A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE GALAHAD
ESPECULAÇÕES TEÓRICAS SOBRE O CARÁTER SAGRADO DO CAVALEIRO NA DEMANDA DO SANTO GRALL
Róger Monteiro
É no mínimo estranho que, durante todos esses anos de um contato mais do que íntimo com o texto da Damanda do Santo Graal, esta seja a primeira vez que eu sente em frente a este computador para escrever algo à respeito. Seria de se supor, então, que esse contato me concedesse uma certa desenvoltura em relação ao tema, porém o que estou observando agora é exatamente o contrário. Quando milhares de idéias isoladas, e até certo ponto desconexas, dançam em turbilhão dentro de sua mente, é no mínimo difícil concatená-las e, mais ainda tentar sistematizá-las. Parece-me que quanto maior o domínio sobre o assunto, maior a dificuldade de síntese e sistematização.
A escolha de apenas uma das muitas passagens interessantes da Demanda do Santo Graal, me acenou com uma esperança. Talvez o universo reduzido me auxiliasse a escolher as idéias certas, as impressões mais pertinentes para serem expostas aqui. Mas por mais que eu tentasse isolar o episódio selecionado, tentasse manter o meu processo mental apartado de todo o resto do texto, concentrando-me unicamente naquele determinado trecho, a tarefa foi inútil. Minha mente vem sendo contaminada com a magia da cavalaria, em especial do Ciclo Arturiano, ao longo de vários anos, o que levou a reflexão sobre aquelas linhas a confundir-se não só com fatos e concepções pertencentes à Demanda em si, bem como a toda uma gama de conceitos expressos em outras novelas e romances de cavalaria.
Comecei a procurar por uma idéia que fosse realativamente nova, original, uma vez que considero inútil dizer o que já foi dito. Jamais dedicaria meu tempo, minha madrugada - uma vez que é só depois da meia-noite que consigo por idéias em ordem - a escrever um texto que dissesse o óbvio, que se resumisse a uma mera citação do código de honra cavaleiresca, de uma observação dos comportamentos dos cavaleiros, uma apologia de seu senso de dever e lealdade. Não. O primeiro registro escrito de uma de minhas maiores paixões não poderia se resumir a um texto medíocre, com idéias medíocres. E talvez por isso tenha relutado tanto até decidir sentar e começar a escrever. E a idéia que pretendo expor aqui nasceu em uma taça de vinho.
Uma taça de vinho. Em um primeiro momento pode parecer estranho que uma reflexão literária tenha sua gênese em uma taça de vinho(1) . Ela poderia servir de berço a um poema romântico, talvez simbolista, lembrando Baudelaire... Mas, por incrível que pareça, o sangue de Baco foi responsável por estas especulações teóricas - ou nem tão teóricas assim. Portanto, creio que qualquer insânia escrita ao longo das próximas linhas já tenha sua pré-justificativa em sua própria origem.
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A figura de Galahad (2), confesso, nunca me foi muito simpática. Sua perfeição sempre me causou uma certa irritação. Literariamente falando, essa perfeição se torna quase um estigma para a personagem, teoricamente tornando-a um caractere plano, sem os conflitos que imprimem o traço natural, vivo, aos outros cavaleiros da Távola Redonda.
Sendo assim, foi com uma certa surpresa que me deparei com Galahad dentro de minha taça de vinho. Mais tarde, relendo o texto, pude, finalmente, perceber o processo que levara à, aparentemente estranha, relação.
No primeiro episódio da Demanda do Santo Graal, Galahad chega à corte de Arthur envolto em uma armadura vermelho-ígnea, na minha imaginação, mais ou menos a mesma cor que ondulava dentro da taça de cristal. E encontrando a imagem do cavaleiro em vermelho, me dei conta de que eram duas: uma que boiava na superfície do líquido; outra, um tanto quando deformada e difusa, mergulhada, submersa. Pois bem, essas duas imagens me levaram à uma descoberta, à uma hipótese que, talvez, valha não somente para os cavaleiros do Graal, mas para todos os que tomaram armas nos textos da cavalaria..
A dupla imagem formada na taça fez com que eu percebesse que são duas as linhagens básicas da cavalaria medieval, dois os grandes arquétipos: o cavaleiro de Deus e o cavaleiro do Mundo. Não poderíamos dizer linhagens opostas, pelo menos não antagonistas, mas apenas formas diferentes de encarar a cavalaria, formas diferentes de interpretação do código cavaleiresco.
Tristão seria o ideal de Cavaleiro do Mundo. A mola mestra de suas ações é nada menos do que o amor. Não o amor fraternal, o amor pelo próximo, mas o amor-paixão, o amor cortês, puro pathos. Pensei em Lancelote. Entretanto, apesar de suas ações também serem guiadas pela paixão, ainda lhe resta a consciência do pecado, o medo do fogo infernal, não só para ele, mas também para Guenevere(3) . Isto fica bem marcado no episódio em que o cavaleiro tem a visão da rainha nua, sentada em um trono de chamas, vítima do sofrimento eterno pela traição. Tristão não sofre senão pela ausência da amada. O amor por Isolda é mais forte do que o dever de vassalagem para com o rei, do que o laço de família com tio. Ele não hesita em tomar Isolda para si mesmo diante da dupla traição.
Pelo outro lado, empunhando o escudo com o brasão de Deus, a primeira personagem que me ocorreu foi o próprio Galahad. Puro, intocado pela mácula do louco-amor. Corpo e alma brancos como as armas que carrega. Incapaz do pecado, incapaz do erro, ainda que por um nobre motivo que o justifique. Galahad é perfeito como o próprio Cristo. Como o próprio Cristo... E esta frase deu origem à idéia que começou a me tentar...
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Em um primeiro momento me pareceu algo difícil de ser provado, porém, com algum esforço, recorrendo a algumas passagens da Bílbia - livro que confesso não ter lido, apesar de conhecer algo por leituras indiretas - a idéia começou a ficar mais palpável e mais sutentável, consequentemente.
Uma comparação entre Cristo e Galahad. Mais. Galahad como símbolo do próprio Cristo no texto da Demanda. Quanto mais eu mergulhava na idéia, mais ela me fascinava. E a imagem do cavaleiro na minha taça de vinho, no sangue de Cristo, só me exortou a continuar com meu delicioso exercício de especulação.
A introdução do cavaleiro no palco dos acontecimentos do Graal coincide com a festa de Pentecostes, ocasião pela qual estão reunidos em volta da Távola Redonda todos os bons paladinos de Arthur. Pentecostes, para a religião cristã, simboliza a descida do Espírito Santo à esfera terrena. Galahad desce à Camelot, por assim dizer, em sua armadura vermelha, envolto em vermelho, como outrora o próprio Cristo desceu da cruz banhado em sangue.
Galahad é filho de Lancelote. E, estando Lancelote imerso em pecado por seus amores adúlteros com Guenevere, me parece lícito dizer que é Galahad que vem para expiar a culpa do pai ao recuperar para a cristandade a mais sacra das relíquias, o Graal. Segundo Albert Cousté, em seu Biografia do Diabo, a missão de Jesus Cristo é a de retirar o pecado do mundo, pecado este permitido, pelo menos virtualmente, pelo próprio Deus, ao expulsar Adão e Eva do Paraíso após o pecado original. Assim, tanto Jesus quando Galahad teriam a missão de redimir um pecado permitido, no primeiro caso, e cometido, no segundo, por seus pais.
Também é curioso o fato de serem em número de doze os cavaleiros do Graal. Ora, esse número é muito significativo, uma vez que eram doze os apóstolos. Assim, temos, no banquete em Camelot, uma réplica da Santa Ceia, não com o Rei assumindo a figura de Cristo, mas sim Galahad. Dessa forma, reunidos em torno da Távola Redonda, estão o Pai - Lancelote, o Filho - Galahad, e o Espírito Santo, na figura do Santo Graal que desfila perante os olhos dos cavaleiros, envolto em uma aura brilhante. A Santíssima Trindade.
Entretanto, se prestarmos atenção somente aos atos de Galahad ao longo do texto, deparar-nos-emos com um comportamento muito peculiar. O filho de Lancelot me parece ser o único dos cavaleiros do Graal, ao que me lembre, que não ostenta o orgulho secular pelas armas que carrega. Não quero dizer que a honra, no sentido em que ela se assemelha a orgulho pessoal, não faça parte da personalidade do cavaleiro, mas ele a expressa de uma forma um tanto quanto diferente. Galahad me passa uma certa impressão de humildade que não consigo reconhecer em seus demais companheiros. O status de cavaleiro no século XII poderia ser comparado ao de uma estrela de Holywood dos tempos modernos. E se os cavaleiros do Graal desfrutam desse status, sentem-se envaidecidos por estaram um degrau acima dos meros mortais, empunham seus escudos e suas insígneas com pompa e, por que não dizer, soberba, Galahad não. Druante toda a sua provação em busca do cálice sagrado, ele mantém a mesma atitude humilde, assim como Cristo o fizera, apesar de ser o filho de Deus.
Falei em provação. Ainda que todos esses fatores que citei contribuam para que encaremos Galahad como um ícone da figura de Cristo, creio que seja nesta palavra, provação, que se encontre a chave para minha hipótese.
Assim como o Novo Testamento relata inúmeras situações em que Jesus teria sido tentado pelo Demônio para que abandonasse o caminho de Deus, a Demanda do Santo Graal, pelo menos nos capítulos que dedica ao filho de Lancelote, também não deixa de ser um relato das tentações do Diabo sobre o cavaleiro Galahad. Não são poucas as vezes em que o jovem se depara com essas tentações, mas procurarei me restringir, aqui, ao trecho escolhido para análise, o episódio em que Boorz e Galahad chegam ao castelo do rei Brutos.
Creio não ser necessário dissertar sobre as concepções da sociedade medieval acerca do sexo. Sabemos muito bem como o século XII encarava as relações homem - mulher, as tratando como mais uma das tarefas de administração do reino, muito embora os poemas dos trovadores estejam repletos de amores arrebatadores e românticos, para usar um termo que ilustra muito bem aqueles versos, ainda que só fosse ser inventado uns seis séculos mais tarde.
É plenamente compreensível que as tentações, na Idade Média, se relacionem quase sempre com a mulher. Afinal, como a responsável pela introdução do Pecado no mundo, a sua figura estaria associada com o próprio Diabo até os tempos da Inquisição. E é justamente através de uma mulher que se manifesta a primeira tentação de Galahad.
Vivendo trancada no interior dos muros do castelo de seu pai, a filha do rei Brutos se apaixona perdidamente pelo cavaleiro. É interessante o caráter anônimo da donzela, o que ratifica sua posição de mero instrumento de tentação, obstáculo que o herói tem de superar em sua busca interior. Ela não é uma personagem sólida. Talvez sequer possamos chamá-la de personagem... O fato é que nela residem os dois elementos que se unem para constituir a provação de Galahad: a figura feminina e o sexo.
O amor que a donzela protesta, ao deitar-se na cama do cavaleiro, em segredo, envolvida pela proteção da noite, não é o amor puro e casto das cantigas dos trovadores. Pelo contrário, é o desejo carnal, o amor-paixão em sua forma mais extremada. Ela toca o corpo do cavaleiro, ela o deseja enquanto carne, não enquanto espírito. Talvez Galahad pudesse aceitar aquela espécie de amor, mas seu temperamento crístico, por assim dizer, o impede de tolerar o contato de corpos.
O caráter de tentação se afirma mais ainda quando, mesmo ao perceber que Galahad não era pertencente à classe que chamei aqui de Cavaleiros do Mundo, pelo contrário, era um piedoso, o que se manifesta pelo uso da estamenha(4), ela continua a nutrir seus desejos pelo jovem. É um embate interno, uma marca contraditória da donzela: por um lado ela sabe ser impossível atingir seu objetivo com Galahad, entretanto, mesmo sem a mínima esperança, ela continua tentando, e uso aqui essa palavra com seus dois sentidos.
- Ai, infeliz! Que é isto que vejo? Não é ele cavaleiro dos
cavaleiros andantes que dizem que são namorados, mas é daqueles
cuja vida e alegria está sempre em penitência... Este é dos verdadeiros
cavaleiros da Demanda do Santo Graal e em má hora foi tão formoso
para mim.
Se a donzela possui essa certeza, por que mais continuaria com suas súplicas senão pelo seu caráter de instrumento de tentação?
Mas é quando Galahad acorda e encontra a linda mulher em seu leito que sua prova de fogo realmente tem início. E é curioso como ele assume uma posição irredutível ao longo de todo o episódio, sensibilizando-se unicamente quando a donzela salta do leito, frustradas todas as suas esperanças de uma noite com o cavaleiro.
Quando ouviu isso não esperou mais, antes saiu do leito onde
se encontrava e correu à espada de Galaaz, que pendia a entrada
da porta da câmara, e sacou-a da bainha e pegou-a com ambas
as mãos e disse a Galaaz: - Senhor cavaleiro, bem vedes o engano
que havia nos meus primeiros amores. E mau dia fostes tão formoso
para mim que tão caro me convirá comprar vossa beleza.
É somente quando a donzela toma a espada em suas mãos e o cavaleiro percebe que ela realmente porá fim a vida por amor a ele que a atitude impassível vem por terra e Galahad cede à tentação:
- Ai, boa donzela! Tem um pouco de paciência e não te mates
assim que farei todo o teu prazer!
Entretanto a própria rendição de Galahad me parece aqui mais um ato de sacrifício por amor fraterno do que de fraqueza propriamente dita. A frase desesperada do cavaleiro tem muito mais de Jesus Cristo crucificado por amor ao mundo do que de Eva seduzida. E talvez seja exatamente por isso, pela natureza altruísta dessa, digamos, queda, de Galahad que ela não se consume no plano físico. A donzela realmente enterra a espada no peito, pondo fim à virtualidade do pecado. Consciente de que houvera feito o possível, o cavaleiro não mostra sinais de remorso. Talvez até o mostrasse se não precisasse defender a própria vida contra os cavaleiros de Brutos. Mas o fato é que não mostra. E assim o espírito do paladino continua imaculado, não tocado pela mancha do pecado. Galahad continua mais Cristo do que nunca, uma vez que até mesmo o sacrifício simbólico - a pureza de sua alma em troca da vida do próximo - foi virtualmente praticado.
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Confesso que a idéia me fascinou. Provavelmente este pequeno texto renderá alguns frutos no futuro, uma análise mais apurada, mais elaborada.
Não pretendi aqui trazer uma resposta definitiva. Estas linhas foram, como anunciei nos primeiros parágrafos e no próprio sub-título do texto, mais especulações teóricas do que uma análise literária propriamente dita. Mas acredito que, muitas vezes a especulação movida pela paixão seja mais frutífera do que a aplicação de mil teorias prontas. Ainda tenho uma certa dificuldade em encarar literatura como ciência exata, com regras e parêmetros definidos, e talvez a tenha em virtude de não querer tratá-la assim. Acredito mais na imagem dos Galahads flutuando em minha taça de vinho do que em tudo o que foi escrito sobre ele até hoje. Mentalidade medieval, diriam alguns. Talvez. Eu prefiro dizer que é apenas uma forma de se aproximar dessa fascinante dimensão chamada Literatura.
Notas
1 - Bem... Se Proust baseou um romance no gosto de bolinhos, creio que não esteja cometendo um pecado grave, aqui. Até mesmo porque o vinho é o sangue de Cristo.
2 - Esta é uma das contaminações a que me referi algumas linhas acima. Tenho uma dificuldade muito grande em utilizar os nomes dos personagens arturianos em suas formas portuguesas. Espero que isso não acarrete problemas realtivos à fulidez da leitura.
3 - Genevra.
4 - A estamenha era uma espécie de camisa áspera que monges e penitentes em geral usavam junto ao corpo como uma forma sutil de auto-flagelação.