João Guimarães Rosa
Aí, o desejado, arribamos na outra beira, a delá.
Ao ver, o menino mandou encostar; só descemos. "Você não arreda daqui, fica tomando conta!"ele falou para o canoeiro, que seguiu de cumprir aquela autoridade, desde que amarrou a corrente num pau-pombo. Aonde o menino queria ir? Sofismei, mas fui andando, fomos, na vargem, no meio-avermelhado do capim-pubo.
Sentamos, por fim, num lugar mais salientado, com pedras, rodeado por áspero bamburral. Sendo de permanecer assim, sem prazo, isto é, o quase calados, somente. Sempre os mosquitinhos era que arreliavam, o vulgar. "Amigo, quer de comer? Está com fome?" ele me perguntou. E me deu a rapadura e o queijo. Ele mesmo, só tocou em miga.Estava pitando.
Acabou de pitar, apanhava talos de capim-capivara, e mastigava; tinha gosto de milho-verde, é dele que a capivara come. Assim quando me veio vontade de urinar, e eu disse, ele determinou: "Há-de, vai ali atrás, longe de mim, isso faz..."Mais não conversasse; e eu reparei, me acanhava, comparando como eram pobres as minhas roupas, junto das dele.
Antojo, então, por detrás de nós, sem avisos, apareceu a cara de um homem! As duas mãos dele afastavam os ramos do mato, me deu um susto somente. Por certo algum trilho passava perto por ali, o homem escutara nossa conversa. À fé, era um rapaz, mulato, regular uns dezoito ou vinte anos; mas altado, forte, com feições muito brutas.Debochado, ele disse isto:
"Vocês dois, uê, hem?!Que é que estão fazendo?..."
Aduzido fungou, e, mão no fechado da outra, bateu um figurado indecente. Olhei para o menino. Esse não semelhava ter tomado nenhum espanto, surdo sentado ficou, social com seu prático sorriso.
"Hem, hem? E eu? Também quero!" o mulato veio insistindo.
E, por aí, eu consegui falar alto, contestando, que não estávamos fazendo sujice nenhuma, estávamos era espreitando as distâncias do rio e o parado das coisas. Mas, o que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do menino dizer:
"Você, meu nego? Está certo, chega aqui..."
A fala, o jeito dele, imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato, satisfeito, caminhou para se sentar juntinho dele.
Ah, tem lances, esses se riscam tão depressa, olhar da gente não acompanha. Urutu dá e já deu o bote? Só foi assim. Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro. Varou o mato, em fuga, se ouvia aquela corredoura. O menino abanava a faquinha nua na mão, e nem se ria. Tinha embebido ferro na coxa do mulato, a ponta rasgando fundo. A lâmina estava escorrida de sangue ruim. Mas o menino não se aluía do lugar. E limpou a faca no capim, com todo capricho.
"Quicé que corta..." foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr na bainha.
Meu receio não passava. O mulato podia voltar, ter ido buscar uma foice, garrucha, a reunir companheiros; de nós o que seria, daí a mais um pouco? Ao menino ponderei isso, encarecendo que a gente fosse logo embora. "Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem..." ele me moderou, tão gentil.
Me alembrei do que antes ele tinha falado, de seu pai. Indaguei: "Mas, então, você mora é com seu tio?"Aí ele se levantou, me chamando para voltarmos. Mas veio demorão, vagarosinho até aonde a canoa. E não olhava para trás. Não, medo de mulato, nem de ninguém, ele não conhecia.
ROSA, João guimarães. Grande sertão: veredas. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 100-102.