Introdução

Por Carolina Lima

Para questões de didática, Clarice Lispector é enquadrada no período da Literatura Brasileira chamado Modernismo, mais precisamente na 3º fase, que possui como características um aprofundamento maior nas questões humanas, uma preocupação com o homem e suas inquietações espirituais como o estar no mundo. Há também uma linha de pesquisa de linguagem, da reinvenção do código lingüístico, cujos maiores expoentes nessa fase pós-45 são justamente Clarice e João Guimarães Rosa. Escreviam Romances Instrumentalistas, pois havia preocupação extrema na construção de trabalhos como "instrumentos da palavra". Buscava-se a universalização através de sondagem do mundo interior dos personagens, sendo que temas tratavam do que era comum a todos os seres humanos: a solidão, o vazio existencial, a busca de felicidade, busca por conhecer-se a si mesmo e tentar entender o mundo, a explicação para a vida e para a morte, a aproximação com uma força maior e sobrenatural que rege o Universo, chamado Deus.

Essa literatura baseava-se ainda na análise psicológica dos personagens levando a uma abordagem penetrante dos problemas gerados pela tensão existente entre os indivíduos e o contexto social em que viviam. O texto deixa de ser a narrativa de uma aventura para tornar-se a aventura de uma narrativa, pois não há uma preocupação em ordenar os fatos dentro de uma cronologia com princípio, meio e fim. A forma de exposição se dá mediante ao fluxo de consciência, sendo a continuidade temporal abalada, desfazendo-se ordem cronológica e fundindo-se, muitas das vezes, presente, passado e futuro.

Clarice Lispector

Clarice Lispector escrevia fazendo a prospecção do mundo interior numa tentativa de absorver o mundo pelo eu. Havia um total aprofundamento nas questões interiores, que a tal ponto de exacerbação, a própria subjetividade entrava em crise e o espírito, perdido no labirinto da memória e da auto-análise, reclamava por um novo equilíbrio, transcendendo do plano psicológico para o metafísico.

A escritora fazia o uso intensivo de metáforas insólitas para comparar e aproximar mais os leitores do mundo interior de seus personagens. Não escrevia com um começo definido no tempo, nem um epílogo. Havia um contínuo denso na experiência existencial e o reconhecimento de uma verdade que despoja o eu das ilusões cotidianas e o entrega a um novo sentido de liberdade. O objetivo de Clarice, em suas obras, é o de atingir as regiões mais profundas da mente das personagens para aí sondar complexos mecanismos psicológicos. É essa procura que determina as características especificas de seu estilo.

O enredo tem importância secundária. As ações - quando ocorrem - destinam-se a ilustrar características psicológicas das personagens. São comuns em Clarice histórias sem começo, meio ou fim. Por isso, ela se dizia, mais que uma escritora, uma "sentidora", porque registrava em palavras aquilo que sentia. Mais que histórias, seus livros apresentam impressões.

As personagens criadas por Clarice Lispector descobrem-se num mundo absurdo; esta descoberta dá-se normalmente diante de um fato inesperado. Aí ocorre a "epifania", manifestação espiritual súbita, provocada por uma experiência que, a princípio simples e rotineira, acaba por mostrar a força de uma inusitada revelação, sendo o momento em que a personagem sente uma luz iluminadora de sua consciência e que a fará despertar para a vida e situações a ela pertencentes que em outra instância não fariam a menor diferença. Os objetos mais simples, os gestos mais banais e as situações mais cotidianas provocam uma iluminação repentina na consciência da personagem provocando um desequilíbrio interior que mudará para sempre sua vida.

No romance A Paixão Segundo G.H, há claramente esse momento epifânico quando G.H, uma mulher sem nome, vivendo apenas por viver, acomodada em seu confortável mundo de classe média, depara-se com um animal que representa tudo de repugnante e asqueroso que para ela pode existir: uma barata. Essa barata a faz questionar-se acerca de sua vida, sempre tão ordenada, tão acomodada e sem reflexão. Quando vê-se cara a cara com aquele inseto, questiona-se sobre o viver, o existir, o estar no mundo, como se aquela aproximação com o repugnante fosse uma aproximação com Deus, já que não nos igualamos ao criador por sentirmos repugnância por seres que ele mesmo criou, como por exemplo a barata. Questionamos o sentindo de Deus ter criado seres tão complexos como os homens e tão ínfimos como as baratas. Nesse momento nos afastamos do Criador.

G.H, numa experiência de aproximação com o divino e com seu íntimo mais íntimo, come a barata, e nesse instante, ela e Deus se tornam um só, pois a substância branca da barata a interligava com o criador, provando mesmo o que para ela era nojento, absurdo. Entrava então em sintonia consigo mesma e ao cuspir a barata, era como se cuspisse tudo que antes era, todo seu comodismo, sua não reflexão, sua não-vida, para entrar em contato com uma nova existência, novos valores e ser uma nova mulher.

O sentido do título se dá nesse momento. Como a Paixão de Cristo, também G.H passa por momentos de reflexão, sofrimento e dor para chegar à redenção e ao salvamento.

"Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do...divino? do que é real? O divino para mim é o real."

Há também em suas obras uma intensa reflexão sobre o ato de escrever e o que significa passar para o papel aquilo que é mais recôndito no ser humano. Acerca do ato de escrever, Clarice declarava:

"Não é fácil escrever. É duro quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados".

"Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas".

"Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo."

Dessa abordagem interior e psicológica, resulta uma narrativa introspectiva em forma de monólogo interior, em que muitas das vezes pode-se confundir narrador e personagens, sendo difícil estabelecer essas fronteiras. Essa centralização na consciência contribui para a digressão, a fragmentação dos episódios e o desencadeamento do "fluxo da consciência" como expressão direta dos estados mentais, nos quais parece manifestar-se diretamente o inconsciente, no que resulta certa perda de seqüência lógica. Muitas personagens não apresentam sequer nome.

Na trilha filosófica do existencialismo, Clarice enfatizava a angústia do homem diante de sua liberdade para escolher o curso que desejava dar à vida. Essa escolha é necessária, já que sua existência não está predeterminada, e a maneira de cada indivíduo ser e estar no mundo e sobretudo entendê-lo, resultava de sua própria ação. Assim, ele tem a liberdade de optar por uma vida autêntica e questionadora, mas isso provavelmente o levará a enxergar um mundo absurdo em que nada faz sentido, nem mesmo a vida, a existência e afundará-se num abismo de perplexidades. Por outro lado, pode refugiar-se nas banalidades do cotidiano e nos interesses imediatos, limitados e efêmeros, os quais nunca o deixarão plenamente satisfeitos.

Os romances e contos de Clarice percorrem etapas definidas. Num primeiro momento, a personagem está disposta em uma determinada situação cotidiana em que o equilíbrio está presente. Um evento é pressentido discretamente e prepara-se o ambiente para que tal evento ocorra, até que ocorre e isso "ilumina" a vida da personagem, tendo então seu momento de epifania, iluminação, até que após o fato a vida da personagem se modifica completamente, ocorrendo o desfecho.

Lóri, personagem principal de Uma aprendizagem ou Livro dos Prazeres também vive angústia semelhante a G.H, está à procura das razões do viver e sobretudo do amar. Ela sabe que a existência é construída a partir de escolhas, nem sempre conscientes e muitas vezes inconfessáveis. O amor por Ulisses é sentido mas não é concretizado no plano sexual pois ele aguarda que ela esteja pronta.

"E agora era ela quem sentia vontade de ficar sem Ulisses, durante algum tempo, para poder aprender sozinha a ser. Já duas semana se haviam passado e Lóri sentia às vezes uma saudade tão grande que era como uma fome. Só passaria quando ela comesse a presença de Ulisses. Mas às vezes a saudade era tão profunda que a presença, calculava ela, seria pouco; ela queria absorver Ulisses todo. Essa vontade de ela ser Ulisses e de Ulisses ser dela para uma unificação inteira era um dos sentimentos mais urgentes que tivera na vida. Ela se controlava, não telefonava, feliz em poder sentir."

Lóri, em profunda crise existencial, busca conhecer-se através de Ulisses e construir-se, como sujeito Decide correr riscos e sabe sobretudo que "quem é capaz de sofrer intensamente, também pode ser capaz de intensa alegria" e assim Lóri vai vivendo, enfrentando a vida, se enfrentando e buscando respostas e a felicidade ao lado de seu amado. Se é uma aprendizagem para Loreley, é uma lição para a mulher de como viver e sobretudo amar.

O Mundo de Clarice

Por causa da intensa exacerbação do mundo interior no momento de escrever, Clarice foi acusada pelos críticos de hermética. Diziam-na inatingível, inalcançável, com um universo demasiado complexo. A essas acusações a autora respondia: "Me chamam de hermética. Eu me compreendo, de modo que não sou hermética para mim".

A visão da escritora é lógica na medida em que o universo dela é entendido com clareza para ela e não para os outros. Dizia que escrevia simples, não enfeitava e também que entendê-la não era uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato, de tocar ou não.

Para ela, o ato de escrever significava mais do que colocar impressões no papel, era um modo de ela tentar responder a perguntas às quais não encontrava respostas. E também um modo de viver sem estar sufocada, pois para ela o existir era um apesar de e que quando não escrevia dizia que estava morta.

"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada."

 

 

Uma reflexão de Clarice Lispector

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio. Que é que eu posso escrever. Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espirito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras. Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade.

Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida.

As palavras é que me impedem de dizer a verdade. Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo.

Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também.

Sim, mas é a sorte às vezes. Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras.

Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial.

Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora. Simplesmente as palavras do homem."

 

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