CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

(Posfácio de Farewell)
Silviano Santiago

1. A simplicidade da poesia de Carlos Drummond de Andrade

Os poemas de Carlos Drummond desconcertam e encantam pela simplicidade. Não é tarefa fácil definir a simplicidade em poesia, embora seja esta uma das características básicas da que foi escrita pelos poetas modernistas. Tradicionalmente, a poesia se expressava por um tipo de texto obscuro e, ao mesmo tempo convencional, onde a linguagem se mostrava opulenta, luxuriosa e esotérica, usando e abusando de comparações, metáforas e alegorias, exibindo enfim um estilo exaltado e sublime onde todos os recursos clássicos da retórica -- convencimento, sedução e mistério -- eram os valores maiores a serem colocados à disposição do leitor.

Haja vista o antigo sucesso dos versos de Augusto dos Anjos, o mais obscuro e o mais popular dos poetas brasileiros. Parecia ele significar que -- para o povo brasileiro até meados deste século -- a poesia vivia e subsistia na cadência sonora das longas, preciosas e abstratas palavras proparoxítonas que arrebentavam a boca do balão, deixando a pobreza da linguagem cotidiana na lama da sarjeta. Por escaparem da linguagem chã, é que os poemas de Augusto dos Anjos eram capazes de expressar e explicar, paradoxalmente, as emoções claras e as dores sombrias do homem comum brasileiro. A poesia tinha algo a ver com o latim que escutávamos todos em belas e comoventes litanias na hora da missa, mas cujo significado nos escapava por completo. Sentíamo-nos reconfortados moralmente, sabe-se lá como, ao sair da igreja. Uma língua sonora e opulenta, que escapava ao entendimento racional e ia ao encontro da sublimação da nossa miserável condição humana, tinha de ser a mais prezada nas alturas espirituais, lugar de onde vinha essa outra fala privilegiada, a da família real dos poetas.

Por fugir às regras da tradição, a simplicidade da poesia de Drummond (como a de outros modernistas) desconcertou o nosso leitor habitual de poemas. Desde os anos 30, tornou-se peça de escárnio e de escândalo, mas também razão para repentina celebridade, o conhecido e iconoclasta poema "No meio do caminho": "No meio do caminho tinha pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho". Por outro lado, essa simplicidade dos versos drummondianos encanta mais e mais o leitor de hoje, pouco ou nada acostumado à leitura de poemas (sejam os de Augusto dos Anjos ou os de J. G. de Araújo Jorge). Em algum momento do Brasil contemporâneo, impossível de ser precisado em termos de data, o povo perdeu o hábito de ler e de citar poemas (e, talvez, de ouvir latim na igreja). Não é, pois, fácil descobrir o segredo do atual re-envolvimento do brasileiro com a poesia, no caso com os poemas do nosso itabirano.

Escreveu ele poemas de tal modo singelos e significativos, que se tornaram amados pelo grande público, memorizados e repetidos sem a ajuda do livro, do mesmo modo como são cantarolados, sem a ajuda do disco e do acompanhamento musical, alguns versos de canções da música popular. Não tenhamos piedade, muitas vezes essa memorização popular tem mais a ver com a massificação do gosto pelo slogan publicitário (também simples, eficiente e oportuno); tem menos a ver com o prazer na leitura da poesia da simplicidade. "E agora, José?", "Este é um tempo de partido,/ de homens partidos","Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!", "Tenho duas mãos/ e o sentimento do mundo", e assim por diante.

No entanto, se a poesia simples de Drummond desconcerta o leitor habitual e exigente de poemas, acostumado a textos barrocos e complicados, isso não quer dizer que ele fique alheio a ela, ou a despreze, como sendo por demais vulgar para o seu palatar requintado de homem cosmopolita. De todos os poetas modernistas da literatura brasileira, é sem dúvida Drummond o que recebeu a maior consagração por parte da crítica, tanto da militante em jornais, quanto daquela outra que ocupa as cátedras das escolas e que, diante de mais jovens, reelabora os poemas dele na sala de aula. Esse desconcerto entre simplicidade e qualidade, aliás, é tema recorrente na vasta bibliografia crítica sobre Drummond.

Como a questão não é (sem trocadilho) simples, tomemos o desvio das comparações. Dois outros poetas, companheiros de geração do itabirano, também exercitaram o discurso poético simples.

O primeiro deles é Oswald de Andrade, em particular nas duas coletâneas de poemas que publicou nos anos 20. A simplicidade em Oswald tem algo a ver com a economia. Metade do mistério da simplicidade da poesia de Oswald estará resolvida, se tomarmos a palavra economia no seu sentido de poupança. O poeta poupa palavras, versos e figuras de retórica, para se expressar com mais rigor e contundência. Quanto menos, tanto mais -- eis a fórmula "mínimo múltiplo comum" da sua poesia. Essa também é a lição do poeta e crítico Ezra Pound. Ele nos ensinou que o poeta moderno trabalha o texto poético por um processo de condensação da linguagem, condensação esta que estaria em contra do próprio modo como nós, ocidentais, habitualmente nos expressamos, ou seja, através dos excessos da discursividade (sucedem-se na frase sujeito, verbo, complementos, sucedem-se frases e mais frases).

Para Pound, como se sabe, a língua ideal da poesia é a chinesa, que não é discursiva, mas aglutinante. O ideograma chinês não chega a ser uma frase, no sentido ocidental, tem o valor duma frase e é o equivalente dela na medida em que é a condensação pictórica de muitos signos não-fonéticos que, caso desdobrados pelo leitor, pipoca múltiplos significados. Para os cultores dessa simplicidade visual, e pouco ou nada fonética, o rigor poético está ligado (1) à desemocionalização do texto poético, (2) à justaposição não-discursiva de palavras ou de versos e (3) à usura no uso do léxico nacional. Nesse sentido e entre nós, Oswald é precursor não só da simplicidade da "faca só lâmina" de João Cabral de Melo Neto, como também, e principalmente, dos poemas "verbivocovisuais" da poesia concreta dos anos 50.

A simplicidade em Oswald, dissemos, tem algo a ver com a economia. Teremos explicado a outra metade do seu mistério, se tomarmos a palavra economia no seu sentido marxista. Como demonstrou Roberto Schwarz, ao ler o poema "Pobre alimária", publicado em Pau-Brasil (1924), a simplicidade técnica da poesia de Oswald, alegórica no modo de visualizar o Brasil moderno, "não representava defeito, pois satisfazia uma tese crítica, segundo a qual o esoterismo que cercava as coisas do espírito era uma bruma obsoleta e antidemocrática, a dissipar, fraudulenta no fundo". Continua o crítico: "Quando Lenin dizia que o Estado, uma vez revolucionado, se poderia administrar com os conhecimentos de uma cozinheira, manifestava uma convicção da mesma ordem: não desmerecia as aptidões populares, e sim afirmava que a irracionalidade e a complicação do capitalismo estavam tornando supérfluas; brevemente seriam substituídas por uma organização social sem segredo e conforme o bom senso". A poesia fácil de Oswald tinha, pois, algo a ver com o ideal de simplificação política na condução das finanças do utópico Estado socialista, ideal compartilhado pelo dramaturgo Bertold Brecht, que depositava "igual confiança no potencial materialista e rebelde da obviedade bem escolhida". Pela simplicidade, a linguagem poética (ou artística) se distancia do esoterismo elitista e se aproxima das massas operárias que, pela revolução, chegariam um dia ao poder. Nesse sentido, Oswald seria o precursor das imagens contrastantes e contraditórias do Brasil tropicalista, encontradas em particular nos revolucionários filmes do "cinema novo", onde o arcaico se misturava ao mais moderno, em busca duma alegoria que expressasse a condição do país e dos seus miseráveis e nababescos habitantes depois do golpe militar de 64.

O segundo dos poetas é Manuel Bandeira, certamente bem mais próximo da simplicidade drummondiana do que Oswald de Andrade. A grande diferença está em que a simplicidade da poesia de Bandeira é meio capenga da perna cristã (no poema "Desligamento", incluído em Farewell, Drummond parece brincar com o poeta pernambucano, ao aconselhar: "Ó minhalma, dá o salto mortal e desaparece na bruma, sem pesar!"). Na idade madura, poeta que capenga da perna cristã é porque, na infância e na juventude, amou mais a morte do que a vida. A simplicidade em Bandeira tem premissa pessimista, produto que é de um namoro complexado e mal-resolvido com a possibilidade real do fim inesperado e imediato da vida. Ela pode até ter, e certamente terá, colorido mais trágico do que a simplicidade drummondiana, já que a gênese da simplicidade da poesia dele está no sofrimento e martírio dos anos de aprendizagem, conseqüência da tuberculose precoce. (Não se trata de insistir no estigma, mas de constatar um dado concreto nos poemas.)

Tudo isso requereu do poeta Bandeira uma espécie de clima salutar de jejum e sublime de abstinência, contraponteados (não nos esquecemos!) pelos excessos da orgia. Mas excessos em Bandeira mais se apresentam como produto da imaginação reprimida, como mecanismo compensatório bem-humorado e feliz (como é o caso do poema "Vou-me embora pra Pasárgada"), do que exteriorizações cotidianas e constantes da libido. A vida é exceção e utopia, e assim é tomada.

Não exageramos se afirmamos que, em Manuel Bandeira, a aproximação da pobreza pelo viés da simplicidade é evangélica. O pernambucano não tem aqueles desmandos arlequinais de um outro cristão, Mário de Andrade. Este, desabusado na vida, se esbaldava no carnaval carioca,<,i>bras-dessus bras-dessous com mulatas sestrosas, ou "puxava conversa", curiosa e sensualmente, com populares desconhecidos, no meio da rua paulista. Mas Mário de Andrade, na sua poesia, era de todos os companheiros de geração o que mais tinha medo da simplicidade, já que a camuflava deliberadamente sob a capa do cabotinismo. O esoterismo dos seus poemas (comentado no clássico "Lundu do poeta difícil") foi o modo que encontrou para se desdobrar diante dos seus pela maneira como ele achava que poderia ser suportado nos seus desvairios. A simplicidade na poesia de Mário teria sido o ato de coragem suprema do intelectual, a sua redenção como ser humano múltiplo, desengonçado e destrambelhado. A falta de simplicidade, equívoco brejeiro da auto-estima excessiva, é o preço que paga por ser, entre os grandes poetas modernistas, o menos lido e apreciado do grande público.

No caso de Carlos Drummond, a simplicidade é um exercício ético que tem como campo de trabalho (o poeta diria, de luta) as palavras nas suas manifestações imperiosamente coloquiais. Noite e dia, trabalhá-las de tal modo conseqüente, que, ao romper da aurora, tenham-se quebrado os tabus da dificuldade em se comunicar com o outro e semelhante. A simplicidade na poesia de Drummond se alimenta, pois, do esforço fracassado, à semelhança de Sísifo. Fracasso não significa derrota, antes estímulo, como ainda no mito de Sísifo. A comunicabilidade com o outro pela palavra poética, no caso, com o leitor, é conquista e fracasso do individualismo e é, ao mesmo tempo, um ideal ascético de exigência introspectiva e de simplicidade humana, vale dizer, de responsabilidade cidadã e de aversão ao culto do escritor como alguém que, por exercer uma profissão dita nobre, difere dos outros.

Escritores modernos são homens comuns de fala coloquial. Talvez esteja aí uma das razões para Carlos Drummond nunca ter aceito entrar para a Academia Brasileira de Letras, apesar das insistências. "Sois nobre?" -- no anedotário da ABL é a pergunta que o motorista de táxi fez ao pomposo acadêmico vestido com o seu fardão. Precisemos. Certamente está aí a razão pela qual Drummond sempre evitou, durante a vida, as glórias fáceis da vaidade. Leia-se, na presente coletânea, o poema "Aristocracia":

O Conde de Lautréamont era tão conde quanto eu que sendo o nobre Drummond valho menos que um plebeu.

Tema retomado de forma mais barroca e mineira no poema "Duração", onde o poeta se diverte com o jogo entre o substantivo comum glória e o nome próprio Glória:

Fortuna, ó Glória, se evapora,
e a glória se esvanece, Glória.

Se os poetas modernos são seres comuns e de fala coloquial, que expressam anseios comuns -- em que diferem dos outros seres humanos?

Pelo artesanato, em primeiro lugar. A simplicidade é, pois, a forma mais valente, vigorosa e audaciosa do artesanato poético. E a reflexão sobre esse artesanato simples (os chamados poemas de "arte poética", e são tantos na obra completa de Drummond), antes de serem exercícios retóricos sobre os valores intrínsecos e extrínsecos da linguagem humana, são apelos, muitas vezes vãos. No mundo e tempo presentes, menos e menos a palavra escrita consegue articular fraternidade, justiça e cidadania. Eis a tarefa do poeta, oposta em tudo e por tudo à palavra burocrática que, num simulacro de justiça, articula falsa e alienadamente a fraternidade à cidadania. Em Farewell, Drummond interpela de maneira cáustica os burocratas, através da experiência do burocrata que foi, e lamenta: "o sentimento/ da vida que perdi sendo um dos vossos" ("Escravo em Papelópolis").

Pela erotização da linguagem, em segundo lugar. A fala erotizada dos poemas de Drummond (e diria que são todos eles erotizados, havendo apenas uma questão de maior ou de menor intensidade, a maior intensidade se encontrando no poema "Cabaré Palácio", nesta coletânea) é o modo como o poeta dá corpo à linguagem. Ele lhe dá corpo da mesma forma como o tutano dá sustância à sopa rala ao fim de mais uma jornada. Ler ainda nesta coletânea "Missão do corpo":

Salve, meu corpo, minha estrutura de viver e de cumprir os ritos do existir!

O erotismo, explícito ou implícito na linguagem poética de Drummond, situa os poemas no aqui e agora, a fim de que as palavras não se percam nos meandros dos floreios verbais bonitos e vazios. Ou seja, os exercícios éticos em poesia não são, diante do espelho, pedantes volteios da subjetividade em torno ao umbigo; têm a densidade de um corpo que deseja outro corpo, ama, goza, sofre companheiramente, se emociona, castiga, envelhece, enviltece, orgulha-se...

Seus verbos, diz o poema, são: sofrer ("outro nome/ do ato de viver"), amar ("nome-programa/ de muito procurar"), rir ("astúcia do rosto/ na ameaça de sentir"), esquecer ("outro nome/ do ofício de perder"). Como todo bom artesão, Drummond sabe que o objeto poético só tem sentido se feito pelo corpo e para o corpo. Se se pudesse ler de uma maneira leiga a palavra divina, dir-se-ia que, em Drummond, o verbo se faz carne.

Pelo humor, em terceiro lugar. Não pelo bom-humor de Manuel Bandeira, feliz com a vida quando esta se lhe oferece na sua gratuidade de oferenda. Não pelo humor oswaldiano, herdeiro direto da técnica caipira e circense de contar causos. Como diz dele Mário de Andrade, em carta de 1926, Oswald fez "da vida um espetáculo de circo de que ele é o clown. Faz as graças e se ri inda mais que os outros das próprias graças. Sacrifica tudo por uma blague, por uma caçoada". O humor de Drummond está no dístico que escreveu diante do busto de Voltaire, esculpido por Houdon, e que acabamos de ler:

O mundo não merece a gargalhada. Basta-lhe
sorriso de descrença e zombaria.

O humor drummondiano tem alvo: é descrente e corrosivo, dissolve os falsos valores éticos, denuncia os "podres poderes" políticos sobre os quais repousa, em berço esplêndido, o conservadorismo na sociedade brasileira moderna. Ao final da vida, ainda escreverá: "o tigre em mim se demonstra cruel" ("Fera"). Nesse sentido, o seu humor seria precursor do estilo da imprensa nanica, capitaneada, como se sabe, pelo importante movimento político que representou o Pasquim. Trata-se de um humor subversivo, com sabor agri-doce carioca, elaborado com inteligência e propriedade pelos intelectuais e cartunistas logo depois da instauração do AI-5.

Por todos esses significados da simplicidade drummondiana, os seus parentes mais próximos na literatura brasileira não são outros poetas, mas os romancistas Graciliano Ramos e Clarice Lispector. Existe neles e nela um cultivo inimitável da língua portuguesa (tal como falada coloquialmente por todos nós) como matéria para um estilo clássico literário brasileiro (tomamos aqui a palavra clássico como oposta aos exageros e rompantes dos escritores românticos que, acreditam, podem inventar o seu próprio léxico individualizado, como é o caso de Guimarães Rosa). O estilo clássico literário, na modernidade, é o compromisso ético com o dicionário e a gramática. Dicionário e gramática, tomados na sua simplicidade de norma de valor cidadão. Mais limpa e precisa, mais nítida e útil a lingua coloquial portuguesa, mais contundente o seu manuseio pelos que dela necessitam para exprimir os seus anseios de igualdade e justiça.

2. Farewell

Ao reconstruir no Engenho Novo a antiga casa materna de Matacavalos, Dom Casmurro diz que o fim evidente da obra era o de atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Mas logo descobre que falta alguma coisa na cópia exata da antiga casa materna: se o rosto do morador é o mesmo, a fisionomia é diferente. Uma das facetas mais extraordinárias da poesia de Drummond é a generosidade com que foi acolhendo, durante os seus sessenta e seis anos de poesia, novos temas, novas questões e novos estilos, emprestando-lhes o sabor e o saber especial da sua versátil personalidade poética. O rosto de Drummond pode ter sido igual no transcorrer da sua carreira poética, mas as fisionomias, até no mesmo período estilístico ou histórico, até no mesmo livro, são várias, multifacetadas, ambivalentes, rigorosamente múltiplas. Isso está claro desde o poema que abre o seu primeiro livro publicado, Alguma Poesia (1930): "Poema de sete faces". São sete as sorridentes, irônicas e auto-irônicas faces do "dado" humano quando ele é rolado pelo feltro da mesa poética. "Vai, Carlos, ser gauche na vida", é o que lhe disse o anjo torto.

A sua última coleção de poemas, planejada enquanto em vida e agora editada pela Record, abre sintomaticamente com um texto que contradiz o mais antigo poema publicado em livro: "Unidade". Nas últimas duas décadas de vida, pode-se dizer que o grande esforço do poeta foi o de procurar o ponto misterioso e aparentemente inaccessível, espécie de Pandora machadiana, ou de aleph borgesiano, que desse conta da diversidade rebelde da vida ao nascedouro dela. Quanto mais o homem se distancia desse ponto, mais se se aproxima dele. Eis aí o que Drummond, nos poemas de Farewell, chama com muita propriedade de "A ilusão do migrante":

Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.

Drummond lê genealogias como um detetive de conto de Edgar Alain Poe. Interpretados com o cuidado que merecem, os poemas hoje enfeixados sob o título geral de Boitempo,que "A ilusão do migrante" retoma na presente coletânea, caminham passo a passo em direção a uma "Raiz" (v. Boitempo II) onde o ser múltiplo (ou seja: o que se julgava outro e atrapalhado, como no poema "O Malvindo") se reencontraria com a singela unidade do "mesmo", que, ao lher dar origem, o explicou, o explica e o explicará até nas suas antigas artimanhas de filho rebelde:

Os pais primos-irmãos
avós dando-se as mãos
os mesmos bisavós
os mesmos trisavós
os mesmos tetravós
a mesma voz

Esse périplo, esse "caminhar de costas", é o do filho pródigo. Encontrará ele, nas abandonadas e finalmente recuperadas "tábuas da lei mineira de família", religião e razão, modo de ser e de sentir, modo de devir. Todo esse saber familiar estava ali, à sua espera, sem que se desse conta dele. Bastou o poeta querer, querer saber quem é (o singular aqui é plural), para que, como por um passe de mágica, todo o passado do clã ressuscitasse em esplendor e miséria, em glória antiga e decadência no presente.

Mas a história única de Boitempoé a história humana de um clã, os Andrade, história extrovertidamente apaixonada e datada pelos eventos de uma região, Minas, e de um país, o Brasil, com geografia delimitada, nas fronteiras rurais, pelas "braúnas" e, nas fronteiras urbanas, pelas montanhas pulverizadas de minério de ferro. Como no poema "As identidades do poeta", no presente genealógico ele prefere "ignorar/ esse enigma chamado Fernando Pessoa", que caminha pelas ruas da Baixa "em companhia/ de tantos si mesmos".

A unidade que o poema de Farewell busca extrapola os limites de uma vida humana, da história de um clã; ela engloba tudo o que vive e existe sobre a face do planeta. A dicção poética drummondiana, em geral terra-a-terra, se alimenta neste último livro de inesperado vôo cósmico, lembrando investidas semelhantes às do poeta negro simbolista Cruz e Sousa. Nada do que é do homem é privilégio dele, diz o poema. Até mesmo a dor não é privilégio nosso. Também sofrem as plantas, as flores e as pedras, pois

esta é a chave da unidade do mundo.

No poema "Acordar, viver", volta a perguntar sobre a matéria tristonha dos dias que se sucedem, a repetir hoje as coisas ásperas de ontem:

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?

Os poemas que Drummond escolheu para as páginas iniciais de Farewell são como a flordo poema "Unidade": há neles "uma queixa abafada/ em sua docilidade". Assim é que o velho poeta sente a vida e o modo como responde, quando tocado por "mão inconsciente". Seria essa mão inconsciente a da "mais indesejada das gentes"? a da morte próxima? Não estamos enganados. Se passamos à leitura do poema seguinte à "Unidade", o jogo com os adjetivos de "carne" ("envilecida", "encanecida", que lembram outro, mais óbvio e, por isso, ausente do poema, "envelhecida") traz de volta humor corrosivo e erotismo, lado a lado. Numa espécie de pacto do homem envelhecido com o Diabo, à semelhança do feito pelo Dr. Fausto na Idade Média, o poeta ambiciona o consolo do amor. Só que o Diabo, no poema de Drummond, pode apenas oferecer à carne envilecida, encanecida, um simulacro feminino de graça e de beatitude que, bem medida a realidade, é o aroma que se espalha "de flores calcinadas e de horror".

Versos tristes e desesperançados, sem duvida, que ecoam ao final do livro, nos versos do poema "Restos", onde "O Amor, o pobre amor estava putrefato". Talvez seja por essa razão que, em outro texto, o poeta acabe preferindo o sono à vigília, porque durante aquele "não existe vida/ e eu quedo inerte sem paixão". Pior: "Não mais o sonho, mas o sono limpo/ de todo excremento romântico". Mais dolorosos e sofridos são os versos finais do curto e claustrofóbico poema "Liberdade". Ali se diz, primeiro, que o pássaro é livre na prisão do ar. Acrescenta-se que o espírito é livre na prisão do corpo. E o poema se encerra com estes versos:

Mas livre, bem livre,
é mesmo estar morto.

Depois de uma série de poemas onde o tom sombrio da vida domina, a paixão amorosa reaparece sob a forma delicada de um verso tomado de empréstimo a um soneto de Camões: "A grande dor das cousas que passaram", também título de belo e comovente soneto de Farewell. Ao rever as fotos da amada, ao mesmo tempo em que lê o soneto do clássico renascentista, descobre que, na ópera da vida, o libreto vai para um lado e a música em direção oposta. No desconcerto da velhice, descobre as sutis maquinações da alquimia amorosa. "A grande dor das cousas que passaram" transmutam-se em "finíssimo prazer" para aquele que consegue reflorir, pelo amor redivivo e pela memória-imagem, "os beijos e amavios que se amavam":

Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo a minha voz

A paixão amorosa. Verdadeira e única "Perturbação": "Não pode a fera comigo/ quando estou, quando estou apaixonado,/ mas me derrota a formiga/ se é que estou apaixonado". Não há como sobreviver sem a paixão amorosa; a ausência dela é a morte; por isso ela pode se apresentar no poema "Aparição amorosa" sob a forma de um "doce fantasma" cuja transparência roça-lhe a pele. O poeta constata ao final, numa série de versos contraditórios que ecoam uns aos outros, explicitando o seu atual sentir-amar-lembrar:

Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.

A paixão amorosa pode estar ainda nas descrições ternas e suaves das moças-manequins, ou dos manequins-moças de "A loja feminina", onde o poeta se dissolve "nesse enigma de formas permutantes", e está também nos bibelôs de Saxe e Delft, que são contemplados em "Os vasos serenos". Está, e de forma brilhante, no denso poema "Os 27 filmes de Greta Garbo", onde imagem da atriz na tela e corpo do poeta na platéia se confundem, diz o verso, para que se realize "a unidade na miragem", espelho e destino:

Não julgo seus adultérios burgueses
nem me revolta sua morte espatifada contra a árvore
ou sob as rodas da locomotiva.
Sou seu espelho, seu destino.

Além de ser o poeta da paixão amorosa, Drummond é também fiel amigo dos amigos. É impossível não destacar, nesta leitura breve de Farewell, o contraditório e sentido poema "A um ausente" (possivelmente dedicado ao amigo e companheiro de geração Pedro Nava). O prematuramente ausente rompeu um trato: foi-se sem se despedir:

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem se despedires foste embora.

3. "Arte em exposição" e "Imagem, terra, memória"

Dizer que Carlos Drummond pouco ou nada viajou durante a sua vida é um lugar-comum biográfico. Viagem ao exterior, apenas à Argentina, por causa da filha única, casada, e dos dois netos. Não teve sentido para ele fazer, no momento apropriado ou tardiamente, a chamada viagem cultural pelos países desenvolvidos do mundo. No entanto, não existe poesia menos provinciana na moderna literatura brasileira, mesmo quando, à semelhança de Guimarães Rosa, trata especificamente de uma dada região de um dado Estado do país. Parágrafos atrás citamos o "Poema de sete faces", primeiro do primeiro livro publicado, Alguma Poesia. Agora, chegou o momento de citar o poema seguinte, "Infância".

Nesse poema, é delicado o entrecruzar de experiências: a experiência calada do menino tímido e interiorano, filho de fazendeiro, com a extraordinária aventura marítima vivida em tempos antigos por Robinson Crusoé, no romance de mesmo nome. Ao ler o romance, estampado em O Tico-Tico, o menino aprecia a heróica aventura alheia, toma-a para si, identifica-se a ela e a introjeta na sua imaginação criadora, para enxergar de modo diferente e melhor a família, a paisagem e a vida besta ao redor. Itabira não é a mesma depois da leitura de Robinson Crusoé. É uma outra, como se entre os olhos da criança e a cidade houvesse levantado uma tela transparente que servisse de crivo crítico e de mediação alegórica para a reconstrução das aventuras da "infância" e, mais importante, para a invenção do poema drummondiano, em nada "regional", como estamos vendo, na sua fatura. Termina o poema: "E eu não sabia que minha história/ era mais bonita que a de Robinson Crusoé". Muitos anos depois da publicação de "Infância", trinta e oito anos depois, para ser preciso, Drummond escreve um outro poema sobre o mesmo tema, "Fim", hoje em Boitempo I. Nele lê-se:

Quando Robinson Crusoé deixou a ilha,
que tristeza para o leitor do Tico-Tico.
Era sublime viver para sempre com ele e com Sexta-Feira na exemplar, na florida solidão,
sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui.

O cosmopolitismo na poesia de Drummond vem, pois, da aventura-da-viagem-pela-leitura. A escolha de livros a ler é pouco seletiva, variada e rica, abarcando todos os gêneros literários e todas as épocas históricas. No poema "Iniciação literária", o texto hifeniza leitura, viagem e aventura de modo inesperado e definitivo:

Leituras! Leituras!
Como quem diz: Navios... Sair pelo mundo
voando na capa vermelha de Júlio Verne.

Em outro e esclarecedor poema, "Biblioteca Verde", o livro é comparado a variados meios de transporte (nacionais e estrangeiros) ao mesmo tempo em que a leitura é comparada às trapalhadas do viajante neófito e provinciano que, quanto mais trapalhão, mais se identifica com as aventuras extraordinárias que lê e absorve, transformando-as em partes integrantes do seu próprio modo de ser, de pensar e de escrever:

Mas leio, leio. Em filosofias
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias
me perco medievo; em contos, poemas
me vejo viver. Como te devoro,
verde pastagem. Ou antes carruagem
de fugir de mim e me trazer de volta
à casa a qualquer hora num fechar
de páginas?

Enquanto poeta, Drummond foi antes de mais nada um extraordinário leitor, tão, ou mais extraordinário que os críticos e profissionais da sua época. Não apenas leitor de livros, mas ainda e sempre "leitor" (a partir de agora usamos leitor e leitura em sentido amplo) de filmes. Não existe melhor leitura dos filmes de Carlitos do que a sua, que culmina com o fascinante "Canto ao homem do povo Charlie Chaplin", longo poema que encerra A rosa do povo: "ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança". Nem falemos da leitura dos filmes de Greta Garbo, pois já mencionamos o comovido poema que se encontra nesta coletânea.

Aqui e ali, na obra completa de Drummond, de modo esparso, está também o leitor de artes plásticas (em particular das obras dos barrocos mineiros, Aleijadinho e Athaide, e das obras de contemporâneos, como Portinari) e de fotografias (em geral dos álbuns de família). Mas em Farewell, o poeta atinge dois pontos culminantes nesta linha relativamente pouco explorada: "Arte em exposição" e "Imagem, terra, memória".

Não se pode dizer que, enquanto apreciador de obras de arte, Drummond se apresente como um crítico profissional. Raramente ele aprecia o todo do quadro, ou seja, os diversos movimentos da sua composição. Trata-se antes de um olho crítico seletivo e, principalmente, obsessivo. Seus olhos vão diretamente ao detalhe que dá forma ao quadro ou à escultura e que, para ele, ilumina o todo, se ilumina sob a forma de poema. Não importa que esse detalhe seja um lugar-comum, pois o modo como o lê é tão pessoal. que a leitura acaba por acomodar-se ao quadro como nova e original, muitas vezes demolidora de todas as outras leituras. É o caso do modo como lê a dor estampada no rosto da mãe Nossa Senhora com o filho crucificado nos braços ("Pietà"): a dor é incomunicável, escreve ele, mas transposta com engenho & arte para o mármore, comunica-se e nos acusa a todos pelo crime cometido. É ainda o caso do sorriso de Gioconda. O recado é claro: não tente, caro leitor, decifrá-lo através das interpretações dos críticos e históriadores de arte, contemple o sorriso de Gioconda, pois o desenho dos lábios é o que é, ardiloso e silencioso:

O ardiloso sorriso
alonga-se em silêncio
para contemporâneos e pósteros
ansiosos, em vão, por decifrá-lo.
Não há decifração. Há o sorriso.

Há o detalhe. A Vênus adormecida que esquece a mão direita no lugar para onde os devaneios conduzem o desejo: "Acalenta no sono/ o púbis acordado". O enfado no rosto de Leda diante dos avanços desmedidos do cisne que, num derradeiro gesto de paixão, desenha e retém com o branco da asa as formas amorosas da amante fugidia. Há o detalhe: da cabeça aos pés, o êxtase ou o orgasmo de Santa Teresa, em visão celestial e doce delírio. Há o detalhe: o cachorrinho da Duquesa de Alba que traz na pata traseira o mesmo laço de fita vermelha que a dona traz no colo:

Ser o cachorrinho da Duquesa
é de certo modo
ser uma partícula da Duquesa.

Há o detalhe: no "Fuzilamento da Moncloa", a figura humana à esquerda, em branco e de braços abertos, qual Cristo, se apronta para a Ressurreição. Há o detalhe: os sapatos cansados num primeiro quadro, as mesas vazias e alucinadas no segundo, no terceiro a cadeira vazia onde se adivinha o homem angustiado -- sempre Van Gogh.

Há ainda situações dramáticas em que o poeta se autocontempla, figuras com que o poeta se identifica. Ele se vê num quadro, como o modelo se enxerga a si melhor num retrato pintado por Quentin Metsys. São vários os exemplos. Destacaremos dois. Primeiro, o sugestivo "Retrato de Erasmo de Rotterdam, autor de O Elogio da loucura:

Santidade de escrever,
insanidade de escrever
equivalem-se. O sábio
equilibra-se no caos.

Em seguida, "Gentil homem bêbado". Os traços simples e singelos da figura representada no quadro já foram comparados, por Geraldo Jordão Pereira, a traços semelhantes que se encontram numa autocaricatura de Drummond:

De Baudelaire o conselho:
É preciso estar sempre bêbado.
Além do imaginário e do real
é preciso estar sempre sóbrio
para pintar a bebedeira.

Se "Arte em exposição" é o vôo do olhar cosmopolita de Drummond, viajando pelos melhores quadros cobiçados pelos melhores museus do mundo, "Imagem, terra, memória" é o compromisso do olhar mineiro com uma outra viagem. Com uma "fotoviagem" (a expressão é do texto), viagem à terra que trouxe à vida o poeta e, como diz o poema "A ilusão do migrante", "tudo é conseqüência/ de um certo nascer ali". Esses poemas se oferecem ao leitor como uma leitura das fotos da coleção de Brás Martins da Costa. Não é ele apenas proprietário do álbum de fotos, mas também "sutil latinista, fotógrafo amador/ repórter certeiro,/ preservador da vida em movimento". Não é apenas tudo isso, mas é também e sobretudo o "guia" do poeta, espécie de narrador-camponês, para usar a expressão de Walter Benjamin, que vai descodificando para o narrador-marinheiro, esquecido das velhas coisas que ele sabia mas de que não se lembra mais. É preciso "esquecer para lembrar", diz um dos subtítulos de Boitempo.

A viagem agora é pela terra e pela memória. Os sete cavaleiros da primeira foto do álbum de Brás Martins convidam o poeta para uma estranha viagem, que é feita de inversões e paradoxo. Convidam-no "a percorrer este mundo/ miudinho dentro do mundo/ e grande maior que o mundo". Na foto seguinte do álbum, agiganta-se a figura do patriarca, o Guarda-Mor, cercado dos seus quarenta e seis descendentes. Ao lado, um detalhe: a figura de uma menina crucificada. Sinal de culpa e resgate, a pequena infante, qual "a menina morta" de Cornélio Pena, se agigantará, pelo desejo da população, num cruzeiro que majestaticamente, do alto do pico do Caué, velará pela cidade, "sobre interesses e podres de família,/ sobre fazendolas hipotecadas". Em fotopoemas sucessivos, o retrato da cidade se enriquece, na medida em que a grande família vai ganhando os comparsas religiosos e os agregados remediados, vai oferecendo aos olhos atentos do observador objetos e animais de estimação e até mesmo uma banda de música, uma "Euterpe morena".

O terceiro fotopoema é todo dedicado a essas moças interioranas (como poderiam faltar?) que se debruçam na janela, não se sabe se para olhar "o alvo corpo do anjinho/ no rumo direto do céu", ou para cismar com a estrada, à espera do Salvador forasteiro, que as libere das condenações "ao casamento sem amor, ao sexo abafado,/ ao tio-com-sobrinha, ao primo rico ou de futuro". Ali naquela foto, "gravada ficou a beleza que a opressão familiar/ não empalidece, não destrói". Moças que escondem as belas formas no pesado gorgorão dos vestidos de missa.

O fotopoema conclui com um verso que pode ser também uma comovida homenagem e inesperada conclusão para o belo livro que acabamos de ler:

imagem, vida última dos seres.

Silviano Santiago

New Haven, março de 1996

 

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