O Conceito de Estrutura no Percurso Lacaniano
Charles Elias Lang*
O que por ora apresento é parte de um texto maior que intitulei de "Estruturas Existenciais". Neste texto, averiguei a distinção entre narrativa e discurso, ou história e estrutura, e as suas conseqüências na clínica psicanalítica. Em tal projeto, trabalho com a hipótese de que o declínio da imagem social do pai e suas conseqüências estão na raiz e são a causa da emergência histórica do psicanalítico. Dentro desta perspectiva, procuro encontrar o efeito deste declínio naquilo que chamo estruturas existenciais. Por questões de cunho metodológico, tenho visitado autores como Louis Dumont para compreender o que ele chama de "sociedades tradicionais"- ou "holistas"- e "sociedades individualistas". Neste percurso, defrontei-me com o conceito de organismo e organização, e propus-me a uma reflexão sobre o conceito de estrutura.
Ora, quando nos pomos a escutar um paciente, o que ouvimos é uma história de vida, um todo articulado, orgânico, onde aquilo que "funciona" em distonia com o todo é patológico, onde temos eventos, momentos de fixação que se repetem? Ou a clínica psicanalítica é uma clínica estrutural onde o discurso funda lugares e relações, onde tudo o que se dá está referenciado à transferência?
O interesse do texto, que o leitor agora tem em mãos, ainda que extraído do contexto original, é a apresentação de um esquema que permitirá aos leitores de Lacan uma apreciação do todo de sua obra, a compreensão de que certos textos estão dentro de um quadro específico de preocupações e de que o Analista, ao formular suas teorias, acha-se empenhado com questões que não são transparentes no momento da escrita de um texto ou no momento em que sua fala é falada nos Seminários.
Na psicanálise, foi a leitura do discurso freudiano, ou o retorno a Freud realizado por Lacan que permitiu o estabelecimento rigoroso e sistemático do conceito de estrutura. Jacques Lacan, de um modo genial e bastante inventivo, apoderou-se de alguns instrumentos da etnologia (ou antropologia estrutural) e da lingüística para formular o campo psicanalítico fundado na fala e na linguagem. Mas isto se dá numa Segunda fase de seu trabalho e, para tornarmos isto mais legível, dividimos o percurso de Lacan num Lacan I, outro Lacan II e um Lacan III, e as suas articulações por referência aos registros do Imaginário, do Simbólico e do Real.
Lacan I:
Neste momento, o percurso de Lacan está fundado no registro do imaginário e gira ao redor da categoria de organização. Aqui o percurso de Lacan define-se em sua preocupação com os fenômenos especulares da constituição do ego e com seu reverso, isto é, a promoção, pela experiência psicanalítica, de uma deconstrução nas suas múltiplas marcas identificatórias. O trabalho de Lacan dá-se ao redor da categoria de organização aplicada ao ego, num campo teórico eminentemente intersubjetivo. Aqui Lacan inspira-se na fenomenologia (principalmente, em Hegel e Edmund Husserl), na etologia (p.ex., os trabalhos de Henri Wallon1) (1879-1962) e da psicologia da Gestalt (ou psicologia da Forma). Já em 1936, Lacan articulava sua tese de doutorado com o estágio do espelho.
Esta tese apresentou-se como uma singularidade naquilo que era a clínica francesa das psicoses, pois ela era bastante determinada pelo ensino do psiquiatra e filósofo Karl Jaspers, sendo bastante difícil de entender a tese de Lacan sem a leitura da Psicopatologia geral (1913) de Jaspers, que insistia na diferença entre compreensão e processo nas psicoses. No entanto, aquilo que era considerado por Jaspers como um processo orgânico foi deixado de lado por Lacan.
Um salto de dez anos permite-nos chegar em Sobre a causalidade psíquica (1946), onde Lacan reestrutura sua tese e apresenta a loucura como limite da liberdade: "E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a sua loucura, como não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade". O principal adversário neste texto é Henry Ey e suas teses sobre a causalidade psíquica nas psicoses. Lacan articula a loucura com uma identificação do ser com a liberdade, ou seja, nas psicoses o ideal ocuparia o lugar da infinitização da liberdade. Aqui temos referências a Hegel e à função do Ideal na lei do coração. Neste texto, a função do Ideal nas psicoses não permite ainda pensar os desenvolvimentos posteriores, como a passagem do esquema R para o esquema I2, no qual o ideal do eu ocupa o lugar do Outro.
Neste texto de 1946, temos a oposição entre o Ideal e sua função e o Outro, sendo este o princípio que ordena a tese de Lacan, opor o lugar do Outro ao lugar do Ideal. O seminário III sobre As psicoses, de 1956, explora o campo das psicoses a partir dos resultados obtidos anteriormente, acrescentando-se a tese do inconsciente estruturado como uma linguagem. O ideal não só é definido do ponto de vista de sua função no estágio do espelho, mas também é deduzido à estrutura do Outro e em oposição a ele.
No final dos anos 50, Lacan produziu um ensino sobre a obra de Daniel Lagache que é uma espécie de ab-reação do seu percurso até então. Lagache pretendia desenvolver uma personalidade psicanalítica centrada na obra de Freud, baseando-se na idéia de intersubjetividade, e que se apoiava na psicologia do ego do triunvirato Kris, Hartmann e Lowestein. A crítica de Lacan tem um ar de autocrítica e de elaboração. Ali Lacan realizava uma desconstrução teórica das hipóteses que balizavam seu percurso anterior, marcando na Psicanálise a incorporação do conceito de estrutura, produzido pela Lingüística, pela Fonologia e pela Antropologia Estrutural (ou Etnologia).
Lacan II:
Aqui o percurso de Lacan está fundado no registro do Simbólico e na categoria de Estrutura. Neste contexto, há o desenvolvimento teórico do registro do Simbólico colocando limites ao registro do Imaginário em psicanálise e enunciando o registro do Simbólico como sendo o registro dominante do campo psicanalítico. Aqui temos o estabelecimento rigoroso e sistemático do conceito de estrutura e o campo psicanalítico é formulado fundado na "fala" e na "linguagem".
O conceito de inconsciente é formulado como sendo uma realidade transindividual que se constitui na e pela linguagem. O modelo da linguagem seria a matriz teórica para se representar a existência e o funcionamento psíquico no registro do inconsciente. Para Lacan, o registro Simbólico seria a instância dominante no psiquismo humano e seria fundante do sujeito do inconsciente, não existindo pois qualquer possibilidade de se enunciar o mesmo na exterioridade do registro do Simbólico. Neste momento, Lacan postula a hegemonia teórica do Simbólico. Assume-se uma perspectiva estruturalista associada às considerações dos registros do Imaginário e do Real como também constitutivos da realidade humana. Agora parece importar a Lacan a inscrição da psicanálise na razão estruturalista pois esta seria a condição possível de sua cientificidade. O inconsciente passa a ser enunciado como o objeto teórico da psicanálise – no sentido em que a epistemologia regional define o que é "objeto específico" de um "discurso científico". O sujeito do Inconsciente seria o objeto teórico da psicanálise e esta, como ciência conjectural, seria de fato e de direito um saber da interpretação – sem ser, no entanto, uma hermenêutica, como Paul Ricouer pretendia demonstrar na sua leitura de Freud.
O ser do inconsciente é enunciado como um conjunto articulado de significantes e o sujeito do inconsciente como um intervalo entre significantes, sem se atribuir significações substanciais ao inconsciente.
Lacan III:
A partir dos anos 60, Lacan passa a focalizar seu interesse maior no desenvolvimento progressivo do lugar teórico do registro do Real em sua leitura da psicanálise. O que, até então era uma palavra, começou a assumir o status de um conceito e, com isto, a teoria de Lacan passou a representar a experiência psicanalítica sob o registro predominante do Real, destronando a hegemonia do registro do Simbólico, sustentada até então.
Neste contexto, temos a repetição de um movimento anterior. Assim como o desenvolvimento teórico do registro do Simbólico colocara limites ao registro do Imaginário em Psicanálise, instituindo o Simbólico como registro dominante; da mesma forma, a teorização do registro do Real colocou limites ao do Simbólico e destitui-o de seu lugar hegemônico, como antes havia ocorrido com o registro do Imaginário. Isto foi motivado, principalmente, pelo reconhecimento de impasses das categorias de simbólico e estrutura em psicanálise. Estes impasses foram gerados por certas dificuldades na teorização do ato psicanalítico, por questões do fim da análise, pela distinção entre "repetição do mesmo" e "repetição diferencial", assim como a colocação em jogo e a formulação do objeto a como objeto causa do desejo. Estas questões colocaram a teorização diante de limites e de impasses, não impedindo, no entanto, a persistência do conceito de estrutura no discurso teórico, referindo-se à rede diacrítica de significantes e ao advento do sujeito do inconsciente. Lacan agora necessita acrescentar algo da ordem da pulsão do Real. É, neste momento de sua leitura de Freud, que Lacan passa a introduzir o conceito de pulsão (Trieb). Este conceito não tinha a importância que começou a assumir a partir de agora, porque é justamente a pulsão que põe um limite fundamental à dominância do registro do Simbólico no campo constituído pela psicanálise. Na leitura lacaniana, o conceito freudiano de pulsão é a contrapartida da dominância estrutural do registro do Real sobre o registro do Simbólico no campo psicanalítico. Temos pois um novo contexto em que não é defendido um estatuto ôntico para o inconsciente, mas um estatuto ético. E este deslocamento de uma posição ontológica para uma posição ética é delineado pelo conceito de pulsão, pois este mostrar-se-ia como o único capaz de fundar o conceito de inconsciente. O estatuto ético do inconsciente implica algo da ordem da pulsação, que transcenderia a representação teórica do inconsciente como um conjunto diacrítico de significantes.
Poder-se-ia esperar, a partir daí, que as coisas continuassem iguais? Não, pois há importantes conseqüências teóricas para a reflexão da idéia de estrutura em psicanálise; a partir daí, o discurso teórico lacaniano passa a ser repovoado com metáforas, imagens e exemplos extraídos da biologia. Daí a ênfase no aspecto de que além de existir uma falta no Simbólico, ou seja, na estrutura e na rede diacrítica dos significantes, existe também uma falta no Real, sem a qual a falta do Simbólico seria inoperante para a constituição do sujeito do inconsciente, sendo este definido pela falta.
Creio que o que apresentei aqui permanece sob o sentimento de que ainda está faltando algo a dizer. Não escreverei estas últimas linhas para dizer o que falta, mas para apontar que o presente texto é uma pequena parte de um texto maior. Se o entrego agora a apreciação do leitor, faço-o pelo carinho àqueles que têm se debruçado sobre o difícil trabalho que é ler Lacan. Nesta leitura, a ausência de certos quadros que delimitem o texto que temos à frente dificulta, na maioria das vezes, uma percepção maior do que se tem à frente, o que torna muitas leituras pobres. Creio que é obrigação daqueles que se propõem a ensinar a Psicanálise (e não tão somente transmiti-la – como se somente isto bastasse) dar conta destes quadros. Investigar conceitos, compreendê-los em termos epistemológicos, não é prerrogativa de filósofos e nem somente obrigação de professores universitários. Mas, principalmente, daqueles que estão empenhados com este trabalho, na maior parte do tempo dificílimo, que é a clínica psicanalítica. Um trabalho que nos permite repetir com Bion: conceitos sem experiências são vazios, assim como experiências sem conceitos são cegas.
Notas
1.Wallon era filósofo, médico e psicólogo. Fez psicologia num ambiente dominado pela discussão entre organismo e consciência, negando-se a aceitar a consciência, o eu, como princípio explicativo original, tampouco aceitando o reducionismo materialista. Parecia intuir um outro registro, além do corpo e da consciência. Seus estudos partiam da fisiologia do corpo, passavam pela observação, no curso do desenvolvimento da criança, da inscrição que aí faz a entrada do simbólico. Sua afirmação mais repetida nos meios psi é a da prematuridade característica do ser humano, o fato de que chegamos ao mundo num estado tal que necessitamos do outro para sobrevivermos. O meio ao qual o organismo deve se adaptar é bastante distinto do meio descrito por Piaget e outros e está relacionado com o fantasma do outro que cada um leva em si mesmo. Talvez a influência mais conhecida de Wallon sobre Lacan é a importância da relação especular no humano, concretizada pelas experiências realizadas por Wallon com patos, cachorros e chimpanzés diante de um espelho, e a distinção entre três sistemas de funcionamento infans: o introceptivo (sensibilidade visceral), o proprioceptivo (sensações ligadas ao equilíbrio e aos movimentos) e o exteroceptivo (sensibilidade voltada para as excitações de origem exterior). Assim os cachorros no experimento do espelho faziam concluir que encontravam-se sob o domínio de impressões proprioceptivas visuais, o reflexo no espelho sendo-lhes uma espécie de complemento. Não representam outro animal, tampouco sua imagem, não lhe proporcionando nenhuma ilusão de realidade ou semelhança. Um pato, após a morte da companheira, passava os dias colado a uma vidraça térrea que refletia sua própria imagem, como se a sua incompletude fosse atenuada e o reflexo de sua imagem completasse o vazio da ausência. A pesquisa de Wallon visava compreender, a partir da reação diante do espelho, como nasce a representação pela imagem e pela palavra. Para uma leitura que dê uma idéia mais próxima do trabalho de Wallon e sua influência no pensamento de Lacan apontamos para KOST, Tânia Mara. "O espelho de Wallon a Lacan", in: Escola Brasileira de Psicanálise. A Imagem rainha: as formas do imaginário nas estruturas clínicas e na prática psicanalítica. Livraria Sette Letras, Rio de Janeiro, 1995, p.37.
2. Para melhor entendermos estes esquemas é necessário antes entendermos o esquema L. Assim poderemos percorrer o capítulo IV ("A amarelinha e os quatro cantos") do livro de Catherine Clémente Vidas e lendas de Jacques Lacan (São Paulo: Moraes, 1983, a partir da p. 185). Na página 130, temos uma ilustração bastante didática.
* Charles Elias Lang é Psicólogo e Professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.