A política em Platão, Aristóteles e

São Tomás de Aquino

 

Marcelo Ribeiro Dantas

 

Na antigüidade grega, Platão e sobretudo Aristóteles fixam o estatuto da ciência política, definida como ciência da cidade (polis) e destinada a encarregar-se desse "animal político" (Aristóteles), isto é, desse ser social e coletivo que é o homem.

 

A Política em Platão

 

Platão, filósofo grego, deixou uma obra filosófica considerável. Aos olhos dele, o mundo sensível subordina-se às Idéias ou Essências, formas inteligíveis, modelos de todas as coisas, que salvam os fenômenos e lhes dão sentido. No ápice das Essências, encontra-se a Idéia do Bem, que as ultrapassa em dignidade e potência; esse princípio supremo confunde-se com o divino.

Os Sofistas, esses mestres de retórica e eloqüência, criticados por Platão, que via neles simples produtores de mentiras, falsos prestígios e ilusões – sendo definida a sofística por esse pensador como negócio e tráfico do discurso - , solaparam, com efeito, a crença num Absoluto que permitia à moral edificar-se; a verdade, pensavam, nada mais é do que a subjetividade. Sua doutrina relativistica conduzia, freqüentemente, a um puro imoralismo. Muito pelo contrário, com Platão, a moral torna-se outra vez possível, quando o filósofo, depois de contemplar as Idéias, desce novamente à "caverna" – sua famosa alegoria que designa, com efeito, o relato pelo qual Platão pinta nossa condição: os homens são semelhantes a prisioneiros que tomam as sombras projetadas diante deles na parede da caverna pela verdade; o prisioneiro que se desliga e sobe para fora simbolizaria o filósofo que acede às Essências –, ele está, assim, em condição de edificar uma moral e uma política.

Desta perspectiva, a virtude designa uma participação nas Essência e no verdadeiro conhecimento, uma ciência do Bem e do Mal inseparável da dialética. Em Platão, e de uma maneira geral em todo pensamento helênico, virtude e moral são, com efeito, da ordem do saber. Ninguém é mau voluntariamente. Ser corajoso é possuir a ciência do que é temível. Ser justo é acender ao conhecimento da harmonia de nossas forças interiores. A Justiça (individual) representa, pois, um saber justo. Na alma justa, a parte raciocinante (o espírito) conhece e comanda, dominando o desejo, selvagem e irrefletido (a concupiscência), mas também a cólera, parte impetuosa que pode, por vezes, tornar-se aliada da razão. A justiça designa, desta perspectiva, a virtude que assegura sua função a cada parte da alma. É a maior das virtudes, pois a sabedoria, a temperança e a coragem lhe seriam interiores. Platão irá, então, entender a justiça como igualdade e adotaria duas referências para a concepção de justiça: como idéia e como virtude.

De igual modo, no Estado, a justiça, representaria uma harmonia e um equilíbrio; os artesãos e trabalhadores diversos obedecem; os guerreiros defendem a cidade e os magistrados comandam essas duas classes subalternas. Na República, a justiça é virtude que consiste na observância da lei, não como dedução da necessidade de observar leis como expressão do costume, mas como idéia da razão não mais ligada ao empirismo da observação. O Estado ideal é o Estado de justiça não havendo diferença entre leis e justiça. As leis são justas porque são feitas por alguém que pratica a justiça e contemplou a idéia de justiça. Há uma convergência entre a justiça como virtude e a justiça como idéia. A idéia de justiça está acima mesmo da divindade, informadora do Estado e a justiça como hábito de cumprir. A justiça como idéia (bios teoretikos) e a justiça como prática (bios praktikós) são componentes fundamentais da racionalidade ocidental e permeiam toda a tradição do Ocidente. Assim como a justiça individual representa o equilíbrio de uma alma sã, em cada parte desempenha seu papel e obedece a sua função, a justiça (política) designa o equilíbrio da cidade, em que o "filósofo-magistrado" comanda; cada classe executa a função que lhe é própria e, no cume da hierarquia, encontra-se aquele que "sabe", que contemplou as Essências e o Bem, ou seja, o filósofo. Tal é a solução que Platão dá para o problema político: "o rei filósofo". Para realizar a justiça na Cidade, é preciso, pois, que os reis se tornem filósofos ou que os filósofos se tornem reis.

O Bem Comum das cidades (polis) se sobrepõe transcendendo todos os bens e fins particulares de cada indivíduo, assim, o melhor cidadão seria aquele que se submeteria e subordinaria seu interesse particular ao da Polis, ou então aquele que faz coincidir seu bem e interesse ao bem do Estado.

Escreve Platão na sua República: "[ A arte política ] (...) realizando o mais magnífico e mais excelente de todos os tecidos, envolve, em cada cidade, todo o povo, escravos ou homens livres, mantém-nos juntos em sua trama e, assegurando à cidade, sem falta ou fraqueza, toda a felicidade de que ela pode desfrutar, comanda e dirige."

Platão desenhou os caminhos que continuam a fascinar toda a nossa civilização e nossa cultura. Nessa via, ele leva-nos da opinião – esse tipo de conhecimento inferior, faculdade intermediária que apreende as coisas que flutuam entre o nada e ser absoluto – até a ciência, conhecimento racional que permite atingir a essência da verdade. Itinerário que nos persegue ainda, em nosso tempo, e a que referem muitos pensadores e cientistas contemporâneos.

 

A Política em Aristóteles

 

Aristóteles, filósofo grego, inicialmente aluno de Platão, será, na seqüência, o discípulo infiel do mestre, criticando, em sua obra, alguns de seus temas (como a teoria das idéias). Algumas de suas obras essenciais são: A Física, a Metafísica, a Ética a Nicômaco, a Retórica, a Poética. Aristóteles sistematizou todos os saberes de seu tempo. Esse espírito enciclopédico formulou os quadros lógicos, teóricos, políticos, gnoseológicos, quadros que são ainda os nossos. É, antes de mais nada, o criador da Lógica.

A moral de Aristóteles, desenvolvida em particular na Ética a Nicômaco, é essencialmente eudemonista, como são todas as morais da antigüidade; vê na felicidade o fim da vida. Mas que designa a felicidade? Essencialmente uma atividade da razão, atividade que consiste na contemplação; a vida contemplativa corresponde, com efeito, ao que há em nós de divino e permite compreender o Soberano Bem do homem, isto é, o Bem por excelência, bom unicamente em si mesmo. Nessa análise da felicidade, não negligencia o prazer; o verdadeiro prazer é um elemento da felicidade. Mas como compreendê-lo e concebê-lo? O prazer é a realização do ato, junta-se por acréscimo ao ato, como brilho da beleza à força da idade.

A afirmação segundo a qual o homem é um animal político define seu humanismo. A polis era a comunidade perfeita, pois viver em sociedade e para a sociedade era viver na e para a polis, era pois ser político. A sociedade não resulta da convenção. Ela resulta de um processo natural que objetiva levar a perfeição o ser humano. Este não se realiza por si mesmo, e sim na medida em que transcende e se integra na comunidade política. No âmbito das relações entre indivíduo e sociedade, há uma tensão que Aristóteles parece evidenciar uma primazia do indivíduo. No entanto, indivíduo e sociedade se harmonizam num dinamismo que brota da natureza.

Aristóteles manifesta um agudo senso prático quando trata da Moral. Não é seu alvo "que saibamos o que é a virtude, mas que possamos ser virtuosos", escreveu na Ética a Nicômaco. Virtude, para ele, quer dizer essencialmente areté, excelência, a realização melhor possível das potencialidades humanas. "As virtudes formam-se com a prática dos atos", ensinava. "O homem não faz o bem porque é bom, mas é bom porque faz o bem" Somos potencialmente bons e maus e temos a faculdade de escolher racionalmente o que desejamos ser. Aqui entra em cena a teoria aristotélica do meio-termo, herdeira da idéia de equilíbrio que marcou por inteiro a cultura grega. Toda virtude, acreditava o filósofo, é o justo meio-termo entre dois defeitos. Assim, a coragem fica entre a covardia e a temeridade; entre a prodigalidade e a mesquinharia, fica a generosidade; e assim por diante. O meio-termo varia de uma pessoa a outra, conforme a natureza de cada qual e as circunstâncias. Os homens de Aristóteles não nascem livres e iguais em direitos — porém segundo uma hierarquia que horroriza o ideal democrático. "É naturalmente escravo quem tem tão pouca alma e tão poucos meios que deve depender de outrem", sentenciava. "E a mulher é para o homem o que o servo é para o amo."

O homem superior de Aristóteles é bom no mais elevado grau, consciente de seu valor, incapaz de um ato vergonhoso, distribui favores mas se peja de recebê-los, altivo diante dos poderosos, modesto diante dos outros, caminha devagar, fala com voz grave. Ou seja, uma miragem. A prática da excelência faz a felicidade e a felicidade plena é a Filosofia - o exercício contemplativo da razão. "A atividade da mente é vida", regozija-se Aristóteles. Como notou Bertrand Russell, "os sofrimentos da humanidade não o comovem; há na Ética uma pobreza emocional que não se encontra nos filósofos antigos."

O pensamento político de Aristóteles é parente próximo da Ética. Ela mesma se subordina à política, pois não há vida humana fora da polis, a comunidade. Como todos os grandes pensadores, Aristóteles unifica a moral, estudo do que é bem e bom, e a política, ciência da cidade. Como se poderia dissociá-las, uma vez que o homem é, fundamentalmente, um animal político, nascido para viver na Cidade? "Na ordem da natureza, o Estado se coloca antes da família e antes de cada indivíduo, pois o todo deve forçosamente ser colocado antes das partes", argumentava. "Aquele que não pode viver em sociedade, ou que de nada precisa para bastar- se a si próprio, não faz parte do Estado; ou é um bruto ou um deus." A filosofia política de Aristóteles nasceu e viveu em função da cidade-estado onde o governo e a elaboração das leis requeriam a participação ativa dos cidadãos – excluídos os menores de 35 anos, os estrangeiros e seus descendentes diretos, as mulheres e os escravos. Ao contrário da utópica República de Platão, a Politéia, a igualmente imaginária cidade feliz de Aristóteles, valoriza a família e a propriedade privada, embora o excesso de riqueza seja tido como tão indesejável quanto o de pobreza.

Analisando a organização da cidade, Aristóteles chega ás diversas formas de governo e distingue três – na Política. Chama a primeira monarquia (o governo de um só), a aristocracia (o governo de poucos) e a república (o governo de muitos) têm todas suas vantagens e desvantagens, arroladas pelo sempre sistemático pensador – e os argumentos que enlaçam esse debate permanecem firmes ainda hoje. Aristóteles, que comparou as constituições das cidades-estados gregas, não escondia suas simpatias pelo governo aristocrático dos mais esclarecidos e mais capazes. Francamente conservador, ele advertia: "O hábito de mudar facilmente as leis é um mal. O cidadão ganhará menos com a mudança do que perderá adquirindo o hábito da insubordinação". E finalmente: "Os homens são induzidos a crer que existe algum modo miraculoso de todos se tornarem mutuamente amigos, sobretudo após a enumeração dos males que dizem ser causados pela propriedade particular. Estes males, porém, derivam de outra fonte — a natureza humana."

Aristóteles, da lógica à política, trouxe-nos a visão das estruturas que, ainda hoje, dão forma a nossa existência. A figura do sábio destaca-se plenamente em sua obra; designa quem possui o conhecimento de todas as coisas; belo ideal sobre o qual ainda hoje podemos meditar.

 

A Política em São Tomás de Aquino

 

São Tomás de Aquino, filósofo italiano, pertencendo à ordem dos dominicanos, mestre em teologia da Universidade de Paris, é essencialmente o autor dos Comentários de Aristóteles e da Suma Teológica. Tomás de Aquino esforça-se por fazer concordar a fé e a razão; a primeira traz verdades inacessíveis à razão, que a última tem condições de confrontar sem, contudo, demonstrar.

A moral de São Tomás é muito próxima da ética de Aristóteles. Suas considerações sobre justiça terminam por distinguir justiça distributiva – a que reparte honras, riquezas e dignidades segundo as qualidades de cada um – e justiça comutativa – a que regula astrocas econômicas segundo o princípio da igualdade de proporção. Aqui, São Tomás refere-se diretamente ao livro 5 da Ética a Nicômaco de Aristóteles.

No ápice da ética, desenha-se a figura do sábio; ele designa aquele cuja atenção se volta para a causa suprema do universo, a saber, Deus. Assim a sabedoria representa o conhecimento das realidades divinas. A felicidade última do homem consiste em contemplar o divino e a verdade; a contemplação do verdadeiro é nosso objetivo último e eleva-nos a Deus.

Essa adaptação da doutrina aristotélica ao pensamento cristão, inicialmente aceito com dificuldade pela Igreja, vai desempenhar progressivamente um papel fundamental no catolicismo; a partir do século XVI, o tomismo é adotado como doutrina oficial da Igreja.

Para Tomás, o homem é natureza racional, isto é, um ser capaz de conhecer. E é justamente essa concepção de homem que encontramos na base da ética e da política desse filósofo. Antes de mais nada, o homem conhece o fim ao qual cada coisa tende por natureza e conhece uma ordem das coisas no cume da qual está Deus como Bem Supremo. Naturalmente, se o intelecto pudesse oferecer a visão beatífica de Deus, a vontade humana não poderia deixar de querê-la. Mas, aqui embaixo, isso não é possível. Na vida terrena o intelecto só conhece o bem e o mal de coisas que não são Deus. Assim, a vontade é livre para querê-los ou não querê-los. Esse é o sentido de ratio causa libertatis. E é exatamente no livre-arbítrio, na liberdade do homem, que Tomás vê a raiz do mal, concebido como falta do bem. "Por sua própria natureza, o homem tem o livre-arbítrio": ele não se dirige para um fim, como uma flecha lançada pelo arqueiro, mas sim se dirige livremente para um fim. E, como há nele um habitus natural de captar os princípios do conhecimento, também há sempre nele uma disposição ou habitus natural – a sindérese –que o leva a compreender aqueles princípios que guiam as boas ações. Mas compreender ainda não significa agir, E o homem, justamente porque é livre, peca quando se afasta deliberadamente e infringe aquelas leis universais que a razão lhe dá a conhecer e a lei de Deus lhe revela.

Tomás distingue três tipos de leis: a lex aeterna, a lex naturalis e a lex humana. E acima delas coloca a lex divina, ou seja, a lei revelada por Deus. A lex aeterna é o plano racional de Deus, a ordem do universo inteiro, através da qual a sabedoria divina dirige todas as coisas para o seu fim. É o plano da Providência conhecido unicamente por Deus e pelos bem-aventurados. Entretanto, há uma parte dessa lei eterna da qual, como natureza racional, o homem é partícipe. E tal partecipatio legis aeternae in rationali creatura se chama lei natural – lex naturalis.

Em suma, enquanto seres racionais, os homens conhecem a lei natural, cujo núcleo essencial está no preceito de que "deve-se fazer o bem e evitar o mal". Para o homem, como para todo animal, é bem seguir os ensinamentos universais da natureza: união do macho e da fêmea, proteção e criação dos filhos, etc. Para o homem, enquanto ser racional, é bem conhecer a verdade, viver em sociedade, etc. Entretanto, mais do que na especificação do que é bonum e do que é malum, "Santo Tomás (...) vê a lei natural principalmente como forma pela qual o homem deve querer para que a sua vontade e a conseqüente ação estejam em conformidade com a lei natural e, portanto, moral. E essa forma é a da racionalidade: a lei natural diz respeito àquilo a que o homem é levado pela natureza e ‘é próprio do homem ser levado a agir segundo a razão’". (G. Fassò)

Estreitamente ligada á lei natural, Tomás coloca a lei humana. Trata-se da lei jurídica, isto é, o direito positivo, a lei feita pelo homem. E os homens, que são sociáveis por natureza, fazem as leis jurídicas para dissuadir os indivíduos do mal. E, como a toda lei cabe à razão estabelecer os meios para os fins e ver a ordem dos fins, a lei humana é a ordem promulgada pela coletividade e por quem tem a responsabilidade pela comunidade tendo em vista o bem comum. Portanto Tomás segue Aristóteles e considera o Estado como uma necessidade natural, quer dizer, uma necessidade que deriva da natureza do homem enquanto homem. Entretanto, como as leis feitas pelo homem se baseiam na lei natural, com efeito, na opinião de Tomás, a lei humana deriva da lei natural de dois modos: por dedução ou por especificação de normas mais gerais. No primeiro caso, temos o jus gentium, no segundo o jus civile. A primeira descreve a normas e a segunda as penas quando a primeira é transgredida.

O Estado pode encaminhar os homens para o bem comum e pode favorecer algumas virtudes, mas não permite ao homem alcançar o seu fim último que é sobrenatural. Em suma, a lei natural e as leis positivas servem as fins terrenos do homem. Mas o homem tem um fim sobrenatural, que é precisamente a bem-aventurança eterna. A lei natural e a lei humana não são suficientes para levar o homem a esse fim, portanto é necessária uma lei sobrenatural: tratas-se da lei divina, isto é, a lei revelada, a lei do Evangelho.

 

 

 

 

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BIBLIOGRAFIA

 

 

ABBAGNANO, Nicola – História da Filosofia , vol.1, Editorial Presença, Lisboa, 1991;

BHÉHIER, Émile – História da Filosofia, Tomo Primeiro – A Antigüidade e a Idade Média, vol.1, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1997;

BURNET, John – O Despertar da Filosofia Grega, Editora Siciliano, São Paulo, 1994;

GUTHRIE, W.K.C. – Os Filósofos Gregos de Tales a Aristóteles, Editorial Presença, Lisboa, 1987;

REALE, Giovani – História da Filosofia, vol.1, Edições Loyola, São Paulo, 1993.

 

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