Palavra, democracia. e poesia: um paradoxo

Teixeira Coelho


"A gente corta muito a palavra porque a palavra não tem significado, ela não serve pra nada", declarou um surfista a uma repórter numa praia brasileira. Do outro lado do oceano, Italo Calvino escreve no capítulo dedicado à exatidão em Seis Propostas para o Próximo Milênio (Companhia das Letras):
"Às vezes tenho a impressão de que uma epidemia pestilencial golpeou a humanidade na faculdade que mais a caracteriza, o uso da palavra. Uma peste da linguagem que se manifesta como perda de força cognitiva e de imediaticidade, como automatismo que tende a nivelar a expressão pelas fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, que tende a diluir os significados, desbastar as pontas expressivas, apagar toda centelha que salte do encontro das palavras com as novas circunstâncias".
Lidas em sobreposição, as duas declarações ­ a do surfista, sempre ironizado como praticante exemplar da linguagem semanticamente tatibitate, e aquela de um dos expoentes da literatura contemporânea ­ parecem convergir para a definição de um quadro caótico instalado no processo "de comunicação". Um quadro em que quase ninguém consegue expressar o que pensa e entender o que lhe é dito ou mostrado. O clima fica ainda mais aflitivo se, continuando a ler Calvino, descobre-se que não apenas a linguagem verbal parece atingida por essa peste: também as imagens ­ modo de expressão que uma preguiça intelectual e algum modismo costumam caracterizar como expressão máxima desta época ­ surgem para o autor italiano como privadas da necessidade interna que deveria caracterizá-las e conferir-lhes uma verdadeira forma e um verdadeiro conteúdo, impondo-as à atenção e conferindo-lhes o leque gratificante de significados possíveis. Quando se pensa na catadupa de imagens de tigres correndo em câmera lenta pelas telas de TV e, agora, pelos painéis eletrônicos das ruas; na repetição infinita de imagens de baleias "assassinas" saindo das águas e nelas em seguida mergulhando (também em câmera lenta) ou na multidão de mulheres loiras que balançam seus cabelos de um lado para outro (ainda em câmera lenta), difícil não dar razão a Calvino. Talvez se discorde dele apenas quando diz que essas imagens impotentes provocam estranheza e um certo incômodo. é mais que isso: é irritação e profundo desconforto.
Esse quadro de sintomas de uma comunicação tão saturada quanto abortada agrava-se quando se recorda um livro de outro autor italiano (mas esta não será uma simples coincidência...): L'affaire Moro, de Leonardo Sciascia (Sellerio editore). Este escritor, igualmente um romancista e que foi membro da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) aberta na Itália para investigar as circunstâncias do seqüestro e assassinato ­ pelas Brigadas Vermelhas ­ do líder da democracia-cristã Aldo Moro no final dos anos 70, desenha nesse pequeno texto uma análise exemplar das funções perversas da palavra na política (sem que este domínio tenha a exclusividade daquele efeito). Durante seu longo cativeiro, Moro pôde escrever cartas para seus amigos políticos e familiares. As palavras dessas cartas, mostra Sciascia, constituíam uma linguagem nova ­ em todo caso, parecia nova a Sciascia, que não conheceu o Brasil ­ equilibrando-se sobre o vazio semântico (denunciado pouco antes, nos jornais italianos, por Pasolini ­ terceira perna da mesma coincidência) aberto no cenário político da Itália então dominado pelo partido de Moro. Por elas, Moro tentou dizer com a mesma linguagem do não-dizer que durante anos praticara com os italianos, tentou fazer-se entender com as palavras que sempre usara para não se fazer entender. Precisava pedir por sua vida mas não podia fazê-lo claramente; era-lhe vital denunciar publicamente a omissão interessada dos amigos e o jogo
armado ao redor de seu tormento mas não podia dizê-lo com todas as letras e, com isso, destruir seu partido, sua carreira e eliminar a derradeira chance de salvar sua própria vida. Um drama que virou tragédia ­ de uma pessoa, de um sistema, e da palavra. Não será coincidência se assistimos nesse momento, abril de 1997, aos trabalhos de outra CPI, brasileira esta, cujos investigadores-acusadores e depoentes-acusados esforçam-se arduamente por não-dizer usando as palavras do dizer, por não se fazer entender usando as palavras do fazer-se entender... E não são apenas eles que se entregam a essa prática visivelmente gozosa (e histriônica), nos senadores, e cínica (e arrogante), nos depoentes: é também a TV, e a imprensa escrita, e a universidade e... tantos outras instituições e esferas.
Talvez todos os discursos, talvez todas as palavras, na maior parte do tempo se não o tempo todo, dizem para não dizer, digam uma coisa quando querem dizer outra, não digam uma coisa para dizer outra ­ não dizem nada ao dizerem muito e dizem muito ao não dizerem aparentemente quase nada. Mesmo a palavra cotidiana, a palavra do corriqueiro, do banal. Ninguém, nenhuma instância parece isento disso que é uma tentação tanto quanto, parece, uma inevitabilidade. Durante anos coletei, ao acaso e de início sem finalidade determinada, exemplos desse uso das palavras que seria expressivo denominar de perverso se esse não fosse, aparentemente, seu traço mais comum. Alguns desses exemplos são palavras com vida relativamente curta, definida por uma circunstância social ou política passageira. Outros apontam para palavras que perenemente, em nosso imaginário, têm dito uma coisa para dizer outra. A palavra concubina é uma destas. No Aurélio, uma palavra sempre "entra" em sua forma masculina ­ a menos que o modo feminino seja o único existente. Lindo, por exemplo, "entra" pelo masculino assim como tantos outros adjetivos. Outras palavras têm apenas o modo masculino (hidrante), não havendo razão para registrá-las pelo feminino. E outras existem apenas no feminino (nação), não admitindo um parceiro masculino. Até aqui, é o normal, como se diz.
Mas como é revelador o fenômeno envolvendo uma palavra como "concubina". Concubina, diz o Aurélio, talvez o dicionário mais usado no Brasil, é um substantivo feminino que designa a "mulher que vive amasiada com um homem". O Aurélio não registra "concubino". Quer dizer, não existe no português-brasileiro a imagem do "homem que vive amasiado com uma mulher" (ou, nas modalidades atuais, que vive amasiado com outro homem, como a mulher poderia viver amasiada com outra mulher). Existe, no Aurélio, a palavra "concubinário" significando "que ou aquele que tem concubina". Veja-se bem: existe, sim, a figura do concubinário, que é um adjetivo, mas não existe a do concubino, que seria um substantivo. A interpretação rigorosa desse fenômeno dicionarial ­ que está longe de ser apenas isso ­ é que em português um homem pode ser acidentalmente (isto é, entre outras coisas) um concubinário. Mas seu ser, sua substância (seu substantivo) não tem, em seu quadro, o traço do concubino. O homem é, primeiro, uma outra coisa e só depois, por acidente (quer dizer, qualitativamente) será também, acaso, concubinário. A mulher, não. A mulher é substantivamente concubina. Antes de ser adjetivamente uma outra coisa, ela é substantivamente concubina. É isto que o Aurélio está dizendo ao não dizer a palavra concubino. Naturalmente, o Aurélio dirá apenas, em sua defesa, que ele não está dizendo nada, que apenas registra o que a sociedade diz. Dirá o Aurélio que o dicionário é neutro e recusará toda responsabilidade no processo de perpetuação dessas duas imagens distintas do ato de "viver amasiado com"
Esse quadro torna-se particularmente expressivo se observados, com uma atenção não rotineira, os sinônimos que o Aurélio dá para "concubina". Entre eles, arranjo, camarada, caseira, china, espingarda, fêmea, sexta-feira, o que dá origem a sugestivas construções do tipo: "Você conseguiu um arranjo?", "Já tem caseira?", "O assassinato da sexta-feira", "Sua espingarda funciona bem?". Mas entrar por esta porta leva a um caminho longo e tortuoso demais para as dimensões deste texto, será melhor parar por aqui ­ não sem antes lembrar que, ainda para o Aurélio, "concúbito" indica, antes de mais nada,
"ajuntamento carnal". Quer dizer, essa palavra diz (sem dizê-lo) que o concubinato é, antes de mais nada, uma questão de sexo e só depois, eventualmente, outras coisas.
O que essa palavra e os usos dessas palavras todas indicam é a existência, estruturando a linguagem, da figura do sexismo. Em outras palavras (já que outras palavras são sempre necessárias para explicar-se uma palavra ­ o que mais nos afasta do centro da palavra do que dele nos aproxima), a batalha real dos sexos, uma batalha real, concreta, de carne e osso e de todos os dias, encontra correspondente na batalha das palavras, que alimenta a primeira e renova sua munição. Exemplos desse sexismo na língua brasileira são multidão, em cujo meio desponta, visível, a cabeça da regra que manda dizer que "Pedro e Joana são bonitos", e não "bonitas" e nem, por hipótese, um neutro do tipo "bonitu": em português não há neutralidade e não há trégua ­ as coisas são masculinas ou femininas e, por serem o que são, o masculino domina. Esta não é uma condição inevitável para as línguas: em inglês, "John and Mary are beautiful" tanto quanto "Mary and John are beautiful" ou como "John is beautiful" e "Mary is beautiful".
Outras palavras dizem e não dizem outro gênero de coisas. A palavra espaço, por exemplo. Ou, melhor, o modo como se usa hoje a palavra espaço. Por exemplo, primeiro surgiu a expressão Casa de Cultura, que depois virou Centro Cultural e hoje é Espaço Cultural. A figura por trás desse uso pode ser melhor determinada quando se pensa que, nos anúncios imobiliários, os apartamentos não têm mais "sala" ou "salas" mas "ambientes". E as empregadas não têm mais seus "quartos": têm "dependências". O mínimo que se pode dizer é que as salas ficaram tão pequenas que ou sumiram ou não se pode mais chamá-las dignamente de salas, razão pela qual se recorre ao vago e genérico "ambiente": tornaram-se o mínimo múltiplo comum do que foram um dia, tornaram-se "espaço". Do outro lado da casa, do apartamento (mas não da nova lógica semântica), os quartos das empregadas também foram diminuindo mais e mais; por menores que sejam, porém, não podem nunca aspirar a constituírem-se em ambientes e devem contentar-se com ser "dependências". São, de fato, isso mesmo: dependentes ­ e este é um dos raros casos em que a palavra diz exatamente aquilo que designa. Atrás de espaço, ambiente, dependências vem a figura da generalização, da generalidade, da substituição da espécie pelo gênero, do apagamento do singular pelo universal, da substituição do concreto pelo ideal. A mesma figura esconde-de atrás da expressão "Te vejo tipo nove horas". Não te vejo a uma certa nove horas mas te vejo às nove horas genéricas que, por serem, genéricas, não precisam ser exatamente nove horas, ou nenhuma nove horas em especial, mas uma nove horas qualquer. Calvino quase certamente não conhecia o português nem deu exemplos concretos de sua língua quando disse que na palavra de hoje aparecem sempre as "fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, que tendem a diluir os significados". No entanto, é exatamente disso que se trata.
"Ganhar bebê" é outra expressão dessas que fazem pensar. É verdade que esta, na revisão de minhas anotações feitas para este seminário sobre A palavra democrática (quase dez anos depois da primeira redação de um estudo irônico sobre o assunto), eu esperei, por um momento, ver eliminada da linguagem cotidiana por ter caído de moda. "Ganhar bebê", no entanto, continua em vigor ­ porque continua em vigor a mola que a fez surgir e que se mostra mais forte do que nunca. Para deslindar o novelo: o verbo apropriado é "parir". Parir, no entanto, parece coisa feia: faz parte até de palavrão, aquilo que deveria ser o mais bonito é o mais feio. Assim, no lugar de parir veio "dar à luz". Eufemismo mas metáfora apropriada. Seja como for, "dar à luz" e "parir" são modalidades ativas: são ações eficientes. Ambas, porém, foram substituídas hoje por "ganhar bebê", usado tanto pela empregada doméstica quanto pela jovem mãe de classe média com estudos universitários. Dois verbos ativos foram trocados por um passivo: a mulher não mais faz filhos, ela ganha bebês. E uma ganha enquanto outra, não. Alguma coisa, alguém, numa outra esfera, decide quem ganha e quem não ­ e quando deve ganhar e quando não. A idéia de que resta pouca coisa que as pessoas podem hoje fazer (não podem votar em quem querem mesmo numa democracia porque aqueles que prefeririam não se canditam, não podem decidir o valor do dinheiro, não podem decidir continuar ou não trabalhando aqui ou ali, não podem sugerir ao filho que profissão escolher, etc.) não será uma idéia estranha à figura subjacente a essa nova fórmula.
"Tarifa zero" é outra expressão com nascimento localizado entre nós e que tende a reaparecer sob formas derivadas. Surgiu durante o mandato da primeira mulher a assumir a prefeitura da cidade de São Paulo, poucos anos atrás, no momento em que se pretendia tornar gratuito o uso do transporte coletivo. Falar em "passagem gratuita" poderia ser algo que incomodasse ou irritasse diferentes camadas da população (e não apenas a alta burguesia). Disse-se então que havia, sim, uma tarifa ­ só que essa tarifa era zero. Operação de certo modo inversa à flagrada no uso de "ganhar bebê": no caso da tarifa zero, uma inexistência é transformada em existência, ainda que existência zerada, quer dizer, aniquilada ­ isto é, uma existência não existente. Sustentando-a, a figura do eufemismo ­ a mesma que ampara, por exemplo, o uso de "excepcional" para designar pessoa com problemas ou deficiências mentais. Sob esse rótulo, uma pessoa não é anormal, está apenas fora da linha, fora do padrão, fora da série: excepcional. Pouco importa se Guimarães Rosa também é um excepcional, pouco importa se antes se usava excepcional para pessoas como Guimarães Rosa. O mesmo processo está ativo em "afro-brasileiro", expressão que nunca diluirá o fato de que a pessoa assim designada pertence à raça negra.
Outras palavras são o exato oposto do eufemismo: exacerbam, magnificam, ampliam ao infinito a ação ou objeto designados. Detonar, por exemplo. "Ele detonou a namorada". Antes se detonava uma arma, uma bomba. Agora, se detona uma pessoa. Detonar, diz o Aurélio, é produzir detonação, é estrondar explodindo. E detonação é ruído súbito devido a explosão; um processo como o de uma explosão mas explosão cuja velocidade de propagação chega a atingir 8.500 m por segundo. Não é uma explosão qualquer. Bem, inexiste hipótese em que uma namorada possa ou deva passar por esse processo. Uma namorada não se detona. Quando se detona uma namorada na linguagem, se está bem mais perto de detoná-la ao vivo, por exemplo detonando-se uma arma, do que querem acreditar os bem-pensantes que vêem na linguagem um fenômeno acessório e meramente expressivo. Por trás dessa palavra, a figura da violência explícita ­ que herdamos, no Brasil, do período ditatorial mais recente, pródigo em exemplos de violência de naturezas as mais variadas.
Ditadura e ditatorial, aliás, são palavras que sumiram durante a época da ditadura e que continuam sumidas agora. Na época não se podia dizer que o governo era ditatorial. Era aceitável, pelo próprio governo, falar-se, às vezes, em governo autoritário. Autoridade, imagem de alguém que se baseia no poder da lei ou das armas, era uma idéia que aquele governo aceitava e, mesmo, aplaudia. Os jornais e os conferencistas diziam, então, autoritário no lugar de ditatorial. A ditadura encerrou-se mas os discursos daquele tempo, tanto quanto aquele governo, continuam ­ nas palavras de muito cientista político e jornalista ­ apenas "autoritários". O que significa, rigorosamente, que a ditatura não terminou
A essa mesma figura pertencem "ilegalidade" (crime cometido por pessoa importante do governo, grande banqueiro ou industrial) e "inverdade" (mentira dita por pessoa do governo, grande banqueiro ou industrial).
Já "latinidade" é exemplo do oposto do eufemismo. Latinidade designava, e ainda designa, aquilo que é próprio da cultura latino-americana, quer dizer, a cultura de fala espanhola, de cor morena na pele, que é "ibérico-católica" e que não mostra afinidades com o Primeiro Mundo. Nesse grupo dos latinos eventualmente se inclui o Brasil, mesmo que não fale espanhol. Mas não se incluíam os franceses, os italianos e os romenos. Latinidade, portanto, não era um traço de origem (uma substância) mas um traço geográfico e, na verdade, um traço de distinção socioeconômica. Latinos eram os pobres do
Terceiro Mundo, os povos subdesenvolvidos ­ os pobres. A Romênia nunca esteve longe do Terceiro Mundo mas outros fatores geopolíticos, como se costumava dizer, afastavam-na pelo menos do Terceiro Mundo dos latinos. Foram necessárias décadas de século XX, e a recente obsessão com a constituição de megablocos identitários, para que se fundasse, há pouco, uma União Latina que declarasse expressamente dela fazerem parte tanto os "antigos latinos" da América Latina (na verdade, os mais recentes latinos, historicamente) quanto os "novos latinos" da Europa (na verdade, os velhos latinos que ora se descobrem, por conveniência), que são os portugueses e os espanhóis, a cujo lado vieram sentar-se os "novíssimos latinos" (de fato antiqüíssimos latinos) que são os franceses e os italianos, os quais desta vez não deixaram de lado seus irmãos romenos embora não saibam o que fazer com eles ou deles.
Mais intrigante, e talvez mais assustador, é o caso das palavras que desaparecem (o pronome pessoal do caso reto o, a, os, as) e das que as substituem (lhe, lhes). Exemplo: "O novo técnico irá lhe orientar ao longo da semana", lida em jornal. Pergunta pertinente: o novo técnico irá lhe orientar o quê? O chute? O passe? A colocação em campo? A cobrança de faltas? Há, por trás disso, mais do que um erro gramatical: as pessoas estão perdendo seus objetos diretos e só conseguem distinguir objetos indiretos. As pessoas, em outras palavras, vivem por mediação: entre as pessoas e seu mundo o único contato é indireto, através de uma mediação (como a da mídia, que deriva de outra figura ideológica de linguagem). Objetos diretos existem agora em número muito limitado, quando existem. O "o", o "a" perderam razão de ser. Esta não é uma imagem forçada da nova realidade. Pelo contrário, é mais um daqueles casos em que a linguagem, como disse Pasolini, mostra-se como o lugar natural e primeiro para o surgimento dos sintomas sociais.
É o momento para insistir: nenhum desses casos é um caso de erro, de ignorância gramatical. Não se está lidando com essa idéia aqui ­ mesmo porque o próprio erro é reflexo ou sintoma de outra coisa. Nenhum desses casos é caso de erro.
A mídia entrou há pouco na conversa. Associa-se a uma figura velhíssima neste país, a da adoração do que vem de fora. A mídia dos norte-americanos veio do latim medium, cujo plural é media ­ que os americanos (eles, lá do norte, já que os do sul não são americanos: são brasileiros, argentinos, colombianos, etc.) pronunciam mídia. Pronunciam mídia mas escrevem media, como manda a norma latina (a dos arquivelhos latinos, aqueles de Roma antiga). Por aqui, começou-se a escrever (nos jornais) do modo como os americanos pronunciam lá: mídia. E daí vieram coisas interessantes: a mídia (isto é, literalmente, a meios), as mídias (as os meios, ou as + os meios ou, para deixar barato, os os meios), os mídia, o mídia (profissional especializado em escolher os meios nos quais o anunciante deve anunciar), etc. Há um erro de fato, aí: não se costuma saber, por aqui, que mídia é media e que media é plural de medium. Mas não é isso que está em jogo: está em jogo a fascinação com o estranho, o estrangeiro.
Mídia é uma palavra nova relacionada a uma figura não tão nova assim. Outra figura antiga, arcaica, serve de alicerce para palavras não menos velhas: ilustríssimo, excelentíssimo, doutor, meritíssimo, reverendíssimo, vossa senhoria, vossa excelência, magnífico (como em magnífico reitor) e outras mais. A figura por trás delas é a figura que literalmente sustenta este país: a figura da casta, mais do que da classe social. A dois anos do século XXI, pessoas cultas e "liberadas" continuam escrevendo cartas endereçadas para um certo
Ilmo. Sr.
Prof. Dr. Fulano
Magnífico Reitor da
Universidade X
(o que resulta em cinco qualificativos de excelência para uma única e mesma pessoa) ou para um Ilmo. Sr. Prof. Dr. MD (mui digno) Chefe de Departamento, etc., assim como os senadores só se tratam por Vossa Excelência e como o frentista do posto de gasolina ainda chama seu cliente de doutor. Esse cliente não é doutor, assim como o senador não é excelente, nem o reitor magnífico e o doutor, ilustrado. Mas a palavra diz que é, que são.
Essa figura arcaica convive com outras radicalmente contemporâneas, como a que ampara palavras como "visual" e "produzir-se". As pessoas não estão mais, uma certa manhã, com boa fisionomia, ou bem dispostas, ou com o rosto descontraído, agradável de ver-se: elas nem têm mais rosto ou fisionomia; estão com um bom visual ­ o mesmo visual da comunicação visual de uma loja ou do aeroporto, o mesmo visual da fachada de uma loja ou de uma vitrina dessa loja. De modo análogo, a adolescente não se veste bem para ir a uma festa ou à boate, ela se produz: Ela se produziu bem hoje, Ela está produzidíssima. Significado inevitável: ela se transformou num bom produto hoje, isto é, deverá vender-se bem, alcançar um bom preço, já que a finalidade do produto é vender-se bem. A figura oculta (nem tanto) é clara: a da mercadoria.
E quando se fala em mercadoria, pensa-se de imediato numa grande macrofigura (expressão bem apropriada, como se verá) do discurso contemporâneo, como se costuma dizer: a figura da economia, há décadas predominante na imprensa falada e escritra do Brasil (muito mais do que em outras imprensas nacionais). Essa figura estrutura-se com os instrumentos de penetração (é bem a palavra) próprios das demais figuras já especificadas. A figura do eufemismo, por exemplo, recorre constantemente na fala da economia: "inconversibilidade temporária de haveres" foi como os economistas do governo Collor nomearam o confisco de depósitos e investimentos bancários a que procederam; "reajuste de preços" é como aqueles mesmos e outros economistas ainda chamam o aumento de preços (não existe reajuste de preços para baixo = diminuição dos preços); "mercado paralelo" nada mais é do que o mercado ilegal, o velho câmbio negro; "racionalização de combustíveis" é racionamento de combustíveis (quando as pessoas descobrem que racionalização é racionamento passam a nutrir compreensivo sentimento de desconfiança por toda e qualquer racionalização, inclusive aquela que se funda no uso estrito e legítimo da razão...). E o discurso da economia está também repleto de casos da figura da violência, como "choque heterodoxo" e "gatilho inflacionário".
A economia recorre ainda, é verdade, a metáforas mais amenas, como a do dinheiro visto como água (as contas são correntes, a liquidez dos bancos está boa ou não; quando a liquidez está alta deve ser enxugada; ou então é preciso drenar recursos para uma siderúrgica estatal ou privada; ou ainda o dinheiro sempre escapa pelos dedos como se fosse água, como todo mundo sabe, etc.). Mas o resultado é um só: dizer para não dizer e não dizer dizendo. Cenário resultante destas observações: a palavra da economia é, não uma palavra ou palavras isoladas, mas um sistema inteiro, com um léxico e uma sintaxe próprios, ricos e variados ­ o que justificaria, quem sabe, o destaque que essa palavra hoje tem no imaginário geral.
Ainda uma palavra que, por sua significação simbólica privilegiada, não pode ser esquecida: cidadão. Ela aparece mais nos discursos dos políticos (quando não significa muito, ou nada) e nos textos universitários do que na linguagem cotidiana dos jornais e das pessoas. A rigor, essa palavra não aparece no uso comum. Quando usada, é geralmente para negar-se aquilo mesmo que ela deveria veicular: "Cidadão, espere sua vez!", ouvido, em tom forte, numa delegacia, com a palavra "cidadão" sendo escandida de modo francamente atemorizante. Quase nunca aparece na modalidade convidativa ou amena, como, por hipótese "Estou à disposição do cidadão", "Cidadão, por favor venha por aqui". Quem mais utiliza a palavra, no Brasil, no uso corrente, será sem dúvida a polícia e o exército. E mais correntemente ela serve não para construir aquilo que designa, a cidadania, mas para diminuir a pessoa à estatura pré-cidadã. Isso em direito tem um nome:
capitis diminutio, ou diminuição da personalidade jurídica (as mulheres e os indígenas brasileiros sabem ou deveriam saber o que é isso porque sofreram, até bem recentemente, de capitis diminutio ao serem tratadas como juridicamente incapazes ­ deviam colocar-se sob a tutela de alguém, geralmente o pai, o marido, o sogro ou o filho ­ e equiparadas aos loucos "de toda espécie", como rezava o código civil). O correspondente atualizado dessa figura é, em palavras diretas, a dissolução do sujeito em mero indivíduo (não em pessoa) e de indivíduo em "elemento", outra palavra de uso corrente nas forças militares, policiais ou não.
Esses são apenas alguns poucos exemplos de como a palavra cotidiana, ela também e não apenas a do político, agonizante ou resplandescente, diz para não-dizer e, não-dizendo, diz muito.
O que ocorre todos os dias, como se vê, é uma virulenta batalha das palavras durante a qual amontoam-se os vários corpos exangues (exignos, sem signos) do sentido e, não raro, os corpos inanimados de gente, muita gente, de carne e osso. O domínio das palavras é, na descrição de Marx e Engels, uma camera obscura na qual o sentido aparece invertido ­ de ponta-cabeça, como convinha à obsessão de ambos estes senhores com esta posição. Para os autores, estes não italianos, de A Ideologia Alemã, havia uma possibilidade de construir-se uma camera chiara através da palavra científica (no caso, a palavra do socialismo, a palavra do socialismo científico, do socialismo como ciência). Essa esperança reduziu-se hoje a pó, no socialismo científico e na ciência tout court. Não existem camere chiare nem nas palavras ­ que não são mais exatas do que as imagens ­ nem nas imagens, que não valem mil palavras (e que às vezes não valem nada, nem uma interjeição, nem um grunhido).
Nesse cenário, aquela declaração do surfista talvez não seja motivo bastante para expô-lo à humilhação pública, como querem letrados de variadas margens, dos acadêmicos aos cartunistas. Diria este surfista pós-sessentoitista: "Se a palavra, como admitiam até Marx e Engels, é uma camera obscura, se nem a ciência a torna mais clara, por que praticá-la, por que não dispensá-la?". Pergunta incômoda, difícil de responder sem um recurso ao bom-mocismo que é dizer coisas como "a palavra é, mesmo assim, o maior dom humano", etc.
O fato é que as perguntas sobre a palavra se acumulam enquanto as respostas mínguam. O seminário para o qual esta intervenção foi preparada partiu de uma dessas perguntas: "É verdade que a democracia surge quando a palavra substitui a força?", propôs Renato Janine Ribeiro aos participantes, já antecipando que isso estava longe de ser evidente. Dessa questão pende um cacho de outras: a palavra é democrática? Melhor, pensando nos exemplos ­ poucos mas eloqüentes ­ aqui comentados: quando a palavra é democrática? Um seminário inteiro dedicado a essa questão não foi sucifiente para alcançar uma resposta satisfatória. As fronteiras entre a palavra democrática e seu oposto, a palavra tirânica, ditatorial ­ aquela que impede de dizer e também aquela que, observou R. Barthes, é ainda mais terrível porque obriga a dizer certas coisas, como no caso de "concubina" ­, parecem imprecisas e incertas. A palavra democrática parece estar sempre em trânsito, sempre fluindo entre o pólo da democracia e seu oposto: parece sempre uma entidade relacional.
No entanto, seu oposto aparente, a palavra ditatorial ­ ou, quando menos, autoritária ­ surge nítida, firme, fixada. Da intervenção de Newton Bignotto, da Universidade Federal de Minas Gerais, decorre que a palavra antidemocrática (e esta condensação é de minha responsabilidade):
1) tem um tom genérico e necessita quase sempre nomear um adversário, um inimigo;
2) reivindica para si o uso da razão (o príncipe maquiavélico, o désposta, o ditador
anuncia e enuncia a razão: aos súditos cabe ouvi-la e segui-la);
3) rejeita o conflito tradicional "liberdade versus tirania" e o substitui por outros como, preferencialmente, "paz versus desordem".
De imediato ocorreu-me, graças à argumentação de Bignotto, que a palavra da economia, o discurso economicista, é exemplo acabado de palavra antidemocrática porque:
1) é genérico (abole o singular-concreto em favor do geral-abstrato) e, particularmente, eufêmico (outro modo da generalidade) ao mesmo tempo em que sempre nomeia um inimigo: já foi a burguesia e o capitalismo, hoje é o Estado;
2) desfralda ininterruptamente o recurso à razão ­ pelo menos, à razão como a economia a vê, na forma de racionalidade (isto é, máximo de rendimento com o mínimo de investimento) e racionalização (parcimônia no investimento), por exemplo, que pouco ou nada têm a ver com a razão mesma;
3) justifica-se as suas propostas não em nome da liberdade, contra a opressão, mas em defesa da paz enquanto pinta o quadro de caos que se seguirá se suas palavras de ordem não forem seguidas e implementadas.
Considero, pessoalmente, um avanço ter conseguido identificar na fala economicista uma ocorrência do discurso autoritário e ditatorial; o que antes eu desenhara apenas com a ajuda de elementos soltos, materializados nas figuras mencionadas, surgiu, no seminário, como um sistema bem delineado. Um avanço.
E a partir do negativo, quer dizer, da forma tirânica fornecida pelo discurso ditatorial da economia, torna-se possível ensaiar um positivo ­ já que recorremos constantemente, aqui, às metáforas fotográficas ­ da palavra democrática, que seria:
1) específica (isto é, singular, concreta e materializada) e não orientada pela idéia de um inimigo que justifique sua existência;
2) alheia a compromissos limitativos com a razão, embora com ela possa operar;
3) tem constantemente como pano de fundo a figura da liberdade ­ a pessoal tanto quanto a coletiva, a da imaginação como a da expressão, a da destruição na mesma proporção que a da construção ­ sem obcecar-se com a paz e a ordem.
Não é preciso muito para perceber que uma ocorrência concreta da palavra assim democrática é a palavra da literatura ­ e a da poesia, do cinema, do teatro, da pintura, etc. Não qualquer literatura, poesia e cinema, mas aquela literatura, aquela poesia e aquele cinema que aceitam o que é próprio da arte ­ o mergulho, o vôo livre em uma busca incerta do autodesvelamento e da auto-revelação ­ e que jogam esse jogo em nome da única coisa que o justifica: o próprio jogo.
Esse retrato torna-se um pouco menos nítido ­ ou bem mais turvo, se se preferir ­ quando se pensa em outras variáveis. Ainda seguindo o caminho aberto por Newton Bignotto ao comentar O Príncipe, de Maquiavel, e as reações por esse livro provocadas na própria época de seu aparecimento, seria possível pensar que a palavra democrática:
1) diz verdades;
2) dirige-se a todos ou, em todo caso, ao maior número;
3) propõe pensamentos e atos edificantes.
Nenhum desses traços parece-me específico e, menos ainda, suficiente para caracterizar a palavra democrática. A palavra democrática não enuncia verdades mas joga com elas ­ e esse jogo é feito em nome do puro dispêndio nocional ou semântico e não
buscando uma operacionalidade eficaz imediata. Menos ainda a palavra democrática propõe pensamentos e atos edificantes: a palavra poética, caso preciso e precioso da palavra democrática se houver uma, tem como matéria, senão de eleição em todo caso inevitável, aquilo que de edificante pouco ou nada tem
Até aqui será possível contar com a concordância da maioria. Menos cômodo será defender a idéia de que a palavra democrática não se vincula necessariamente ao grande número, ao maior número. Essa palavra poética, palavra radicalmente democrática, não procura a inclusão do maior número a nenhuma esfera, seja qual for: a da verdade, a da justiça, ou mesmo a da arte (a da literatura, da poesia, do cinema) ou, ainda, a da democracia. Essa palavra radicalmente democrática, porque poética, proporciona, acaso, a inclusão de seu proferidor em si mesmo. Nem isso é garantido ou claramente buscado, e certamente nada além disso é garantido ou buscado. Não é, como se vê, uma idéia que segue no trilho dos conceitos estabelecidos e propalados. Não será fácil reconhecer que o jogo da democracia radical passa por aí. Essa palavra democrática ­ o que quase impele a dizer: a palavra democrática, simplesmente ­ não tem compromissos firmados com o grande número porque o grande número não é idéia pertinente a nenhum dos três traços enunciados (o singular, o alheamento à razão, o princípio da liberdade). É este o paradoxo da palavra democrática, que sempre se procurou e se procura ignorar por contrariar os ideais (sem dúvida elevados e edificantes) políticos da democracia tal como é esta definida desde a Antigüidade e, sobretudo, a partir do Iluminismo. Sob essa luz será, talvez, possível entender a afirmação de Churchill segundo a qual a liberdade é o pior regime político existente ­ só que não há outro melhor para pôr-se em seu lugar. Não será preciso dizer que a democracia é o pior regime político para a palavra radicalmente democrática; bastará observar que a palavra democrática radical não aciona tão diretamente a democracia quanto se costuma pensar ­ e que todo esforço para transformá-la nesse motor só a perde e desfigura. Paradoxo, quem sabe uma aporia. Tanto mais paradoxal porque impensável supor, por um instante sequer, que essa palavra radicalmente democrática, a palavra poética, não deva ser protegida e incentivada e, pior, deva ser descartada. Menos ainda sujeita a seleções (esta é democrática, aquela não é). Inquietará talvez a vários espíritos dizer que a palavra poética de Celine e Borges é tão democrática quanto a de Neruda ou Camus, e que esse caráter democrático não depende tanto de uma matéria específica e uma intenção conteudística especial (um discurso politicamente correto, por exemplo) quanto de uma forma própria e uma intenção poética correspondente. No entanto, é assim.
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Mas, perguntaria o espírito prático, não haveria um estado intermediário entre essa palavra poética e uma palavra politicamente funcional que tratasse de perseguir e dizer as verdades, de dirigir-se ao maior número procurando incorporá-lo à democracia? A obsessão com os pensamentos edificantes, e a pressão por eles exercida, força a dizer que isso teoricamente é possível. Por exemplo, um discurso jornalístico que, como lembrou Marcelo Leite nesse mesmo seminário, abre-se ao diálogo, ouve o outro lado, procura intencionalmente dirigir-se ao grande número. Mas, fora dessa convenção do bem-pensar, sabe-se que não é assim: para a palavra poética, no meio não está, de modo algum, a virtude. Nenhum poeta, nenhum pintor, nenhum romancista disse o que podia e queria dizer colocando-se no meio. A palavra poética, quer dizer, a palavra radicalmente democrática, faz sua opção e essa opção é, para ela, a única opção possível, a única viável, a única aceitável. O que significa dizer que a palavra do poeta, de Michelangelo como a de Godard, de Guimarães Rosa como a de Tolstói, é de algum modo autoritária.
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Aquele seminário concluiu com a sensação de que a palavra tirânica é, quer dizer, existe como algo igual a si mesma, tem uma identidade, é reconhecível e se afirma como tal, ao passo que a palavra democrática é ambígua, flui entre dois pólos de tensão envolvendo entidades, categorias e propostas opostas. Pouco mais ficaria esclarecido (talvez nada mais) se naquela discussão alguém tivesse se lembrado das categorias da palavra pública e da palavra privada. Isso porque é certo que a palavra pública (quer dizer, aquela que seria a palavra democrática por excelência) apresenta, na maior parte do tempo, na voz da maior parte dos oradores, aquelas figuras já apontadas do eufemismo, da dissolução do sujeito, do sexismo, da luta ideológica, da casta, etc. Quer dizer, ela seria, por definição, a palavra que, dizendo, não diz e que não diz dizendo. Seria um equívoco, porém, restringir o campo de atuação desses efeitos apenas ao domínio da palavra pública: também a palavra privada está recheada das mesmas figuras (como "campeão", usada pelos pais de classe média para designar seus filhos varões na época pós-Senna). Apenas em situações extremas ­ como no jogo sexual, no êxtase etílico ou outro, quer dizer, quando o superego está temporariamente inoperante ­ a palavra privada veicula exatamente, ou aproximadamente, aquilo que está querendo dizer. A distinção entre palavra pública e privada parece ajudar a entender certos fenômenos, como a diferença enorme entre a palavra no Brasil falada e a palavra no Brasil escrita, como observou Mário de Andrade ­ diferença não obrigatória em todas as latitudes e longitudes mas que reaparece aqui e ali com diferentes intensidades: no Japão não apenas existem uma palavra pública e outra privada como também há uma palavra do homem e outra da mulher Como, no entanto, já foi demonstrado inúmeras vezes que no Brasil, pelo menos no Brasil, as esferas do público e do privado tendem a confundir-se de maneira notável, essa distinção, útil até certo ponto, não resolve o dilema. Nem o paradoxo.
Uma saída poderia estar no reconhecimento de que um certo tipo de palavra, a palavra poética, é aquela que mais se aproxima do ideal cognoscível da palavra democrática e que a única política compatível a seguir seria aquela que criasse as condições mais amplas para que o maior número de pessoas tivesse acesso a esse tipo de palavra (não tanto a seu conteúdo quanto à sua prática) como forma de operar-se uma intervenção eventual e futura, indireta, sobre as outras palavras na busca assintótica disso que é a palavra amplamente democrática (1). Mas os governos não estão inclinados a isso, nem os mais democráticos. Estão todos imbuídos tanto da advertência platônica contra a arte quanto dos ideais positivistas (neoliberais tanto quanto outros de sinal ideológico contrário) da eficácia imediata.
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Observando o que se passa com as palavras, Calvino viu-se forçado a concluir que a peste da inexatidão e da indeterminação talvez não tenha alcançado apenas a palavra e que ela seria, antes, uma peste do mundo contemporâneo. Talvez seja assim ­ e talvez essa seja uma imagem exagerada. Do mesmo modo, difícil dizer se haverá um vacina para a peste do mundo. Para a palavra há, sim, uma saída ­ que já existe: a da palavra poética. Não a saída através da impossível exatidão e limpidez da palavra utilitária, científica e genérica (que se aplique ao maior número) mas pelo não-utilitarismo e não-universalidade da palavra poética que não é apenas verbo mas também imagem e som ­ desde que não se entenda por isso nenhum dos muitos esteticismos em vigor, a começar pelos publicitários. A palavra poética não diz de modo necessariamente mais claro ou unívoco. Ela simplesmente diz. As diferenças entre ela e a palavra de Moro, no entanto, são inúmeras: ela não nomeia um inimigo, não se entrincheira na razão, sabe que não se salva (talvez nem depois, nem agora), nada espera de seu apelo: apenas quer, sempre, dizer. Dispêndio puro. Ela não se disfarça na abstração, abre-se para o afetual, isto é, não está em contato com a norma: toca, a seu modo icônico, abdutivo, no primeiro, no cerne.
Enquanto essa palavra não se dissemina, melhor não rir do surfista. Do alto de sua prancha instável (feita para isso e que sabe enfrentar isso), ele observa, propositadamente desatento, afetual, a batalha mortal das palavras na praia. Ou, se se preferir, conforme o estado de espírito do momento, a comédia de erros da praia das palavras.
Nota
1 A palavra científica não tem como concorrer com a palavra poética, nesse sentido. Não nomeia inimigos (não sempre, em todo caso) e desse modo cumpriria um dos requisitos básicos da palavra democrática. Mas é só esse princípio que parece atender. Afirma operar sempre com a razão (quer dizer, com o irrecorrível); não se coloca problemas de liberdade ou tirania mas sim de paz x desordem; dirige-se a um número ainda menor de pessoas do que a palavra poética; afirma proclamar apenas verdades (não indicando que suas verdades são apenas e sempre provisórias e precisam ser contestadas por outras verdades para manterem-se como científicas); é sempre genérica, por força, e embora não enuncie diretamente pensamentos e propostas edificantes está sempre inferindo, de suas afirmações, uns e outras.
* Teixeira Coelho é coordenador do Observatório de Políticas Culturais da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de Os Histéricos, em colaboração com Jean-Claude Bernardet (Companhia das Letras).
 
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