O Novo Paradigma Holístico

Uma Nova Forma de Perceber o Mundo

 

Por: Carlos Antonio Fragoso Guimarães

 

"A terra não pertence ao homem; é o homem que pertence à terra. Disto temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. O que fere a terra fere também os filhos da terra. Não foi o homem que teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará".

Trecho da carta do Cacique Seattle ao Presidente dos EUA em 1855.

 

 

O que é um paradigma?

 

Um paradigma significa um modelo. Foi o físico Thomas S. Khun que o adotou como um termo científico em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, publicado em 1962. Segundo Khun, a palavra paradigma pretende sugerir que "certos exemplos da prática científica atual - tanto na teoria quanto na aplicação - estão ligados a modelos conceptuais de mundo dos quais surgem certas tradições de pesquisa". Por exemplo, a ciência já foi dominada pelo pensamento geocêntrico (ptolomáico), poteriormente pelo sistema heliocêntrico de Copérnico que possibilitou um grande progresso nas ciências, depois pela física newtoniana, etc. Cada uma dessas fases do pensamento científico condicionava a atitude científica e estabeleciam quais seriam os critérios de pesquisa, frequentemente ligados à maneira como se esperava que o mundo devesse funcionar. Ou, em outras palavras, a ciência se constrói em cima de alguns fundamentos filosóficos bem definidos, mesmo que não sejam muito conscientes (fequentemente não são mesmo). Assim, o modelo induzia/induz a visão de mundo. A imersão em um paradigma, especialmente no paradigma dominante, prepara o cientista para se tornar membro de uma comunidade científica a que se sinta atraído. Esta comunidade, adotando o mesmo modelo de ciência, induz seus afiliados à seguirem as mesmas regras básicas e padrões comuns de prática científica. De igual modo, esta mesma comunidade se increve dentro de uma comunidade maior, a cultura, que dá a atmosfera geral e as referências mais básicas para o florescimento de um determinado paradigma que se torna dominante (foi assim na chamada Revolução Científica do século XVII, em grande medida propiciada pela separação entre ciência e Igreja e, por isso mesmo, pelo financiamento da burguesia capitalista ascendente). Uma visão de mundo mais orgânica estava perdendo força para uma visão de mundo mais mecanicista e - em primeiro plano - mercantil.

 

 

O Paradigma Newtoniano-Cartesiano

 

Nossa tão decantada civilização tecnológica está em crise. A técnica, o tecnicismo e a alta tecnologia, associadas a uma forma de viver moderna, igualmente técnica mas cada vez mais esteriotipada, pragmática e menos humana, está apontando para a falácia de mais uma promessa: o nosso século falhou em por nos meios de produção ou no extremo desenvolvimento material a chave para a felicidade humana (hoje, tudo isso tem separado cada vez mais o homem do homem, o homem da natureza, e o homem de si mesmo).

Vivemos numa época cuja principal característica está na divisão de tudo: desde a divisão de classes sociais (Hoje em dia ainda mais reforçada no chamado darwinismo social. C.f. a Home Page Visão de Mundo, Paradigmas e Comportamento Humano), até a divisão, algumas delas extremas, de especialidades em diversas áreas, como na Medicina, por exemplo. Esta crise reducionista foi provocada em grande parte pelo "background" filosófico extremamente mecanicista da ciência moderna, e em parte pelo modo capitalista de nossas relações, tanto humanas quanto econômicas. Toda promessa de felicidade técnica prometida pelo capitalismo cientificista acabou por se transformar num pesadelo: de um lado, temos a cruel falta de alimentos e do mínimo de conforto material na maioria dos países do Terceiro Mundo; e do outro lado temos a miséria psicológica e os distúrbios emocionais de toda espécie que acompanham os excessos do consumo-pelo-consumo, alimento fácil e conforto supérfluo dos países (que são uma minoria) do Primeiro Mundo, ou ¼ da população do planeta, onde crescem a solidão, a indiferença, os distúrbios da afetividade, a violência e a sensação de sem-sentido, consequência de uma visão de mundo extremamente reducionista, mecanicista e pragmática, voltada para as aparências, a competitividade e a vivência hedonista e individualista dos sentidos, nos moldes dos ideais industrialistas de nosso tempo.

O pensamento dominante nesta estrutura de coisas é o da crença fundamental de que tudo é separado de tudo, o que inclui as pessoas, as sociedades e as culturas, e que está de acordo com o modelo mecanicista e atomista que perpassa nosso paradigma científico, que busca sempre as unidades mínimas fundamentais da natureza, fazendo da análise sem fim o único modo correto de entendimento das coisas, esquecendo as características próprias de um conjunto, de um todo complexo. Assim o homem constrói mapas e teoriuas cada vez mais detalhados em suas minúcias e acaba por acreditar em sua obra intelectual como se fosse a descrição precisa da realidade, que é sempre mais complexa. Esta crença condiciona uma percepção da realidade que traz, ao lado de inegáveis progressos materiais, consequências danosas para a harmonia psiquíca e social do homem, sem falar de seu impacto sobre a natureza: o apego a possessividade e seu cosequente medo da perda, a raiva, a agressão, a competitividade e a violência ligada à defesa do "meu", sem falar dos sentimentos afins de orgulho e ciúme (c.f. a Home Page Ecologia Profunda, Ecologia Social e Eco-Ética).

Esta crença na fragmentação das coisas assume formas muito sutis e extremamente refinadas nas teorias ditas científicas. Até o advento da Física Moderna (Mecânica Quântica), que trouxe notáveis insights para a filosofia da ciência, da Ecologia e do desenvolvimento da Psicolgia Holística, e da Psicologia Transpessoal, bem como da antropologia e de outros campos que mostraram de forma contudente a crueldade da concepção de mundo vigente, podemos afirmar que quase todas as disciplinas ditas científicas (até hoje) estão atreladas ao chamado paradigma newtoniano-cartesiano (c.f. Fritjof Capra, 1986), que é o modelo - com uma visão bem árticular de mundo - ainda dominante e arduamente defendido pela grande maioria dos cientistas. Chama-se paradigma newtoniano-cartesiano porque suas linhas mestras foram concebidas e, em sua maior parte, consolidadas pelos trabalhos notáveis do filósofo e matemático francês Renée Descartes e pelo extraordinário físico, astrônomo, místico e matemático inglês Sir Isaac Newton.

Este paradigma se caracteriza por idealizar uma realidade, ou melhor, uma concepção/visão de mundo mecânica, determinista, material e composta, ou seja, de um sistema mecânico, uma máqina composta por "peças" menores que se conectam de modo preciso. E essa concepção de mundo teve um grande impacto não só na Física, mas muito mais, pelas suas conseqüências filosóficas, em Biologia, Medicina, Psicologia Economia, Filosofia e Política. A extrema fragmentação das especializações, a coisificação da natureza, a ênfase no racionalismo e na fria objetividade e o desvinculamento dos valores humanos superiores, o descaso aos sentimentos e a abordagem mercantil da competitiva na exploração da natureza, a ideologia do consumismo desenfreado, a confusão entre riqueza material e felicidade, as diversas explorações com fins de se obter qualquer vantagem em cima da exploração de otrem e de outros seres vivos, etc. têm sua fundamentação filosófica numa pretensa visão "científica" de um universo mecanicista (atualmente, numa concepção neo-darwinista da supremacia de umas ditas classes sociais, políticas e profissionias por sobre outras, numa reedição aprimorada de um discurso fascista-racista  já usado pelos nazistas há algum tempo atrás).

Com efeito, à guiza de exemplo, a fanática certeza da superioridade intelectual européia (com países sedentos pelas riquezas de outros povos e pelo potencila mercantil destes) construiu um grande número de racionalizações baseadas no linguajar científico da Física e da Biologia, maquiando a violência de fatores psicológicos mais profundos, como o da ganância materialista impiedosa, roubando e desmoralizando outros povos considerados - utilmente - ignorantes, primitivos e inferiores durante o máximo período de exploração colonial, entre os séculos XVIII e XX. E, de fato, a partir do modelo de alienação impositiva inglês, envernizado de civilização,  possibilitou o nascimento de teórias as mais absurdas, como a crença na superioridade genética da raça ariana, pelos nazista, que tinha tinha - ou pretendia ter - uma forte conotação cientificista. E longe de ter tido um fim, a mesma exploração imperialista está mais ativa do que nunca, principalmente quanto aos países ditos do Terceiro Mundo, que não estão e nem se pretende que estejam inseridos ativamente no sistema internacional de consumo e produção, conhecido como globalização, e que na verdade não passa de uma alienação das forças culturais e criativas dos povos em prol de modelo nortista de capitalismo. Grande parte dos países da América Latina são considerados "sem interesse", por serem "zeros econômicos", e são relegados à miséria e à margem da história branca e plastificada dos que se consideram os senhores do mundo. Sengundo Leonardo Boff (1997), "estes mostram, por isso, uma insensibilidade e uma desumanidade que dificilmente encontra paralelos na história". Por mais que os arautos do racionalismo apontem desgraças e guerra em séculos anteriores e as maravilhas técnicas de nosso tempo, nunca se matou tão friamente e em nome da razão, do progresso e da civilidade como em nosso século.

Na educação mesma, como muito bem nos fala Pierre Weil (Brandão & Crema, 1991), "a fragmentação do ensino aumenta à medidade que se atinge as séries superiores, chegando a fazer das universidades atuais verdadeiras torres de Babel". Algumas teorias que ser arvoram de científicas, como a Psicanálise, se fecham cada vez mais em si mesmas, ao ponto de se criar um mundo só delas, como em monastérios acessíveis apenas aos iniciados e partilhantes de seus ideiais, expressos num linguajar técnico, complexo e, quando relacionados aos interesses existenciais dos indivíduos, vazio. A função valorativa dos sentimentos foi rejeitada. Só o racionalismo linear - expresso de modo claro em gráficos e em pesos e medidas - pode ser útil. Achamos que apenas o racional pode nos dizer o que tem valor, mas isso não ocorre. Valor é algo de subjetivo que diz respeito aos sentimentos. Não é por acaso que nossa cultura, que sobrevaloriza o racional, afoga-se em dados numéricos mas se mostra totalmente incompetente para discriminar o que realmente tem importância em meio a um mar de informações e pesquisas cartesianas, e se mostra completamente incapaz de dar o mpinimo de conforto psicológico às pessoas que se sentem alienadas e excluídas pelo sistema vigente. ,

Nossas prateleiras universitárias estão repletas de pesquisas "esotéricas" - apenas alguns "iniciados" podem compreende-las -, com pouco ou nenhum valor real para o comum dos mortais. Estas prateleiras. como disse Milan Kundera, parecem cemitérios, ou até mesmo menos que isso, pois nos cemitérios sempre ocorrem visitas, pelo menos uma vez por ano. O governo é cada vez mais incapaz de estipular prioridades com base em qualquer outra ordem que não seja o balanço comercial ou os gráficos de desenvolvimento industrial. E como a ênfase está apenas no que é racional, temos uma visão unilateral de mundo, hipertrofiada, puramente intelectual, onde sentimentos e valores são menosprezados ou são ignorados. E é interessante notar o quanto esta estrutura filosófica influencia e é, por sua vez influenciada - em feedback - pela ideologia do capitalismo, ou qualquer outra que tire vantages da situação. Tanto esta ideologia parece encontrar justificação na visão de mundo do paradigma newtoniano-cartesiano quanto este parece encontrar todo o apoio financeiro para se manter, na medida que as pesquisas mais de acordo com seus pressupostos recebem recursos vários enquanto as pesquisas menos técnicas (segundo seus parâmetros), mais ecológicas e/ou humanistas parecem ser desmerecidas ou rejeitadas, recebendo pouca ou nenhuma atenção dos poderes econômicos. Aliás, não devemos esquecer que estes poderes buscam exatamente isso: poder. Poder sobre a natureza, sobre os lucros, sobre as pessoas. Enfim, um poder pleno e exercido de modo racional-mecânico, onde os valores humanistas não podem ter lugar (Veja-se a home page sobre Soren Kierkegaard para um aporfundamento desta questão).

Esta crença generalizada da onipotência técnica tem levado à atitudes e potulações extremamente arrogantes dos meios científicos e industriais, o que produz, entre outras coisas, os Titanics, os Hindemburgs, as Bombas, os Efeito-Estufa e os Chernobys da vida, bem como golpes miliatres, alienação, miséria, desemprego e violência. 

Com respeito à saúde, especialmente à Medicina, o paradigma vigente tem também exercido uma notável influência. A ênfase acadêmica e mercatilista na especialização tem feito quase desaparecer a figura do clínico geral e levado à fragmentação extrema das áreas médicas em superespecializações, quase sempre levando os pobres pacientes a se sentirem perdidos e alienados diante da frieza técnica e da ausência freqüente de uma visão global (psicossomática) do seu caso. Os mais visíveis resultados são: o "culto" à figura do médico (com toda a áurea externa e mítica a respeito dele), a quem é dada total responsabilidade pela nossa saúde, cabendo aos leigos apenas uma atitude de submissão passiva promovida pela ignorância no cuidado da própria saúde, ou seja, de uma Educação Preventiva; uma extrema frieza - que é envolta no mito da objetividade científica - para com os sentimentos e anseios do "paciente"; o "paciente" sendo considerado um "objeto" de estudo (quando não de lucro); o culto da figura do especialista, o corpo sendo tratado como uma máquina, a mercantilização da saúde e um profundo e irracional desprezo pelos aspectos psicológicos da doença.

O argumento de que, em nosso século, o desenvolvimento técnico e tecnológico de equipamentos médicos tenham sido as principais responsáveis pelo aumento da taxa de vida também é questionável. Foram as melhorias sanitárias, a conquista de direitos sociais, a educação higiênica e o entendimento dos processos de transmissão de doenças ( com os trabalhos, por exemplo, de um não médico, como Louis Pasteur), a Eduação Preventiva que tiveram um papel considerável na melhoria da saúde pública. A parafernalha técnica está quase totalmente voltada para o diagnóstico de doenças, muitas das quais perfeitamente evitáveis com uma eficaz educação preventiva, mas que possuem a área da modernidade milagrosa.

Muito, ou pelo menos metade dos recursos utlizados em marketing e em diversos outros tipos de publicidade médica poderiam ser muito melhor aplicados na educação preventiva e na melhoria de postos de saúde, formando um conjunto de extraordinário efeito profilático. Do mesmo modo, a estreita ligação de médicos alopatas com a indústria famacêutica (responsável pela movimentação de bilhões de dólares anuais no comércio de remédios, muitos dos quais inócuos ou até prejudiciais) tem formado um verdadeiro cartel comercial e impositivo de valores. Quando do "boom" da AIDS, em meados da década de 80, a indústria do sangue, por exemplo, não queria se submeter aos testes que poderiam indicar a presença do vírus HIV nas doações de sangue, sob o pretexto de que os gastos não compensariam os resultados. Ao que um cientista, tristemente perguntou: "Quando os médicos se deixam levar pelo comércio e comercializam a saúde, a quem a população poderá recorrer?" Esta pergunta continua sendo mais atual que nunca. Ao invés de apenas se aterem ao mecanismo de como se dá a ação de uma doença, a pergunta principal deveria ser: Por que ocorre esta doença, quais os fatores intrínsecos e extrínsecos que causaram esta doença e quais os meios em que ela pode ser eficazmente debelada. Os tão estudados mecanismos de ação patológicos nem sempre são causa, mas sim efeitos de um distúrbio mais complexo do organismo em seu intercâmbio relacional com o ambiente físico e social que o envolve, o que, quase sempre, é tristemente negligenciado pela medicina alopática, mas que, felizmente, é um dos pontos mais fundamentais da medicina homeopática, que está sendo cada vez reconhecida.

Seria útil, aqui, recordar como a história sempre se repete, como diz Marx, a primeira vez como drama e a segunda vez como farsa... Já no século II de nossa era, o notável médico Galeno acusa seus colegas de terem esquecido Hipócrates, máximo modelo do bom médico. Galeno acusava-os de a) serem ignorantes e fechados em sua pseudo-supremacia, b) de serem corruptos em sua sede insaciável de dinheiro e c) de estarem absurdamente divididos (hoje, dividos em superespecializações). Eis o que ele disse a esse respeito: "Considerando a riqueza mais preciosa que a virtude, e exercendo a arte médica não em benfício do homem, mas por lucro e vaidade, (...) não é possível atingir a real finalidade da medicina" (citado em História da Filosofia, vol. I, página 362, de Giovanni Reale e Dario Antiseri, ed. Paulos, São Paulo, 1990).

Todo este quadro de tecnicismo individulista e de descrédito em valores humanistas têm uma só causa fundamental: a nossa visão de mundo foi montada em cima de valores e referenciais mecanicistas... tomamos o relógio como metáfora do mundo, e passamos a nos tratar como máquinas... E é tal o enraizamento deste paradigma que fica até mesmo difícil de se acreditar ou aceitar que outras formas de ver e compreender o mundo tenham alguma validade intrísenca e/ou sejam tão ou mais perfeitas que a nossa visão cientificista.

<Figura>

Charlie Chaplin em Tempos Modernos, 1936

 

O Holismo: o nascimento de um novo Paradigma

O extremo sentimento de mal-estar que muitas pessoas sentem diante dos complexos e trágicos problemas da atualidade tem levado à uma busca de um diálogo entre os vários núcleos do saber e da atividade humana. Por exemplo, temos a ONU e a Unesco como grandes organizações internacionais que buscam uma maneira conjunta de solucionar muitos dos atuais problemas humanos, sem falar nos movimentos de encontro inter-disciplinares e a busca pela ação cooperativa em todos os âmbitos, a medicina psicossomática e homeopática e a abordagem holística em psicoterapia, etc. É a essa busca de uma visão de conjunto, uma visão do TODO, que se dá o nome de holismo.

Desde que Descartes cristalizou de modo definitivo a idéia da divisão da ciência em humanas e exatas (ou melhor, em Res Cogitans e Res Extensa, o que viria a se refletir em nossa divisão em corpo e mente, etc.), temos visto toda uma vasta gama de atitudes e comportamentos compatíveis com a idéia domiante do universo como um sistema mecânico casualmente emergido de um caldo de matéria de modo fortuito. No século XIX, Wundt, seguindo a tradição empirista britânica calcada na Física de Newton, atomizou a mente, reduzindo-a, ou melhor, tentando encaixá-la dentro dos parâmetros mecanicistas da ciência de sua época, haja vista o sucesso da física clássica e o grande respeito que lhe era dada. Para Wundt, como para muitos outros, a mente não passava de um epifenômeno bioquímico, como a urina é um epifenômeno dos rins. Mas tal modelo reducionista não agradou a todos, e desde então muitas escolas, como a da Gestalt, por exemplo, em psicologia e em outras áreas têm tentando - enfrentando o paradigma mecanicista olímpico vigente nos meio acadêmicos - contruir uma visão mais integrativa do ser humano.

O desagrado ao modelo mecanicista - e da sua consequente visão de mundo - foi expresso de maneira clara por vários grandes cientistas em nosso século, como Albert Einstein, Werner Heisenberg, Niels Bohr e tantos outros. Vejamos esta passagem do físico Erwin Schrödinger, que de muitas maneiras lembra o humanismo existencialista de Soren Kierkegaard:

"O quadro científico do mundo real à minha volta é muito deficiente. Ele nos dá muitas informações fatuais, coloca toda a nossa experiência numa ordem magnificamente consistente, mas mantém um silêncio horrível sobre tudo aquilo que está realmente próximo de nossas corações, de tudo aquilo que é realmente valioso e caro em nossas vidas, aquilo que realmente nos interessa. Este quadro não nos pode dizer nada sobre o valor do vermelho ou do azul, do amargo e do doce, dor física e prazer físico; nada sobre o belo e o feio, o bom e o mau. É incompetente para dizer qualquer coisa válida sobre Deus e a eternidade... Assim, em suma, não pertencemos realmente a este mundo descrito pelo quadro científico. Não estamos realmente nele. Estamos fora dele. Somos como espectadores de uma peça que insiste em demonstrar que o mundo é uma máquina cega, onde aparecemos fortuitamente para, logo, desaparecer. Apenas nossos corpos parecem se enquadrar no quadro, sujeitos às leis que regem o quadro, explicados linearmente pelo quadro... Eu não pareço ser necessário como ser humano, ou como autor... As grandes mudanças que ocorrem neste mundo material, das quais eu me sinto parcialmente responsável, cuidam de si mesmas, segundo o quadro - elas são amplamente explicadas pela interação mecânica direta (...) Isso torna o mundo operacional para o entendimento pragmático. Permite que você imagine a manifestação total do universo como a de um relógio mecânico que, pelo o que sabe e crê a ciência, poderia continuar a funcionar do mesmo jeito sem que nunca tivesse havido consciência, vontade, esfoço, dor, prazer e responsabilidade (...)"(Guimarães, 1996, p. 21, 22)

Este descontentamento e a intuição de que o "quadro científico" é como uma janela que deixa ver apenas uma parte ínfima da realidade tem estimulado uma notável tentativa de se contruir uma visão mais holísitica, humana, orgânica e ecológica da realidade.  Afinal,  as  conseqüências de uma visão de mundo mecanicista são extraordinariamente nocivas, principalmente dentro de uma certa ideologia fascista de grande parte dos poderes político-econômicos da elite do Terceiro Mundo, o que traz um alto e muitas vezes impagável preço em termos de vidas humanas e recursos naturais.

Estamos começando a antever e a construir um modelo científico que se baseia no conceito de relação, que é muito mais amplo que o de análise, como o usado pela ciência normal. Já não são somente as partes constituintes de um corpo ou de um objeto que são de fundamental importância para a compreensão da natureza desse objeto, mas o modo como se expressa todo esse objeto, e como ele se insere em seu meio. As partes que constituem um sistema tem um notável conjunto de características que se vêem no âmbito das partes, mas o sistema inteiro, o todo - o holos -, frequentemente possui uma característica que vai bem além que a mera soma das caraceterísticas de suas partes. Por exemplo, sabemos que tanto o hidrogênio quanto o oxigênio são constituintes fundamentais no processo de combustão. Mas se juntamos esses elementos e formarmos a água, nós os usaremos para combater a combustão.

Da mesma forma, podemos dizer que as peças de um quebra-cabeças, quando separadas, nos dizem muito pouco ou nada do que seja o quebra-cabeças. Somente quando vemos as peças em seu conjunto, e, de um certo modo, de um nível em que elas deixam de ser vistas como peças, é que podemos compreender a mensagem do quebra-cabeças. Assim também, pensamos que o mecanicismo reducionista e fragmentatador do paradigma newtoniano-cartesiano já deu o que tinha de dar. Achamos que após três séculos de ênfase na análise, está na hora de começarmos a construir um modelo que também estimule a síntese. Enquanto o mecanicismo científico vê o universo como uma imensa máquina determinística, o holismo, sem negar as características "mecânicas" que se apresentam na natureza, percebe o universo mais como uma rede de interrelações dinâmicas, orgânica.

As origens do pensamento holístico, enquanto pensamento filosófico, podem se situar ainda na antigüidade, com os pré-socráticos, especialmente com Heráclito. Posteriormente, teremos um eco desse pensamento com os estóicos e com os néo-platônicos, especialmente com Plotino, e, modernamente, com os Românticos, especialmente com Schelling e os idealistas alemães. Com a publicação do livro Holism and Evolution, em 1921, Jan Smuts pode ser considerado o teórico fundador do movimento holístico no século XX. Mas foi com a revolução extraordinária da Física das Partículas e, principalmente com a Teoria da Relatividade de Einstein, que o termo passou a ser aplicado com uma conotação mais paradigmática dentro da tranformação conceitual da ciência. O físico norte-americano Brian Swimme fez uma síntese de alguns princípios fundamentais do holismo, ou do paradigma holístico:

a) se a natureza do átomo (aqui o encadeamento lógico advém das características atômicas) não é dada ou é posta à compreensão exclusivamente por ele, de forma isolada, mas por sua interação e seu comportamente em relação a todo seu Universo envolvente, então a realidade física consiste principalmente de relações, como a música que se compõe de relações de sons e rítimos - e não de notas isoladas, o que implica em superposições de complexificação crescente ou na criação de sistemas dinâmicos sempre mais amplos. Ou seja, nada pode existir sem que imponha e receba características fora de seu ambiente total (Gestalt);

b) a nossa ciência e a nossa interpretação sobre o que seja o mundo são resultantes de nossa própria ação e relação com o mundo que nos cerca e com as crenças e idéias que adotamos. O ideal da neutralidade e da objetividade científica é mais ficção que realidade;

c) além da análise que separa, a síntese que une é de fundamental importância na compreensão do mundo: conhecer algo implica em saber sua origem e finalidade. O universo parece possuir um sentido evolutivo;

d) a matéria não é algo morto, passivo ou inerte, já que é dotada de energia e parece evoluir segundo um plano criativo global; os elementos inanimados parecem se organizar segundo complexos sistemas de interação. Assim, o Universo está mais para uma rede de relações, uma realidade auto-organizante: um organismo em homeorresis.

Em Psicologia, o pensamento holístico está fortemente presente nas abordagens humanistas, especialmente na Gestalt, e, muito mais, na Psicologia Transpessoal. Stanley Krippner, diretor do Centro de Estudos da Consciência, assim definiu os quatro princípios básicos do paradigma holístico:

1) a consciência humana ordinária (relativa à percepção corporal e do ego no estado de vigília) compreende apenas uma parte ínfima da atividade total do psiquismo humano;

2) a mente ou a consciência humana, ou o espírito humano, estende-se no tempo e no espaço, existindo em uma unidade dinâmica, ou melhor, em uma relação contínua com o mundo que ela observa;

3) o potencial de criatividade e intuição é mais global do que se imagina comumnete, abrangendo todos os seres vivos;

4) o processo de evolução para níveis de maior complexificação e transcencdência é algo de muito valioso e importante - tendência à auto-atualização, segundo Maslow e Rogers.

O filósofo existencialista e psiquiatra alemão Karl Jaspers (1883-1969), discorrendo sobre a necessidade de se empreender reflexões sobre como se obter o melhor método em pesquisa científica, afirmava que na prática do conhecimento necessitamos de vários métodos simultaneamente, e enfatizava três grupos:

1. apreensão dos fatos particulares que implica na observaçãos e descrição (análise) fenomenológica;

2. investigação das relações, onde explicar se refere ao conhecimento das conexões cuasais objetivas, vistas do exterior, enquanto compreender diz respeito à intuição interior:

3. percepção das totalidadades, para não se cair no gravíssimo erro de se esquecer o todo, no qual e pelo qual a parte subsiste.

Portanto, a abordagem holística não é nem analítica e nem é puramente sintética; ela se caraceteriza pelo uso simultâneo desses dois métodos, que são complementares.

A explicação da natureza e de todo o universo não pode ser mais puramente mecânica, pois está cada vez mais patente que existe um processo de síntese e de complexificação evolutiva que leva a criação de sistemas altmamente dinâmicos, como os sistemas biológicos - logo, muito longe de serem máquinas sujeitas à segunda lei da termodinâmica clássica. Segundo Jan Smuts, o criador da moderna concepção holística, e que exerceu profunda influência em Alfred Adler, o primeiro grande discípulo discidente de Freud, "o conceito mecanicista da natureza tem o seu lugar e a sua justificação apenas na estrutura mais ampla do holismo".

Cabe aqui uma transcrição de parte de um artigo do nosso querido teólogo e filósofo Leonardo Boff (publicado na Folha de São Paulo em maio de 1996, cuja íntegra poderá ser encotnrada na Home Page do autor) sobre a nova visão holística, sistêmica ou ecológica que agora surge:

Uma visão libertadora

"A ecologia integral procura acostumar o ser humano com esta visão global e holística. O holismo não significa a soma das partes, mas a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, mas sempre articuladas entre si dentro da totalidade e constituindo esta totalidade. Esta cosmovisão desperta no ser humano a consciência de sua funcionalidade dentro desta imensa totalidade. Ele é um ser que pode captar todas estas dimensões, alegrar-se com elas, louvar e agradecer aquela Inteligência que tudo ordena e aquele Amor que tudo move, sentir-se um ser ético, responsável pela parte do universo que lhe cabe habitar, a Terra. Ela, a Terra, é, segundo notáveis cientistas, um superorganismo vivo, denominado Gaia, com calibragens refinadíssimas de elementos físico-químicos e auto-organizacionais que somente um ser vivo pode ter. Nós, seres humanos, podemos ser o satã da Terra, como podemos ser seu anjo da guarda bom. Esta visão exige uma nova civilização e um novo tipo de religião, capaz de re-ligar Deus e mundo, mundo e ser humano, ser humano e a espiritualidade do cosmos. O cristianismo é levado a aprofundar a dimensão cósmica da encarnação, da inabitação do espírito da natureza e do panenteísmo, segundo o qual Deus está em tudo e tudo está em Deus. Importa fazermos as pazes e não apenas uma trégua com a Terra. Cumpre refazermos uma aliança de fraternidade/sororidade e de respeito para com ela. E sentirmo-nos imbuídos do Espírito que tudo penetra e daquele Amor que, no dizer de Dante, move o céu, todas as estrelas e também nossos corações. Não cabe opormos as várias correntes da ecologia. Mas discernirmos como se complementam e em que medida nos ajudam a sermos um ser de relações, produtores de padrões de comportamentos que tenham como consequência a preservação e a potenciação do patrimônio formado ao longo de 15 bilhões de anos e que chegou até nós e que devemos passá-lo adiante dentro de um espírito sinergético e afinado com a grande sinfonia universal".

 

 

A Declaração de Veneza

Em março de 1986, por iniciativa da Unesco, reuniram-se na cidade de Veneza dezenove ilustres representantes das áreas das ciências (incluindo dois Prêmios Nobel), artes, filosofia e das Tradições espirituais mais respeitáveis, todos representado dezesseis nações. Desta reunião histórica resultou um documento de nominada Declaração de Veneza, que reza o seguinte:

"Os participantes do colóquio ‘A Ciência face aos confins do conhecimento’, organizado pela Unesco, com a colaboração da Fundação Giorgio Cini (Veneza, 3 a 7 de março de 1986), impelidos por um espírito de abertura e de questionamento dos valores de nosso tempo, chegam a um acordo sobre os seguintes pontos:

1. Somos todos testemunhas de uma importantíssima revolução no domínio da ciência, engendrada pela ciência fundamental (em particular a Física e a Biologia), pela perturbação que suscita na lógica, na epistemologia e também na vida cotidiana através das aplicações tecnológicas. No entanto, verificamos, ao mesmo tempo, a existência de uma defasagem importante entre a nova visão de mundo que emerge do estudo dos sistemas naturais e os valores que ainda predominam na filosofia, nas ciências humanas e na vida da sociedade moderna. Pois estes valores estão fundamentados, em grande parte, no determinismo mecanicista, no positivismo e no niilismo vazio, desumano. Sentimos esta defasagem como extremamente prejudicial e portadora de pesadas ameaças de destruição de nossa e de outras espécies.

2. O conhecimento científico, por seu próprio movimento interno, chegou a um limite que lhe permite começar um diálogo com outras formas de conhecimento. Neste sentido, e reconhecendo as diferenças fundamentais entre a ciência formal e a Tradição espiritual, constatamos não uma intransponível oposição, mas uma complementariedade entre duas formas de se perceber o mundo. O encontro inesperado e enriquecedor entre a ciências e as diversas Tradições do mundo permite pensar no aparecimento de uma nova visão da humanidade mas equilibrada, até mesmo de um novo racionalismo, que poderia levar a uma nova perspectiva filosófica.

3. Recusando qualquer projeto globalizador e reducionista, qualquer forma de um sistema fechado de pensamento, reconhecemos, ao mesmo tempo, a urgência de uma pesquisa verdadeiramente transdiciplinar em intercâmbio permanente e dinâmico com as ciências ditas ‘exatas’, e as ciências ‘humanas’, a arte e a Tradição. De certa forma, esta abordagem transdiciplinar está inscrita em nosso próprio corpo, em particular em nosso cérebro através da interação dinâmica entre seus dois hemisférios. O estudo conjunto da natureza, do universo e do homem poderia aproximar-nos do real e permitir-nos enfrentar os diferentes desafios da nossa época.

4. O ensino convencional de ciência, através de uma apresentação linear e estanque dos conhecimentos, dissimula a ruptura entre a ciência contemporânea e seu desenvolvimento histórico cheio de claros e erros, bem como das visões anteriores de mundo. Reconhecemos a urgência da pesquisa de novos métodos de educação, que levem em conta como se deu o real avanço da ciência, os quais se harmonizam com as grandes Tradições culturais da humanidade, com o resgate do sentimento na esfera das relações humanas, cuja preservação e estuda parecem fundamentias. A UNESCO seria a organização apropriada para promover tais idéias.

5. Os desafios de nossa época - o desafio da autodestruição, o desafio da informação, da engenharia genética, etc. - esclarecem de uma nova maneira a responsabilidade social dos cientistas, na inicativa e na aplicação da pesquisa ao mesmo tempo. Se os cientistas não podem decidir quanto à aplicação de suas próprias descobertas, não devem assistir passivamente à aplicação cega e irresponsável destas descobertas. Em nossa opinião, a amplidão dos desafios contemporâneos demanda, de um lado, a infomação rigorosa, acessível e permanente da opinião pública e, de outro lado, a criação de órgãos de orientação e até de decisão de natureza pluri e transdiciplinar.

6. Expressamos a esperança de que a UNESCO levará adiante esta iniciativa, estimulando uma reflexão dirigida para a universalidade e a transdiciplinaridade(...)".

Penso que a importância deste documento ainda há de ser reconhecida pela humanidade como a primeira tentativa institucional de âmbito mundial pela busca de uma sociedade e de uma ciência mais holista, menos fragmentária. Mas sinto que falta ao documento uma análise dos fatores econômicos que estão por trás da atual crise de valores e de sentido humanos. Com o atual quadro de destribuição de renda e de alienação econômica e educacional - tão vivencida no Brasil -, dificilmente poderemos incrementar o ideal holístico, pois este calca-se na conscientização das pessoas, que advém do uso democrático da informação (todos nós sabemos como a informação é manipulada pelos veículos de comunicação comercial e o seu peso na formação artificial da opinião pública), e esta corre o risco de ser mais um produto rigidamente controlado pela ideologia de lucro e de poder do capitalismo vigente.

"O ser humano vivência a si mesmo, seus pensamentos como algo separado do resto do universo - numa espécie de ilusão de ótica de sua consciência. E essa ilusão é uma espécie de prisão que nos restringe a nossos desejos pessoais, conceitos e ao afeto por pessoas mais próximas. Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo de compaixão, para que ele abranja todos os seres vivos e toda a natureza em sua beleza. Ninguém conseguirá alcançar completamente esse objetivo, mas lutar pela sua realização já é por si só parte de nossa liberação e o alicerce de nossa segurança interior".

Voltar