Adorno e Bourdieu: distinções entre arte erudita e arte popular nos domínios da produção musical e da recepção da obra de arte
Adorno faz uma distinção entre os tipos de arte para ele existentes.
Ele nota a existência da chamada música séria e da música ligeira. A música séria é a chamada música clássica; por música ligeira se entende toda música dedicada ao consumo, ao entretenimento. Ele faz essa diferenciação porque percebe que a paz musical é perturbada e assim acontece pela decadência do gosto. Essa decadência ocorreu mais de uma vez durante todo o período da história, e essas perturbações estão ligadas à ruptura da função da música. Na verdade, mais precisamente pela ruptura na produção musical que, para Adorno, diz respeito aos procedimentos de composição. Ao falar de regressão, ele se refere ao modo de percepção da música.Então, diz Adorno, se há uma decadência do gosto nos nossos dias, ela vem do mercado. Isso é um ponto importante, visto que é no campo da distinção entre as músicas que o mercado atua de maneira a transformar uma música e outra em objetos de compra e venda apenas. É aqui que entra a distinção entre as músicas, mesmo que, sob a ótica do mercado para Adorno, ela não mais proceda, seja apenas ideológica.
Ao falar de música ligeira, o que se percebe é algo como uma espécie de indignação por parte do autor: "para quem a música de entretenimento serve ainda como entretenimento? Ao invés de entreter, parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação."(Adorno,1980:166). Ele chega a identificar a música ligeira como a música para "as pessoas deformadas pelo medo" (Adorno,1980:166). Uma das principais características dessa música para ele é o fato de servir apenas como fundo, isto é, "se ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio que já ninguém é capaz de ouvir"(Adorno,1980:166). O que se percebe com essas construções é a ênfase que ele dá ao dizer que a música ligeira não tem linguagem, ou não transmite nada como código simbólico.
Ainda sobre a música ligeira, observa-se as repetidas considerações acerca da massificação da mesma, o que se mostra como uma degeneração. Degeneração dos sentidos através do encantamento desses, "que no entender de muitos amolece e torna a pessoa incapaz de qualquer atitude heróica."(Adorno,1980:166). Como se ainda não fosse suficiente, Adorno deposita mais alguns predicados para a música ligeira quando diz que ela desobriga o ouvinte de pensar no todo, de pensar no contexto geral da situação ao tornar viável e acessível o prazer momentâneo. Em outras palavras, o ouvinte se transforma apenas em comprador e em consumidor passivo, visto que, desatentamente, só se apropria de trechos das obras; a autonomia desses momentos de encanto e prazer embotam o espírito. Isso é uma espécie de alienação, que, aliás, não data da atualidade, mas já possui momentos no passado.
É aqui que aparece o mercado como decadência do gosto. Ele se limita a produzir os objetos de compra e venda os quais agradem o público. A pergunta que faço é: como são produzidos os gostos sociais a ponto de viabilizar exatamente a percepção do mercado a tais preferências? Pergunto pois parece que o mercado dá ao público somente o que ele é capaz de entender. Mas aqui cabe ainda uma segunda pergunta: o que é que o público entende? E se entende, quais são os instrumentos que ensinam-no a entender? O mercado mercantilizou a música ligeira de tal forma que uma disciplina do gosto não se faz mais presente nem indispensável; o mercado transformou as músicas em objetos descartáveis, isto é, objetos que já vem com sua embalagem bastante visível, de acesso a qualquer pessoa de com um dispositivo que não requer nenhum esforço para que o produto seja consumido: é só abrir, usar e jogar fora.
Olhando por esse prisma, é possível ver que o mercado derrubou o liame que separava a música ligeira da música clássica. Esta tem algumas características que a difere da primeira. Essa não se baseia em achados, ao referir-me à idéia de plágio. Pelo contrário, ela tem no todo a sua significação; o conteúdo da música é a sua própria linguagem. Esta música requer treinamento, exige estudo e instrumentos para que sua apropriação seja possível.
Mais uma vez, o mercado. Ele se configura na atualidade como a própria regressão da produção musical, visto que tomou conta até das grandes obras eruditas dos grandes compositores. Se por um lado ele faz com que a música popular (ligeira) se torne acessível a todos, além de, ele próprio, se transformar na disciplina do gosto dos dias atuais para essa música, ele transforma os elementos componentes da música erudita em formadores de valor de troca para a (des)valorização desta. Em outras palavras, o mercado se configura como a regressão da audição porque não veicula a música na sua linguagem simbólica real para quem dela se apropria, pelo contrário, quem dela faz uso se apropria apenas dos seus componentes adjacentes. Então, por não dispor dos instrumentos capazes de decodificar os códigos simbólicos, criam novas instâncias que legitimam a veiculação de tal categoria de música, como, por exemplo, a figura do gênio musical, a fetichização do maestro e de alguns outros agentes do mundo da música.
Ora, a perturbação da paz musical diz respeito à ruptura da função da música que é a manifestação imediata do instinto humano, ao mesmo tempo que é a própria instância para o seu apaziguamento. É a ruptura dos procedimentos de composição, isto é, ocorreu a passagem da música como linguagem para uma música enquanto fetiche. Ela perdeu o seu valor de uso, "ganhou" um valor de troca e, o que é ainda pior, o valor de troca se fantasiou de valor de uso, fazendo com que a música tenha apenas o valor dado pela sua produção. Quem fez tudo isso foi a indústria cultural, a qual fetichizou e mercantilizou a música. Isso, para Adorno, é uma regressão e uma regressão no modo de percepção. É exatamente aqui que entra a figura do mercado. Ele aglutina as duas músicas, popular e erudita, através da mercantilização e, com isso, derruba o liame do qual fiz referência no início do ensaio.
A situação das músicas e, conseqüentemente, a de suas respectivas percepções e apreensões ficam muito parecidas: eis uma proeza do mercado. Ficam parecidas porque, agora, o que anteriormente era uma expressão da verdade passou a determinar o prestígio de quem ouve. A produção musical na atualidade, segundo Adorno, domina os modos de percepção, visto que ela reflete as tendências e as contradições da sociedade burguesas e isso é uma completa auto-alienação.
Bourdieu também trata da questão da arte popular e arte erudita. Aqui a discussão caminha por outros meandros que não os da produção, e sim pelo caminho da reprodução cultural e social das artes.
Falando de nomenclatura, Bourdieu usa dos termos objetos técnicos e objetos estéticos (ou objeto de arte); funcionais, para a atualidade, e artísticos, para os objetos históricos. A questão da recepção da obra de arte toma corpo quando se percebe que a distinção entre eles se dá pelo arbitrário social. Além disso, cabe a pergunta: "de que maneira pode-se escapar à conclusão de que é a intenção estética que 'faz' a obra de arte, ou melhor, ... de que é o ponto de vista estético que cria o objeto estético?"(Bourdieu,1992:270). A resposta, ou pelo menos uma primeira explicação para tal pergunta vem a seguir: "a classe dos objetos de arte seria definida pelo fato de que exige uma percepção guiada por uma intenção propriamente estética, ou seja, percepção de sua forma muito mais do que de sua função. O problema é que não há meios para se fazer uma determinação científica, e portanto precisa, do momento em que um determinado objeto tornou-se uma obra de arte. Assim, mais um questionamento se faz presente: "Quer dizer que a linha de demarcação entre o mundo dos objetos técnicos e o mundo dos objetos estéticos depende da 'intenção' do produtor destes objetos?"(Bourdieu,1992:270) O próprio Bourdieu diz que "esta 'intenção' constitui ela própria o produto das normas e das convenções sociais que concorrem para definir a fronteira sempre incerta e historicamente mutável entre os simples objetos técnicos e os objetos de arte."(Bourdieu,1992:270). A partir daqui começa a construção teórica de Bourdieu.
Existem alguns requisitos para a apreensão e para a percepção da obra, requisitos os quais, eles próprios, fornecerão as chaves para poder decifrá-los. Em primeiro lugar, o apreender e o perceber a obra de arte dependem não só da intenção do espectador __ que já é fruto das normas sociais que regem e intermedeiam a relação entre ouvinte e obra __ como também da capacidade que o observador tem de entender e aceitar tais normas, isto é, da sua competência artística. O problema está em resolver, a partir das teorias sociológicas, o problema que aqui se configura: como entender os diversos graus de socialização já que as pessoas são diferentes, por isso têm volições diferentes, apreendem uma norma social de maneira desigual e portanto vêem e entendem os objetos de acordo com suas possibilidades e limitações?
Talvez a única maneira seja como Bourdieu fez:
"Para escapar à aporia, a única maneira de tratar a percepção propriamente estética da obra de arte, ou seja, a percepção considerada a única legítima em uma dada sociedade, consiste em abordá-la como um fato social cuja necessidade deriva de uma instituição arbitrária..."(Bourdieu,1992:271)
Quando algum objeto é designado como digno de ser atribuído o status de obra de arte, observa-se que algumas instituições são investidas de uma certa autoridade e de um certo poder de impor um arbitrário social e cultural. As instâncias mais comuns são a família e a escola, visto que elas são as maiores responsáveis pelos processos de socialização primária e secundária do indivíduo. Por socialização primária e secundária, faço uso dos conceitos de Berger e Luckman no livro A Construção Social da Realidade. Segundo tais autores, é pelo processo de socialização primária __ o qual é submetido na infância __ que o indivíduo se torna membro de sua sociedade. Dentre as principais características desse processo, encontram-se os atributos de ser inevitável, na medida que o sujeito não escolhe seus agentes socializadores; de ser irrelativizável, pois os aspectos da realidade objetiva e subjetiva são filtrados pelos agentes socializadores, isto é, estes fornecem à criança a sua própria versão da realidade e dos seus sistemas simbólicos; e o fato de essa socialização acontecer em um contexto de fortes e estreitos laços afetivos, os quais possibilitam, de acordo com sua distância, maior ou menor apreensão. Os sistemas simbólicos apreendidos nessa fase são muito mais arraigados e resistentes à erradicação.
De outra maneira está o processo de socialização secundária, que se caracteriza por ser não apenas um, mas vários, de acordo com a gama de setores da sociedade que o indivíduo esteja ligado ao longo de sua biografia. Os processos de socialização secundária não pressupõem elevados graus de identificação com os agentes socializadores e, por isso, em conseqüência, os sistemas simbólicos apreendidos são mais frágeis e mais passíveis de erradicação. Em outras palavras, o processo de socialização secundária torna o sujeito já socializado membro de novos setores de sua sociedade.
Sem entrar no mérito da fragilidade dos sistemas simbólicos adquiridos no processo de socialização secundária __ mesmo tendendo a concordar __ , é preciso enxergar que, tanto a família quanto a escola, na medida em que reproduzem uma cultura a qual não é nada mais que a interiorização do arbitrário cultural, têm mascarado de maneira cada vez mais bem acabada "o arbitrário das significações inculcadas e das condições de sua inculcação."(Bourdieu,1992:272). Assim, as condições sociais de se abordar a obra de arte de maneira legítima precisam ser consideradas, visto que o ideal de percepção da obra de maneira pura é
"produto de um longo trabalho de 'depuração' que se inicia desde o momento em que a obra de arte se despoja de suas funções mágicas ou religiosas ..., tendentes cada vez mais a levar em conta exclusivamente as regras transmitidas por uma tradição herdada e cada vez mais em condições de libertar sua produção e seus produtos de toda e qualquer servidão social."(Bourdieu,1992:273)
Em outras palavras, o modo de percepção estético é o resultado da transformação do modo de produção artístico, que é legitimado com o passar do tempo pelas instituições sociais. Com isso, a obra de arte impõe à percepção da obra as normas puras de sua concepção, igualando os espectadores nas suas incapacidades de percepção e nas suas ignorâncias.
Quer dizer, Bourdieu trata a arte como um bem simbólico. Isso é fundamental porque ela só existirá para aqueles que possuírem os meios para sua apropriação, isto é, só se constituirá em bem simbólico para os que detiverem o código de interpretação do bem em questão. O problema está nos códigos. Estes são construídos historicamente e reconhecidos socialmente como condição de apropriação simbólica. Mesmo assim, como é que fica a questão de que pessoas que moram em uma mesma localidade, na mesma época, as quais tenham freqüentado o mesmo colégio apreendem de maneiras diferentes as obras de arte? Em última instância, o que quero compreender é a maneira pela qual se dá a reprodução dos códigos decifradores e dos agentes que os produzem.
O livro de Berger e Luckman já contribuiu de alguma maneira para isso. Além deles, Bourdieu, a partir das experiências de gerações anteriores, percebe que os bens simbólicos __ e as obras de arte os são __ só podem ser apreciados por aqueles que detêm os códigos que permitem decifrá-los. Só quem pode fazer uso de tal categoria de bens é quem possui o código decifrador de cada um deles. Bourdieu diz que a transmissão cultural faz com que o capital cultural volte às mãos do próprio capital cultural, o que faz com que a a estrutura de distribuição entre as classes se limite sempre a uma mesma categoria de indivíduos. As pessoas que fazem uso da arte e que a perpetuam são as mesmas pessoas que detêm consigo os meios para dela se apropriar.
Não são, contudo, quaisquer pessoas que podem ter acesso às vias de conhecimento da arte de seus códigos. Para Bourdieu nível de instrução e prática cultural caminham juntos. Mesmo assim, a instrução só alcança com boa eficácia os indivíduos que já desfrutam em sua casa de um ambiente dedicado à prática ou à percepção da obra de arte. Em outras palavras: a aprendizagem tanto da percepção quanto a prática dependem em alto grau do domínio que o sujeito tem dos instrumentos de apropriação disponíveis ao aprendizado da mesma. Até a transmissão dos valores e dos códigos dependerá da proximidade que a família tem da cultura dominante.
Há ainda um outro aspecto: o sistema de ensino reproduzirá com maior fidelidade a estrutura de distribuição do capital cultural, quando a cultura que ela transmite estiver bem próxima da cultura dominante e quando a maneira de inculcação estiver o mais próximo possível do modelo familiar, o que está em íntima relação com a teoria das socializações primária e secundária de Berger, a qual fiz menção anteriormente. Percebe-se, então, a "vantagem" que alguns têm em relação a outros. Quando o processo de aculturação utilizado se aproximar do modelo dominante a ponto de se confundir com ele, pode-se dizer que ele é o próprio sistema de aculturação. Isso ocorre freqüentemente nas camadas mais altas da sociedade, as quais trazem para si o direito exclusivo de decifração dos códigos, além de fazerem da prática de julgamento propriedade única sua entre o que é bom e o que é ruim, entre o que é erudito e popular, fazendo uso de instrumentos cada vez mais escassos nas camadas mais baixas para construir um modelo legítimo por ser cada vez mais raro e por isso mais seleto.
Um círculo vicioso está instalado, porque o capital cultural retorna à mão do capital cultural e o monopólio desses códigos significa o monopólio da cultural local.
Referências Bibliográficas:
-Adorno, T. - "O Fetichismo na Música e a regressão da Audição". In Benjamin, Adorno, Horkheimer e Habermas - Os Pensadores. São Paulo: Abril. 1980
-Berger, P. - A Construção Social da Realidade. Petrópoles. 1985.
-Bourdieu, P. - A Economia das Trocas Simbólicas (Capítulos 6 e 7). São Paulo: Perspectiva. 1992.
Thadeu de Jesus e Silva Filho
Estudante de Antropologia e Sociologia - UnB
Novembro de 96