uma posição radical. São prisioneiros dos gênios que eles próprios soltaram. A mídia também é muito tímida, muito tacanha, ou, então, sob o controle dos regimes ou daqueles com interesses pessoais nos chamados governos fortes para enfrentar o desafio.

O general Musharraf, com mais ou menos poder absoluto, estari melhor gabaritado para tentar medidas para a verdadeira devolução do Paquistão, mas, também ele é muito inexperiente para ter habilidades políticas para manobrar a corrida do Paquistão de políticos revanchistas e reacionários. No entanto, ele poderia catalisar uma mudança de atitude pública, por mais difícil que possa ser, pela abertura de um debate público a respeito do assunto, salientando, talvez, que a devolução poderia até conter um germe de solução para o problema da Caxemira e com isto, o problema da coexistência com a Índia.

General Musharraf, with more or less absolute power, might be better placed to take the first tentative steps to true devolution in Pakistan but he is too raw a hand to have the political skills to outmanoeuvre Pakistan’s usual run of revanchist, reactionary politicians. But he could catalyse a change of public attitude, hard though it may be, by opening a public debate on the subject, emphasising perhaps that devolution might even contain a germ of a solution of the Kashmir problem and with it the problem of coexisting with India.

Trata-se de um desafio formidável. Um indiano ou um paquistanês é tão passível de mudar de comportamento quanto mudar sua religião. O problema é que as pessoas comuns desconhecem sua própria história. A pesquisa histórica objetiva e verdadeira é quase uma impossibilidade no Paquistão. Os jovens formam-se no fanatismo e na ignorância. Tão enraizada é a percepção do público do que é considerada "ideologia do Paquistão", que qualquer idéia que sugira uma outra estrutura é considerada heresia. Os controladores burocráticos dos bancos de dados e pesquisas, reforçam a resistência à verdade e obstruem o caminho para isto. A falsificação da história chega facilmente na região, talvez mais facilmente para os pasquitaneses do que para os indianos.

O passado é nosso. Isto remete à tradição dos relatos acadêmicos, escritos em nome ou por conta de governantes que retrocedem ao período mogol. A maior parte da história paquistanesa tem por objetivo confirmar   preconceitos e noções  existentes. Grande parte dela goza da condição de ícone a ser adorado - são relatos transmitidos por atores em certos acontecimentos históricos, tais como aqueles que levaram à independência, as opiniões dos fundadores do movimento, mesmo seu caráter, não podem ser reescritos à luz de novas descobertas. Esta autocensura se aplica igualmente aos eventos dos primórdios da história islâmica. Todos os registros precisam confirmar os "fatos" conhecidos.

Durante muito tempo,também os indianos não foram imparciais. Em seus relatos dos acontecimentos sobre a partilha da Índia, os muçulmanos foram, de um modo geral, jogados em papéis anti-heróicos quando não de perfeitos vilões. Mais alarmante, a história antiga indiana está sendo reescrita para dar suporte ao clima de extrema direita predominante.  Estamos constantemente "redescobrindo" coisas de que tomamos conhecimento de forma diferente, como a última percepção de que não houve aquela coisa que ficou conhecida como conquista ariana e subjugação das raças antigas como os dravidianos e pré-dravidianos.

E nem esta nova história indiana está limitada somente à Índia mas pode ser encontrada em alguns conhecidos "campus" do mundo ocidental. Então, a história inventada pode ser vista como o maior obstáculo no caminho da mudança de atitudes modificadoras, da reabertura de mentes fechadas, na reversão da tendência militante da política indiana e paquistanes e proporcionando um fim ao velho confronto.

O preço do exílio

A nível pessoal, as lembranças daqueles dias traumáticos, quando os dois países nasceram em meio a um batismo de sangue, liberam um misto de emoções. Eu tinha oito anos na época, muito jovem para apreciar as implicações ou mesmo o significado de "independência". Mas, compreendi a partilha - e tudo o que ela acarretou - muito rapidamente. Ela dividiu nossa família - os mais instruídos a favor da Índia (até eles serem expulsos), e o resto optando pelo paquistão.

Forçada ou voluntária, a migração destruiu famílias e empobreceu, talvez para sempre, aqueles que sobreviveram aos seus rigores. Jovens e velhos em nossa extensa família foram apresentados ao que hoje chamam de genocídio. A provação maltratou nossos corpos, alugou nossas almas e tornnou-nos amargos e cínicos.

Somente agora, no entardecer de nossas vidas, é que a amargura e o cinismo cederam espaço a uma sabedoria triste e melancólica. E isto serviu bem para aqueles dentre nós que se mostraram incapazes de digerir tudo o que o Paquistão renunciou em meio século de crises recorrentes e que tiveram que migrar, tornar a migrar e migrar mais uma vez por nossa sobrevivência até  chegarmos a um lugar que não podemos chamar de país, ou povo, ou cultura próprios.

Não serve de consolo saber que um número até mesmo maior de indianos passou pelo mesmo processo. Outro dia, ouvi alguém na Radio 4 chamar a isto de "Diáspora Indiana". Muito fantasioso, muito judeu, receio. Como eles disseram a uns cem anos atrás, são os britânicos que encontraram uma palavra que unifica seus inimigos: Pakis!

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Maruf Khwaja é um jornalista e escritor paquistanês. Ativista nos anos 60 e 70, ele tornou-se um redator dos discursos do Presidente Bhutto. No exílio depois de Zia-ul-Haq tomar o poder, ele editou The Khaleej Times, em Dubai. Atualmente, dedica-se a escrever suas memórias.
Copyright © Maruf Khwaja, 2002. Publicado por openDemocracy.
Last Updated :14/08/02 16:04:32