A Câmara Clara de Roland Barthes

 

Por: Marcelo Ribeiro Dantas

 

"o que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez..."

"Louca ou sensata? A Fotografia pode ser uma ou outra: sensata se seu realismo permanece relativo, temperado por hábitos estéticos ou empíricos (folhear uma revista no cabeleireiro, no dentista); louca, se esse realismo é absoluto e, se assim podemos dizer, original, fazendo voltar à consciência amorosa e assustada a própria letra do Tempo: movimento propriamente revulsivo, que inverte o curso da coisa e que eu chamarei, para encerrar, de êxtase fotográfico."

Roland Barthes

 

 

Documento absoluto de verdade, reprodução exata do real. Talvez para um olhar desatento, a fotografia tenha única e absolutamente estes papéis. Já um olhar observador vai mais longe: questiona a própria existência da fotografia, discute sua importância como aparelho reprodutor de ideologia. É isso que faz Roland Barthes, em seu livro A Câmara Clara.

Segundo Barthes, a fotografia pode funcionar como um testemunho histórico, é uma confirmação do passado, daquilo que foi. Através da foto - "conjunto de arquétipos e convenções historicamente formados"-, pode-se ler informações sobre a época provável de sua produção, com base unicamente no exame de sua materialidade.

A foto faz um registro histórico do momento, um instante que não poderá ser reproduzido novamente, levando-se em consideração a época, os costumes e as tradições que ficam eternizados no instante fotografado. É por isso única e de caráter documental. Barthes ressalta ainda o caráter conservador da foto. A imobilidade, fixação de um instante através da pose, é o que constitui a natureza da fotografia.

Pode-se dizer que a foto realmente eterniza uma imagem mesmo que esta não corresponda à verdade absoluta, mas à uma verdade fabricada, aquela que se quer passar adiante. O caráter subjetivo da fotografia não pode ser desprezado. A imagem retratada, ao mesmo tempo em que apreende o real, reflete o ponto de vista do fotógrafo. No entanto, se o avanço tecnológico a que o processo fotográfico está submetido for considerado, tem-se subsídios para contestar o seu caráter documental. Hoje não é mais possível se pensar na foto como conservadora ou como um processo que eterniza um instante.

A tecnologia digital pode criar e recriar situações em fotos originais. Pode acrescentar ou suprimir informações. Mas é importante destacar que este não é um privilégio da era digital. Com a ampliação fotográfica, por exemplo, pode-se revelar o invisível e deformar a imagem.

Outro ponto discutido por Barthes e que merece destaque é o fato da fotografia ressuscitar sentimentos ou, como diz o autor, ressuscitar o "morto". Esta é uma qualidade da foto que independe de seu tempo e do modo como foi produzida e pode atuar tanto em âmbito particular como coletivo. Em nível particular, uma foto pode reavivar sentimentos relativos a alguém que não está mais presente, ou trazer, por instantes, sensações vividas em determinada época e que já não existem mais.

De acordo com Barthes, a fotografia fixa um tempo que não volta, conserva, congela um momento por assim dizer. Completando seu pensamento, pode-se afirmar que a foto possui um caráter manipulador, mas conservador sob determinados aspectos, e não incondicionalmente. A fotografia não representa apenas o resultado de um simples click da câmara escura.

Ao clicar a realidade que vê, o fotografo captura o mundo que a contém, mas também não contém o mundo na fotografia ? Não interfere na sua criação, ou na nova ordem que estabelece através da imagem fotografada e assim tenta ser deus, ainda que ajudado mecanicamente por uma câmara fotográfica, um filme e a participação intrigante da luz? Encontrou a árvore da sabedoria, ele tenta recriar a realidade que vê, sem a presença de Eva e da serpente, não mais lhe afasta do Paraíso e lhe condena ao desterro eterno por tentar dispor a criação em uma nova ordem, mas deposita em sua perícia a possibilidade de "recompor" o mundo através da sua "visão fotográfica ".

O ato de ir " clicando " o tempo sistematicamente, até mesmo com avidez, volúpia e insensatez, não fazem parte da neurótica ansiedade de dominar, do poder e de possuir o que meus olhos vêem ? Uma vez após a outra, filme após filme, não me dão a sensação de que o que registro é meu, e se o possuo, foi porque o criei, e se o criei sou como Deus que criou a tudo ?

A fotografia se interpõe entre fotógrafo e assunto. A dicotomia do ato de "cortar" um pedaço do tempo e depois poder estudá-lo, olhá-lo, analisá-lo, possibilita ao observador (enquanto o fotógrafo procurar entender o seu por que ?) compreender o seu "tudo" enquanto código visual. Mas o observador que se depara com esta imagem, certamente iniciará sua decodificação a partir da convicção de que " aquilo é verdade, aquilo aconteceu ou aquilo existe". E assim a foto obtida é o passado neste presente que temos nas mãos, que se olha e se interpreta de forma diversa a cada decodificação visual realizada, pois o real observado e gravado na fotografia possui está atração "metamórfotica" onde seus ícones e código visuais mudam por ingerência do tempo ou ainda que de forma aleatória como o próprio tempo e a maré do mar o fazem.

A foto, tão logo obtida, já faz parte da história passada, ainda que recente e evocada através do olhar, transforma a informação, conforme o espectador que a observa. O choro, as lagrimas, a alegria a sensação de felicidade, o horror, a mensagem impregnante ou a indiferença fazem parte das emoções que nos atingirão individualmente ao contemplar uma fotografia.

Assim fotógrafo e assunto estarão sempre dentro de uma única unicidade de momento, trazendo como resultado desta interação a escrita com a luz e sempre querendo apresentar, ainda que de forma simbólica ou alegórica, uma parte da história registrada como mensagem visual e carregada de símbolos semióticos.

A fotografia em sua máxima expressão depende do olhar de recepção do observador, mas também está afeta aos dispositivos fotográficos utilizados para a sua obtenção, tanto mecânicos , como principalmente os psicológicos.

Qualquer objeto, qualquer pessoa, qualquer paisagem. Qualquer coisa pode servir como pretexto para a fotografia - bem como para a pintura, para o desenho, para o cinema, para linguagem visual, enfim. A própria decisão é arte. É pontuação. É criação. Como disse Roland Barthes 1, muitas vezes, não somos nós que coordenamos nossos pontos de interesse em uma foto. Eles vêm em nossa direção, nos atingem e nos perpassam. Punctum.

Essas reações frente à imagem demostram-nos todo o manancial de significados que elas carregam para um possível leitor. A imagem é permeada de sentidos que falam à vivência do espectador, reelaborando e permitindo o afloramento de fragmentos de experiência, despertando centelhas até então adormecidas, como o vento que aviva brasas de uma fogueira em meio a noite densa. Entretanto, como ler uma fotografia? Como traduzir e interpretar seu texto visual? Como pensá-la enquanto fonte histórica?

Roland Barthes responde a essa pergunta ao procurar de maneira intensa, entre as diversas fotografias que possuía de sua mãe, uma que emanasse "a verdade do rosto que eu amara". E, após, finalmente, encontrá-la, Barthes furta-se de mostrá-la ao leitor, afirmando que:

(...) não posso mostrar a Foto do Jardim de Inverno. Ela só existe para mim. Para vós, não seria mais do que uma foto indiferente, uma das mil manifestações do "qualquer". Ela não pode constituir em nada o objeto visível de uma ciência; não pode criar uma objetividade, no sentido positivo do termo. Quando muito, interessaria ao vosso studium: época, vestuário, fotogenia; mas nela não há para vós qualquer ferida.

Em sua busca, Rolland Barthes percebe duas manifestações que derivam do registro fotográfico: o studium e o puctum. O primeiro representa a moldura histórica da foto, "um campo que reconheço facilmente em função do meu saber e minha cultura". O segundo, o puctum, representa a dor pessoal e intransferível que somente eu, detentor de uma vivência única, sinto enquanto espectador ao ler aquela foto - o puctum da fotografia é "este acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me apunhala)".

A foto é a prova testemunhal e ocular do fato como fator determinante do novo modernismo , sem pincel, mas naturalmente gravado no ato de viver e fotografar, esta fotografia vai representar na vida humana mais que o sexo, mais que o atendimento das necessidades sensoriais, sendo um entorpecente da visão e do coração, que leva a alma ansiar por este ato fotográfico, que lhe dá a posse de uma foto? A posse da vida! A busca pela eternidade.

Não é uma fotografia uma tentativa de conter a eternidade, ainda que em uma folha de papel, em um álbum fotográfico, ou mesmo de ter a "fonte da juventude eterna" conservando o belo de forma imutável e perene ?

Será uma tentativa de conter a morte ? A possibilidade de parar o tempo ? A tão procurada fonte da juventude, que eternizaria a vida, está contida ali , nela, na foto ? e não é ela a testemunha e a prova irrefutável de que o "possuído" aconteceu , fez parte da realidade, da vida e foi fotografado?

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