Grande Sertão:
VeredasA ver o que eu contava: quem não conhecia o reinaldo, ficou pronto conhecendo. Digo, Diadorim. Nós tínhamos em fim chegado, sem soberba nenhuma, contentes por topar com tanto número de companheirismos em armas: de todos, todos eram garantia. Entramos no meio deles, misturados, para acpcorar e prosear caçamos um pé de fogo. Novidade nenhuma, o senhor sabe — em roda de fogueira, toda conversa é miudinhos tempos. Algum explicava os combates com Zé Bebelo, nós o nosso: roteiro todo da viagem, aos poucos para se historiar.
Mas Diadorim sendo tão galante moço, as feições finas caprichadas. Um ou dois, dos homens, não achavam nele jeito de macheza, ainda mais que pensavam que ele era novato. Assim loguinho, começaram, aí, gandaiados. Desses dois, um se chamava de alcunha o Fancho-Bode, tratantaz. O outro, um tribufu, se dizia Fulorêncio, veja o senhor. Mau par. A fumaça dos tições deu para a cara de Diadorim — "Fumacinha é do lado — do delicado..."— o Fancho-Bode teatrou.
Consoante falou soez, com soltura, com propósito na voz. A gente, quietos. Se vai lá aceitar rixa assim de graça? Mas o sujeito não queria apazear. Se levantou, e se mexeu de modo, fazendo xetas, mengando e castanhetando, numa dança de furta-passo. Diadorim se esteve em pé, se arredou de perto da fogueira; vi e mais vi: ele apropriar espaços. Mas esse Fancho-Bode era abusado, vinha querer dar umbigada. E o outro, muito comparsa, lambuzante preto, estumou, assim como fingiu falsete, cantarolando pelo nariz:
"Pra gauder, Gaudêncio...
E aqui pra o Fulorêncio?..."
Aquilo lufou! De rempe, tudo foi um ão e um cão, mas, o que havia de haver, eu já sabia... Oap!: o assoprado de um refugão, e Diadorim entrava de encontro no Fancho-Bode, arrumou mão nele, meteu um sopapo: — um safano nas queixadas e uma sobarba —e calçou com o pé, se fez em fúria. Deu com o Fancho-Bode todo no chão, e já se curvou em cima: e o punhal parou ponta diantinho da goela do dito, bem encostado no gogó, da parte de riba, para se cravar deslizado com bom apoio, e o pico em pele, de belisco, para avisar do gosto de uma boa-morte; era só se soltar, que, pelo peso, um fato se dava.
O fechabrir de olhos, e eu também tinha agarrado meu revólver. Arre, eu não queria presumir de prevenir ninguém, mais queria mesmo era matar, se carecesse. Acho que notaram. Ao que, em hora justa e certa, nunca tive medo. Notaram. Farejaram pressentindo: como cachorro sabe. Ninguém não se meteu, pois desapartar assim é perigoso. Aquele Fulorêncio instantâneo esbarrou com os acionados indecentes, me menos olhou uma vez, daí não quis me encarar mais.
— "Coca, bronco!"— Diadorim mandou o Fancho se levantasse: que puxasse também da faca, viesse melhor se desempenhar! Mas o Fancho-Bode se riu, amistoso safado, como tudo tivesse constado só duma brincadeira: — "Oxente! Homem tu é, mano-velho, patrício!"Estava escabreado. Dava nojo, ele, com a cara suja de maus cabelos, que cresciam por todo lado. Guardei meu revólver, respeitosamente. Aqueles dois homens não eram medrosos; só que não tinham os interesses de morrer tão cedo assim.
Homem é rosto a rosto; jagunço também: é no quem-com-quem. E eles dois não estavam ali muito estimados. Comprazendo conosco, outros companheiros deram ar de amizade. E mesmo, por gracejo cordial, o Fulorêncio me perguntou: — "Mano Velho, me compra o que eu sonhei hoje?" Divertindo, também, para o ar dei resposta: — "Só se for com dinheiro da mãe do jacaré..."
Todos riram. De mim não riram. O Fulorêncio riu também, mas riso de velho. Cá pensei, silencioso, silenciosinho: "Um dia um de nós dois agora tem de comer o outro... Ou, se não, fica o assunto para os nosso netos, ou para os netos dos nossos filhos..." Tudo em mais paz, me ofereceram: bebi da januária azulosa — um gole me foi: cachaça muito nomeada. Aquela noite, dormi conseguintemente.
Sempre disse ao senhor, eu atiro bem.
Rosa, João Guimarães. Grande sertão: veredas.20ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.p. 149-150
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