A DÉCADA DO CÉREBRO
Cientistas do mundo inteiro mostram avanços no sentido de decifrar os mecanismos dos pensamentos e das emoções, naquela que é considerada a estrutura mais complexa do Universo.
Por: Lúcia Helena de Oliveira, de Los Angeles
Certa vez, o filósofo e cientista René Descartes (1596 - 1650) descreveu a mente humana como uma entidade extracorpórea, que se expressava através da pequena glândula pineal, abrigada dentro do cérebro. O pensador francês errou feio quanto à pineal, que tem enorme importância na regulação dos ritmos biológicos, mas está longe de ser o Q.G. de nossas idéias e devaneios. Contudo, Descartes teve o mérito de levantar, há mais de três séculos, uma questão que continua palpitante nos dias atuais: "Como será que a mente não - material pode influenciar o cérebro e vive - versa", indagou o radiologista Marcus Raichle à platéia de quase 3.000 pessoas, na palestra de abertura do XXII Encontro da Sociedade Americana de Neurociências. Espremidos nas longas fileiras de cadeiras laranja do Salão Pacífico no Hotel Hilton, os ouvintes eram uma amostra tímida dos 16.000 participantes do evento, realizado em Anaheim, nos Estados Unidos. Tudo nessa cidadezinha californiana costuma girar em torno da Disneylândia, o primeiro parque do império Disney, construído em sua área central. Mas, durante uma semana, contada a partir do último 25 de outubro, um domingo nublado, boa parte de seus turistas só estava interessada em ver alguns dos 4.000 trabalhos sobre sistema nervoso — as apresentações começavam pontualmente às 8 horas da manhã e só encerravam depois das 9 da noite.
O volume de pesquisas tornou o encontro incomparável na área das Neurociências, mas ele não é de espantar: há dois anos, nos Estados Unidos, foi sancionada uma lei instituindo a Década do Cérebro. Enquanto se virarem as folhinhas dos anos 90, os laboratórios americanos se empenharão em decifrar o quebra-cabeça do cérebro humano, com seus 100 bilhões de peças, ou seja, os neurônios. Nesse primeiro balanço das conquistas realizadas, não se conseguiu responder à pergunta de Raichle, um dos pioneiros na aplicação de técnicas como a ressonância magnética e a tomografia de emissão de pósitrons: "Esses equipamentos permitem fiscalizar
o cérebro em pleno funcionamento", explica. "As experiências com animais de laboratório começam a ser substituídas por estudos com seres humanos vivos. Era a chave que faltava para a compreensão da mente." Na opinião do radiologista, essa tem de ser a principal pauta dos pesquisadores até o final da década. Nesse período, as entidades governamentais americanas destinam a fatia mais gorda do orçamento ao estudo do sistema nervoso; por sua vez, escolas e empresas privadas que financiarem essa mesma investigação pagarão menos impostos.
"Com essa medida, os americanos estão sendo muito práticos e objetivos", observa o pesquisador carioca Ricardo Gattas. As doenças degenerativas do sistema nervoso são um dos grandes problemas da população." De fato, os americanos não escondem a preocupação com os 120 bilhões de dólares que gastam, todo ano, com o tratamento de distúrbios nervosos. Chefe do Laboratório de Neurobiologia do Instituto Carlos Chagas. no Rio de Janeiro, Gattas foi um dos 25 brasileiros presentes no encontro em Anaheim: "No final das contas. a ciência vai avançar bastante com a Década do Cérebro", admite. Como ele, cerca de 10% dos conferencistas nos Estados Unidos vinham de outros países. "Essa é uma viagem que vale a pena. Todos os trabalhos importantes, realizados no mundo inteiro, devem aparecer aqui", apostava, no primeiro dia do evento, o cientista Adolfo Sadile, que chefia os estudos sobre a fisiologia do cérebro, na Universidade de Nápoles, Itália.
Há quem dedique toda a sua atenção ao cérebro traumatizado por causa de doenças e acidentes: outros perseguem os mecanismos com os quais o sistema nervoso comanda os diversos órgãos do corpo; não faltam, ainda, pesquisadores interessados em memória e aprendizado — na verdade, as Neurociências se dividem em nada menos do que 53 campos de estudo. Os cientistas se portam como fervorosos torcedores de futebol: cada um defende a sua área como a que traz mais novidades. Nessa saudável competição, os investigadores do comportamento e da mente parecem ter largado com vantagem, devido ao destaque na palestra de abertura. "Compreender a origem das nossas emoções e pensamentos é a última fronteira da ciência", opina outro entusiasmado participante, o professor Carlos Tomaz, da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. "Por isso mesmo, essa é a parte mais difícil.''
Quando Descartes tirou do cérebro qualquer responsabilidade sobre a memória, a imaginação e o humor, ele não fazia a menor idéia de que a massa cinzenta encaixada no interior do crânio, com cerca de 1,3 quilo, era a estrutura mais complexa do Universo. Descartes também ignorava que os circuitos cerebrais são resultado tanto da ação dos genes como da experiência: às vezes, ao gravarem novos dados, as células nervosas fazem crescer seus prolongamentos, os axônios, para se agarrarem a outras células, formando redes neuronais de infinitas combinações e, graças a esse fenômeno de plasticidade, possibilitando infinitas associações de idéias. Finalmente, o filósofo nem tinha como saber, em sua época, que a versão do cérebro humano surgiu após milhões de anos de aprimoramento, no processo da evolução. Se soubesse de todas essas coisas, Descartes talvez fosse buscar no cérebro, o endereço daquilo que alguns chamam de espírito, alma ou mente. Para os cientistas, no entanto, essas palavras de sentido mais ou menos vago significam coisas cada vez mais concretas.
Veja-se, por exemplo, a chamada microdiálise, técnica recente que rendeu 129 trabalhos entre aqueles mostrados no encontro: uma finíssima agulha perfura o cérebro de animais de laboratório para colher continuamente o sangue; a amostra passa por um aparelho de análise, antes de o líquido ser reinjetado. "Com isso, podemos monitorar qual neurotransmissor está agindo em determinada área cerebral, em diversos tipos de situações", explica o neurocientista americano Floyd Bloom, do Instituto de Pesquisas Scripps. Neurotransmissores são moléculas mensageiras que as células nervosas liberam para se comunicarem, já que não estão ligadas entre si. "Experiências com a microdiálise também podem ajudar no tratamento de doenças . explica. "Afinal, os remédios para distúrbios nervosos sempre funcionam no sentido de aumentar ou reduzir a produção de neurotransmissores. Se conhecemos qual substância está mal regulada em cada tipo de caso, fica mais fácil o desenvolvimento de drogas eficazes."
Existem mais de cinqüenta neurotransmissores conhecidos. No entanto, uma mesmíssima substância neurotransmissora pode ter efeitos diferentes, conforme o lado de sua molécula que se encaixa nos receptores dos neurônios. Além disso, desde que o primeiro neurotransmissor foi identificado, em 1921, sua família não parou de crescer. Recentemente, pesquisadores de outro conceituado instituto americano, o Johns Hopkins, encontraram evidências de que o óxido nítrico seria usado como mensageiro no cérebro. "isso pode inaugurar a classe de neurotransmissores cerebrais gasosos", revela Bloom. Há menos de dez anos, os cientistas descobriram que o óxido nítrico ajuda a modular a ordem de relaxar os músculos no sistema nervoso periférico — como se chama a trama de nervos, que se espalha pelo corpo, feito linhas de comunicação entre o cérebro e os demais órgãos. Essa, porém, é a primeira vez que se nota a presença do óxido nítrico na nobre área cerebral. "Devemos descobrir que região exata do cérebro se encarrega de sintetizar o novo neurotransmissor, antes de especular qual seria a função dessa substância", diz Bloom.
Diga-se de passagem que, freqüentemente, as discussões sobre o papel de uma substância neurotransmissora gera controvérsia. Pesquisadores da Faculdade de Medicina Bowman Gray, nos Estados Unidos, chamaram a atenção ao estabelecerem uma relação entre o neurotransmissor serotonina e o comportamento agressivo. "Surgiu a suspeita de que no cérebro de pessoas com tendência ao suicídio e de criminosos havia taxas de serotonina menores do que o normal", conta a médica Babette Botchin. "Resolvemos conferir essa informação em macacos." Durante 28 meses, a pesquisadora observou pacientemente o comportamento de 75 machos. E garante: "Aqueles com menos serotonina viviam comprando brigas com os outros. Eles mordiam e arranhavam seus companheiros de grupo por qualquer bobagem". Segundo Babette, a constatação em macacos pode ter implicações importantes para os seres humanos: "Sabe-se que o nível de serotonina é determinado pelos genes ", diz ela. "Isso implica que algumas pessoas já nasceriam com tendência a praticar atos de violência."
Além disso, na sua opinião, o estudo pode disparar o desenvolvimento de drogas, capazes de aumentar a quantidade de serotonina no cérebro e, assim, controlar a agressividade. Isso é um absurdo"? alfineta o professor Joseph Huston, da Universidade de Dusseldorf, na Alemanha, considerado um dos maiores especialistas do mundo no estudo dos mecanismos cerebrais do comportamento. "No cérebro, nunca uma substância está agindo sozinha. Ok vamos admitir que a falta de serotonina tenha uma participação na agressividade. Daí a dizer que ela pode controlar o impulso à agressão é outra história, que só interessa à indústria farmacêutica. Em breve, ela poderá vender milhões de milagrosos "comprimidos de serotonina", diz ele, torcendo os lábios, no tom sarcástico que predomina quando os cientistas disparam suas criticas.
As pesquisas também avançaram muito no sentido de identificar os genes responsáveis pela produção dos neurotransmissores. Os planos são implantar no cérebro células alheias que com a ajuda da Engenharia Genética foram codificadas para secretar certos neurotransmissores, deficientes nas doenças degenerativas. Até este ano, essas experiências não dispensavam a manipulação de células nervosas fetais, esbarrando em complicadíssimas questões éticas. E não era só isso: uma vez implantados no cérebro doente, os neurônios de feto resolviam o problema em um primeiro momento, mas depois criavam um tumor fatal, porque continuavam se multiplicando sem parar, como de costume. Recentemente, porém, pesquisadores da Universidade da Califórnia apontaram uma alternativa. Eles implantaram o gene encarregado de comandar a produção do neurotransmissor dopamina em um retrovírus chamado SV40. Este foi usado para infectar o cérebro de macacos cujos sintomas, como tremedeiras, eram semelhantes aos do mal de Parkinson — doença que, supõe-se, seja provocada pela ausência de níveis adequados de dopamina no sistema nervoso. Ao invadir o núcleo dos neurônios, o retrovírus com o gene da dopamina ordenou que eles passassem a produzir o neurotransmissor deficiente", afirma Jeffrey Kordower, neurocientista que participou da experiência. "Ao menos em macacos, os sintomas da doença desapareceram.
Apesar de novidades como essa, trazidas dos laboratórios diretamente para o evento, poucas palestras foram tão concorridas quanto a do neurocientista Simon Levay, do Instituto de Educação Gay dos Estados Unidos — os organizadores tiveram de recorrer a cadeiras extras, que mal cabiam na sala com cerca de quatro mil ouvintes. "Existe uma espécie de marca no cérebro determinando a orientação sexual das pessoas", defende Levay, que buscou uma série de evidências dessa teoria. Alguns testes, por exemplo, apontam que as mulheres heterossexuais têm muito mais habilidade para a linguagem do que os homens — e, no caso, os homens homossexuais, embora continuem perdendo para o sexo feminino, são mais habilidosos na arte do discurso do que os homens heterossexuais. Esse padrão, no meio - termo entre o masculino e o feminino, parece se repetir em outros testes, como os de cálculo e memória visual. "As estatísticas ainda mostram que, em gêmeos univitelinos, quando um deles é homossexual, há 75% de probabilidade de o outro também preferir companheiros do mesmo sexo", revela. "Isso indica que a homossexualidade pode ser herdada e o cérebro é lugar certo para a expressão dessa herança."
Será que os genes também podem ser responsáveis pela maneira de pensar? Certos cientistas tentam responder a essa pergunta com a tomografia de emissão de pósitrons (conhecida por PET, sigla em inglês). A imagem gerada pelo computador, ligado ao aparelho, ressalta as áreas cerebrais em que existe maior fluxo sangüíneo. Nelas, há mais consumo de energia — portanto, ali, os neurônios devem estar operando em pleno vapor. A médica Karen Faith, do Instituto Nacional de Saúde Mental, nos Estados Unidos. aplicou o exame do PET em dez pares de gêmeos, que realizavam várias tarefas, como cálculo, leitura, testes de memória. "Fizemos a mesma batelada de exames em pessoas que nem eram irmãs, mas tinham o mesmo sexo e idade. Nelas, não encontramos tantas similaridades como nos casos de gêmeos", diz Karen. Segundo ela, os gêmeos costumam ativar os mesmos pontos do cérebro e com a mesma intensidade, quando realizam uma tarefa em comum. Isso é mais um indício de que já nascemos com uma parte do nosso jeito de ser gravada no cérebro. Portanto, não é nem nos signos apontados pelos astrólogos, nem sequer nos números calculados pelos numerologistas que a personalidade é determinada — ela pode, sim, se encontrar nos genes, que se expressam nos neurônios.
DEZ ANOS PARA DECIFRAR O CÉREBRO
Agora é pra valer: os cientistas proclamam a Década do Cérebro (1990-1999), durante a qual pretendem desvendar todos os segredos do mais misterioso órgão do corpo humano.
Por: Lúcia Helena de Oliveira
No final do ano passado, o aparelho de eletroencefalograma instalado no laboratório de neurociências da Universidade de Calgary, no Canadá, começou a desenhar ondas regulares, que representavam o ritmo cadenciado da respiração de uma Lymnaca—uma espécie de lesma marinha com pulmões. O exótico animal costuma subir à superfície da água, de instantes em instantes, abrindo um orifício para a entrada do ar. Mas, no centro de pesquisas canadense, não havia água salgada, nem lesmas. A pulsação registrada vinha, apenas, de três neurônios espetados por delgados eletrodos. O trio, em condições normais, deveria comandar a respiração da Lymnaca e aquela era a primeira vez que os cientistas conseguiam observar o sistema nervoso comandando uma função fora do organismo. Equivaleria a reproduzir uma gargalhada ou um espirro em tubo de ensaio, para se verificar literalmente a raiz do fenômeno: os neurônios, as células onde nascem todas as funções orgânicas, assim como as sensações, as emoções e os pensamentos. As células nervosas que serviram de modelo nessa experiência pioneira funcionam como um oscilador eletrônico conhecido pelos cientistas por flip-flop—dois transístores ligados de modo que um deles, ao conduzir a corrente elétrica em sua saída, impede a entrada da corrente do outro. Assim, um neurônio aciona o músculo envolvido na inspiração da lesma e, ao mesmo tempo, bloqueia um segundo neurônio, responsável por disparar o movimento da expiração. No momento seguinte, a situação se inverte. É o terceiro neurônio, no caso biológico, que controla os dois que irão oscilar, banhando-os com uma substância chamada dopamina, numa espécie de ordem química. Cientistas do mundo inteiro, agora, pretendem realizar estudos semelhantes, trocando o tipo de neurônio e substituindo, muitas vezes, a dopamina por outras substâncias neurotransmissoras, a fim de flagrar novos mecanismos do sistema nervoso.
A mesma técnica, aliás, já serviu para que neurologistas da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, assistissem à modificação neuronal provocada pela memória. Eles imitaram o cientista russo Ivan Pavlov que, no início deste século, induziu cães a salivar toda vez que ouvissem uma campainha—sinal sonoro associado com o horário da refeição. Só que, no caso, os alunos eram 29 pares de neurônios, retirados de outra espécie de lesma marinha, a Aplysia. Um neurônio sensorial, representando o papel do ouvido do cão na experiência pavloviana, recebia um estímulo e acionava em seguida um neurônio motor, equivalente à salivação do bicho. Sem a presença de um neurotransmissor específico, chamado serotonina, aquele neurônio motor reagia como se estivesse sendo estimulado pela primeira vez. Com serotonina, porém, agora consagrada como uma substância fundamental ao aprendizado, a cada repetição o segundo neurônio respondia mais depressa, porque reforçava suas ligações, os axônios, com a primeira célula.
Na realidade, ao se lidar com circuitos simples, formados por poucos neurônios, o que se espera é montar, peça por peça, o intricado quebra-cabeça do cérebro humano — a trama de nada menos que 100 bilhões de células nervosas. A tarefa hercúlea tem um prazo final bem definido: dez anos, que começaram a correr a partir do calendário de 1990. Ao menos, esse é o desafio dos cientistas americanos. Pois o presidente dos Estados Unidos, George Bush, sancionou lei instituindo a Década do Cérebro, que começou no ano passado. Nesses dez anos, as instituições governamentais ligadas à pesquisa devem destinar a maior fatia do orçamento ao estudo do sistema nervoso, enquanto as escolas e empresas privadas que financiarem essa investigação pagarão menos impostos. Com isso, a meta é injetar recursos nas experiências sobre o cérebro. O investimento é lógico: cerca de 50 milhões de americanos são vitimas de algum distúrbio neurológico e gastam, entre exames de diagnóstico e tratamento, aproximadamente 120 bilhões de dólares por ano, uma montanha de dinheiro equivalente ao valor da dívida externa brasileira. Diga-se de passagem, a Década do Cérebro arrancou com força total naquele país. Pois, logo em maio de 1990. pesquisadores da Escola de Medicina Johns Hopkins anunciaram a reprodução de neurônios humanos—células que, até então, tinham a fama de jamais se multiplicar, depois do nascimento.
A proeza foi realizada quando dois neurocirurgiões, Jeffrey Nye e Salomon Snyder, retiraram amostras do córtex—a superfície cinza-chumbo do cérebro—de uma garota de 18 meses, submetida a uma operação. As células extraídas foram mergulhadas em diversos coquetéis de nutrientes e hormônios do crescimento. Passados 21 dias, duas colônias de neurônios começaram a crescer, em vez de morrer como as outras. Elas, aliás, continuam dobrando de população a cada 72 horas. "A descoberta abre a possibilidade de testar drogas e estudar doenças de maneira direta", comemora o neurofisiologista carioca Roberto Lent, que coordena uma dúzia de grupos de pesquisas em neurociências, no Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Na opinião do cientista, embora criada nos Estados Unidos—país onde são realizadas quatro de cada dez pesquisas científicas publicadas no mundo —, a Década do Cérebro repercutirá em laboratórios distantes do território americano. "Tamanha a comunicação entre os pesquisadores, que é possível saber, no dia seguinte, de uma descoberta feita lá fora", afirma Lent, que fez doutoramento no conceituado Massachusetts Institute of Technology (MIT), com o qual há dez anos, mantém uma linha de colaboração. Um dos estudos desenvolvidos pelos cientistas cariocas é o da depressão alastrante, fenômeno descoberto pelo neurologista brasileiro Aristides Leão, ainda em 1944. "Trata-se de uma baixa elétrica global no sistema nervoso, que pode acontecer depois de uma superexcitação dos circuitos neuronais como nas epilepsias", descreve Lent. "Sabemos que isso eventualmente se relaciona com certos tipos de enxaqueca. Portanto, investigar como e por que essa depressão ocorre levará a novos tratamentos para aquelas terríveis dores de cabeça." A Medicina, sem dúvida, será a maior beneficiada com a recente efervescência dos laboratórios de Neurologia. Mas esses estudos têm ainda aplicações, visíveis no horizonte, na área de inteligência artificial. "Só conhecendo o cérebro humano é que se pode criar máquinas capazes de tomar decisões a partir de uma informação qualquer", informa Lent, que também desenvolve trabalhos de apoio aos cientistas da área de Informática da UFRJ. Nesse sentido, segundo o neurofisiologista, outra vez é mais importante investigar a intimidade das células nervosas do que insistir no mapeamento cerebral, isto é, na determinação de funções específicas para cada área do cérebro, que antes parecia ser a mania de muitos pesquisadores.
Nunca, é verdade, os cientistas reuniram tantos equipamentos para bisbilhotar o funcionamento do sistema nervoso e, conseqüentemente, para traçar mapas, indicando a participação de cada uma de suas regiões. No final dos anos 80, por exemplo, surgiu o PET, sigla em inglês para tomógrafo de emissão de pósitrons, como são chamados os elétrons com carga elétrica positiva. Esse aparelho cria a oportunidade de se observar o cérebro em plena ação: injetados na circulação, os pósitrons se chocam com os elétrons do organismo, provocando pequenas explosões que liberam raios gama. Desse modo, um detector desses raios acusa as áreas cerebrais mais irrigadas pelo sangue, logicamente, aquelas mais ativas em uma situação qualquer—quando a pessoa examinada, por exemplo, ri ou chora, dorme ou faz ginástica, faz cálculos matemáticos ou devaneia diante de um quadro.Ironicamente, novas técnicas, como o PET, mostram que o cérebro nem sempre se comporta de acordo com a expectativa. Sua estrutura é muito mais complexa do que imaginávamos", reconhece Lent. "Além disso, os mapas também podem enganar. Até há pouco tempo, acreditávamos que a linguagem dizia respeito exclusivamente ao hemisfério cerebral direito", exemplifica. "No entanto, quando ocorre uma lesão no hemisfério esquerdo, a pessoa pode continuar falando e compreender do o que ouve ou o que lê, mas deixa de exprimir suas emoções através da voz, torna-se monotonal. E o hemisfério esquerdo, portanto, que faz alguém berrar ou falar mansinho."Em vez de caçar o endereço das funções do cérebro no labirinto de sua massa cinzenta, muitos pesquisadores concentram suas atenções na possibilidade de regenerar os estragos na rede de neurônios, provocados por doenças ou traumas. "Nos anos 40, o sistema nervoso era considerado irrecuperável, isto é, uma vez lesado, danou-se", conta o neurologista Esper Cavalheiro. Chefe de um dos principais laboratórios de Neurologia Experimental do pais, o da Escola Paulista de Medicina, Cavalheiro recorda que, nos tempos de estudante, dizia-se que o papel do neurologista terminava no diagnóstico. "Isso desanimava tanto os cientistas como os investidores interessados em pesquisas", lamenta. Hoje, no entanto, Cavalheiro e seus colegas apagam da memória o velho conceito da irreversibilidade. "Caminhamos muito no sentido de reverter as lesões tanto do cérebro como do sistema nervoso periférico, ou seja, dos nervos espalhados pelo corpo", diz, com animação.A equipe de neurologistas da Escola Paulista de Medicina, por exemplo, uniu-se a pesquisadores de Biologia Molecular para criar falsos neurônios a partir de fibroblastos, células da pele envolvidas no processo de cicatrização. "Alteramos seus genes, para transformá-las em usinas de substâncias neurotransmissoras e depois as multiplicamos em meios de cultura", explica Cavalheiro. "Implantados no cérebro de cobaias, os falsos neurônios podem produzir dopamina, por exemplo, cuja escassez provoca as agruras do mal de Parkinson. A idéia é que eles acabem suprindo essa falta." A primeira etapa dessa experiência de implante tem enorme sucesso. Mas, então, o fibroblasto acostumado a se reproduzir com facilidade, para fechar rapidamente as feridas da pele, não pára de crescer. "Eles terminam se transformando em tumores cerebrais", esclarece Cavalheiro. "Mas o importante, por enquanto, é saber que somos capazes de fabricar neurônios sob medida para consertar um problema", contenta-se o pesquisador, que cogita a possibilidade de substituir os fibroblastos por neurônios retirados do sistema periférico—"como os dos nervos do intestino".
Aparentemente, o ideal seria implantar neurônios cerebrais na região lesada. "Não faz sentido, porém, criar um segundo dano no cérebro, arrancando-lhe um pedaço, para curar a primeira lesão", esclarece Cavalheiro. Para resolver o impasse, alguns países sondam a possibilidade de usar, nesses implantes, neurônios de cérebros de fetos, obtidos em abortos. Contudo, além da discussão ética, os cientistas esbarram na dificuldade de analisar o resultado dessas operações. "Até o momento, ainda não se sabe se as células fetais, uma vez implantadas, funcionam conforme o esperado ou se permanecem em um dormente estado embrionário, inabaláveis, sem provocar alterações de qualquer espécie", diz Cavalheiro com ar cauteloso.
O neurologista também se dedica à pesquisa de distúrbios, como a epilepsia, que representa cerca de 15% dos casos de doentes nervosos. "Nela é como se os neurônios, de repente, passassem a receber uma estimulação excessiva", define. "Sem compreender o novo código, eles passam sinais em alta freqüência para outros neurônios." Esse desajuste nos circuitos cerebrais pode se traduzir, enquanto dura a crise epiléptica, em movimentos involuntários, emoções como medo incontrolável ou percepção de odores inexistentes, entre inúmeros sintomas. "As causas do problema podem ser genéticas, traumáticas ou infecciosas", conta o professor. "Felizmente, hoje já se fala em neurogenética, isto é, em localizar os genes que provocam distúrbios no sistema nervoso. No futuro, quem sabe, os problemas se tornarão previsíveis, graças a exames com marcadores de DNA. Nossa meta é impedir a evolução dos distúrbios, em vez de simplesmente atenuar seus sintomas."Novos exames também buscam separar com precisão o que existe de Biologia em problemas que, antes, eram considerados puramente emocionais, como a depressão e as psicopatias. "A Psiquiatria voltou a ser Medicina, diagnosticando sintomas biológicos" opina um dos mais respeitáveis neurologistas brasileiros, César Timo-laria, professor da Universidade de São Paulo. Há mais de 25 anos, ele persegue no sistema nervoso pistas sobre a fisiologia do sono e da vigília e sobre o controle do metabolismo. "Ultimamente, examinamos as alterações do fluxo sangüíneo durante o alerta", conta Timo-Iaria. Segundo o neurologista, um dos sinais de que a pessoa está em alerta é o potencial elétrico da superfície cerebral ou córtex, que reduz a voltagem e aumenta a freqüência. Outro sinal é o diâmetro pupilar. "Embora ninguém consiga perceber a olho nu, a pupila vive oscilando conforme o grau de atenção", explica Timo-Iaria. "Durante uma conversação, ela se dilatará quando o assunto despertar maior interesse". exemplifica, sem abandonar o estilo didático. "Também existem alterações na circulação do sangue pelo cérebro, que é maior naquelas regiões que estão sendo mais solicitadas. Se estou olhando com atenção para algo, então irá mais sangue para as áreas do córtex relacionadas com a visão."De acordo com Timo-Iaria, o grande desafio desse estudo é o fato do alerta variar a todo instante. "Afinal. as pessoas estão sempre pensando. Mesmo aqueles faquires que fazem o diabo para relaxar a mente. na realidade só pensam em não pensar", brinca com as palavras o professor, orgulhoso de conhecer como poucos a língua portuguesa, aliás, sua segunda paixão, depois da Medicina. Prestar atenção, por fim, acelera o coração. Faz sentido. Para atender à demanda de sangue do cérebro, cujos neurônios em determinadas regiões foram subitamente ativados, ocorre uma dilatação dos vasos que conduzem o fluxo à cabeça. "Isso poderia acarretar uma queda brusca da pressão. Mas ocorre o contrário, pois o músculo cardíaco, para compensar, se contrai mais rápido e com mais vigor. No final, a pressão aumenta", descreve. César Timo-Iaria é aquele tipo de pessoa que nunca começa uma história sem ter um objetivo: "Qualquer fenômeno do sistema nervoso mobiliza outros sistemas do organismo", conclui.
Em suas investigações sobre o sono, ele recentemente passou a se concentrar nos sonhos de ratos—"mas pretendo, em breve, passar para gatos, animais que parecem ter nascido para a pesquisa do sistema nervoso", revela. Segundo o professor, os sonhos não provocam somente alterações nas ondas cerebrais, mas em todo o sistema nervoso, com manifestações corporais diversas. "Se alguém sonha que está seguindo uma pessoa, os olhos se movem; se sonha que escuta uma voz, os nervos do ouvido emitem sinais", garante. "Como o olfato é um sentido muito importante para os ratos, nesses animais nós registramos movimentos do focinho." Ao examinar a atividade elétrica da região cerebral do hipocampo, o neurologista flagra o instante em que o rato começa a sonhar. Outra indicação do sonho: "É a única fase do dia em que a musculatura fica completamente relaxada".
O mais interessante, porém, é que a expressão corporal do sonho costuma aparecer de meio a 2 segundos depois de seu início. "É mais ou menos o que, supõe-se, hoje, acontece na vigília. Há indícios biológicos de que uma pessoa só tem consciência de um ato ou pensamento—seja lá o que for— cerca de meio segundo após seu cérebro ter deliberado o que ela irá fazer ou idealizar." Por enquanto, porém, os melhores cérebros que se dedicam ao sistema nervoso pouco conhecem sobre esses mecanismos aquém da razão, a vala comum onde estão os desejos, os instintos, os sentimentos e, de acordo com essa teoria, também os pensamentos mais lógicos. Resta intuir se, daqui ao final da década, eles terão concluído algum raciocínio.
A estrutura mais complexa do Universo
O que se sabe sobre o emaranhado de 100 bilhões de células do cérebro humano.O cérebro humano vale muito mais do que o cerca de 1.3 quilo que pesa: se pudesse ser esticado, seria o maior entre todas as espécies, pois sua superfície cor de chumbo, o córtex, esconde nas reentrâncias nada menos de 9 décimos de sua área. Ali, no córtex, está sediada a maioria dos neurônios, células com milhares de prolongamentos, feito galhos —os dendritos, por onde chegam as informações das outras células nervosas. Na verdade, cada um dos 100 bilhões de neurônios cerebrais está ligado a 10 000 outros, aproximadamente, o que significa que ele pode receber 10 000 mensagens ao mesmo tempo. Ao processar esse colossal número de dados, o neurônio chega a uma única conclusão, que envia por uma saída exclusiva—um prolongamento chamado axônio.Um neurônio, porém, jamais encosta em outro e a informação salta no vazio graças a proteínas sintetizadas pelas próprias células nervosas: os neurotransmissores. "Hoje em dia, conhecem-se mais de 100 dessas substâncias", contabiliza o neurologista Esper Cavalheiro, da Escola Paulista de Medicina. "O mais interessante é que, cada uma delas, parece ter diversas funções no cérebro." É uma questão espacial, ou seja, de acordo com o pedaço da molécula que se encaixa em um receptor, na membrana de outro neurônio, o neurotransmissor provocará determinada reação. "Os cientistas, com freqüência, encontram novos receptores nas células cerebrais, indicando funções diferentes para neurotransmissores, cuja molécula, muitas vezes, já conheciam havia bastante tempo."
O atalho das emoções
Cientistas da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, há apenas seis meses, derrubaram a teoria de que as emoções são percebidas exclusivamente na área cerebral do hipocampo. Segundo eles, amor e ódio podem ser disparados por outra região, a amídala, que fica nas proximidades do tálamo, a área que coleta os sinais sensoriais. Quando se reconhece o rosto de alguém. a amídala pode adicionar o registro de que você decididamente não gosta daquela pessoa. Esse acréscimo não passa pelo córtex, ou seja, não se toma consciência da emoção—a repulsa pelo outro, no caso do exemplo, é instintiva.Trata-se de um atalho neurológico: de acordo com os cientistas, que analisaram os dados do encefalograma de voluntários com a ajuda de um computador, à reação emocional da amídala economiza 40 milissegundos em relação à reação do hipocampo. Pode parecer uma fração insignificante de tempo, mas os pesquisadores desconfiam que esse intervalo ínfimo faz a maior diferença. Assim, o tálamo pode receber uma imagem, captada pelos olhos, que o hipocampo identifica como uma corda retorcida—mas, um instante antes de isso acontecer. a amídala la já teria acionado o reflexo do pulo. desencadeado pelo medo de aquela corda ser uma cobra.
CÉREBRO, EIS O QUE VOCÊ É
Suas recordações de 1995 e seus planos para 1996, seus pensamentos mais lógicos e seus sonhos mais absurdos, seu talento para certas coisas e sua total inabilidade para outras, suas paixões, até seu jeito de falar e caminhar, tudo é pura química. São apenas substâncias diferentes que saltam de uma célula cerebral para outra, provocando correntes de eletricidade. Agora os cientistas começam a entender como essas mensageiras nervosas moldam a personalidade.
Por: Lúcia Helena de Oliveira, de San Diego
Uma dinamite explodiu por acidente durante a construção da ferrovia de Vermont, Estados Unidos, em 1848. O estouro projetou uma barra de ferro com tanta força que ela atravessou a bochecha de um dos operários, saindo pelo topo da cabeça. A vítima de 25 anos, Phineas Gage, sobreviveu. Mais do que isso, não sofreu nenhuma seqüela física, não perdeu a memória, não ficou com a inteligência alterada. Só que, em vez de continuar sendo um homem ponderado, passou a agir sem pensar nas conseqüências. Coisas que gostava de fazer, como ficar entre amigos, ele passou a odiar. Por mais de um século esse acidente raro foi considerado um enigma médico e quebrou também a cabeça dos cientistas. Recentemente é que eles começaram a entender o motivo da mudança: a personalidade de um indivíduo tem uma moradia, que fica logo atrás de sua testa. É o lobo frontal do cérebro, justamente a região danificada pela barra arremessada.
Esse e outros endereços cerebrais só foram bem localizados nos últimos cinco anos, graças a técnicas que mostram o cérebro com impressionante nitidez. Assim, comparando as imagens de pacientes com alterações de personalidade, os pesquisadores notaram que esse problema sempre tem a ver com lesões na mesma área machucada em Phineas Gage. "Começamos a entender o papel de cada região do sistema nervoso", comemora a médica Carla Shatz, que presidiu o 25º Encontro Anual da Sociedade Americana de Neurociências.
Mais de 20 000 pesquisadores do mundo inteiro participaram do evento em novembro do ano passado, em San Diego, na Califórnia, marcando a metade de um gigantesco desafio. Em julho de 1989, o então presidente dos Estados Unidos George Bush assinou um decreto designando os anos 90 como a década do cérebro. A investigação do sistema nervoso passou a ser o principal foco de investimentos em saúde naquele país. E isso acabou se refletindo em laboratórios de vários cantos do planeta.
"Resta saber como as regiões da massa cinzenta influenciam umas às outras", diz Carla Shatz. Quando se retira quase metade do cérebro de uma criança por causa de doenças, o restante pode aprender o trabalho do pedaço extraído. Até os dez anos de idade, qualquer neurônio é um bom aprendiz, ligando-se a neurônios vizinhos para adquirir outras funções. Quanto mais jovem é alguém, maior a plasticidade dessas células – sua capacidade de criar conexões, que sào a base das habilidades e da personalidade. Mas isso ainda não justifica a fantástica recuperação das crianças: de onde vêm as instruções para as tarefas, se as áreas que as realizavam não estão mais lá?
Um avanço foi demonstrar que "as experiências infantis ajudariam a esculpir a mente, mudando a organização dos neurônios", segundo Ned Kalin, da Universidade de Wisconsin. Sua equipe separou filhotes de macacos de suas mães para provocar estresse nos recém-nascidos. Adultos, os ex-macaquinhos estressados se tornaram animais irritadiços. "Com seres humanos não deve ser diferente", supõe Kalin. "O que acontece com um bebê pode mexer para sempre com o seu humor no cérebro."
Quem não comunica se trumbica
O cérebro mole e pesa cerca 1,3 quilo. Por meio de um microscópio eletrônico, é possível ver que ele parece um emaranhado de fios — os prolongamentos de seus 100 bilhões de neurônios. Estudos recentes mostram que eles são capazes de se multiplicar 250 mil vezes por minuto nos dois primeiros meses de gestação. Mas provavelmente metade morre antes de o bebê nascer, como se apenas os mais sociáveis, aqueles que se comunicam direito, pudessem seguir em frente.
"Durante muito tempo, a gente se preocupou em observar como os prolongamentos dos neurônios cresciam para formar sinapses, isto é, para encontrar outros neurônios que muitas vezes estavam a centímetros de distância", conta a pesquisadora Story Landis, do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos, nos Estados Unidos. "É fascinante que durante o desenvolvimento do sistema nervoso uma célula ‘saiba’ em que direção estão as destinatárias de suas mensagens", diz a cientista que, no entanto, já não considera isso o mais importante. "OK, dois neurônios esticaram seus prolongamentos no rumo certo até se encontrarem, mas a partir daí como decidem em que língua irão conversar?", pergunta.
A linguagem das células nervosas são moléculas chamadas neurotransmissores. De um lado, o neurônio transmissor deve começar a fabricá-las escolhendo entre mais de cinqüenta tipos. E, de outro, o neurônio interlocutor deve criar receptores para encaixá-las perfeitamente em sua membrana. "Se esse acordo inicial não for bem feito, há muita chance de problemas — emocionais, de memória, de raciocínio", afirma Dennis O’Leary, do Instituto Salk, em San Diego. "Embora possam parecer coisas bem diferentes, todos esses processos não passam de um bate-papo entrosado, em que não faltam nem sobram neurotransmissores."
Os traumas marcam os neurônios
Muitas vezes, quando a cabeça da gente não vai lá muito bem, não faltam moléculas mensageiras e, sim, receptores para elas. Tanto um problema como o outro, no início, eram atribuídos a defeitos nos genes. Esse ano, na conferência de San Diego, os cientistas constataram que nem sempre é assim. Em muitos casos, os genes fizeram seu serviço direito e o cérebro nasce de bem com a vida. Mas depois as coisas saem dos eixos. Em ratos, ao menos, o estresse constante causa danos em duas estruturas cerebrais envolvidas com a emoção — a amígdala cerebral e o hipotálamo. Coincidência ou não, os ratos com lesões são muito mais medrosos, de acordo com pesquisadores da Universidade de Wisconsin.
"A mesma substância associada ao estresse dos ratos — um hormônio chamado CRF produzido pelo próprio cérebro — é mais encontrada no organismo de quem passou por fortes experiências traumáticas: estupros, assaltos e catástrofes como terremotos", afirma o médico americano Charles Nemeroff, da Universidade Emory. Ele e seus colegas passaram o último ano examinando vítimas desses episódios traumáticos com ressonância magnética. E notaram que elas apresentam a glândula hipófise ligeiramente maior do que a média da população, enquanto o hipocampo costuma ser menor. "Vários estudos indicam que o estresse psicológico intenso produz alterações sem volta", diz à SUPER Dennis Charney, da Universidade Yale, nos Estados Unidos. "O que antes seria razão apenas para melancolia passa a ser motivo de uma profunda depressão, por causa dessas alterações. A tendência em Medicina é assumir que a maioria das vítimas de traumas vai precisar tomar remédio para sempre, como um diabético necessita de insulina".
Cobaia vira fera
Sem dúvida, a mais badalada substância ligada aos sentimentos é a serotonina. Seu nome já aparecia quando o assunto era tristeza. Agora, ela está sendo acusada de ser a responsável por todo tipo de comportamento agressivo. "Na verdade, é a falta dessa molécula que está sendo associada à violência", esclarece Frederick Moeller, professor da Universidade do Texas que submeteu um bando de ratinhos a uma dieta pobre em triptofano — proteína sem a qual o cérebro não consegue fabricar esse neurotransmissor. E, nessas condições, as cobaias ficaram umas feras.
Outro pesquisador americano, David Goldman, do Instituto Nacional de Saúde Mental, descobriu um defeito genético em determinados receptores de serotonina. "Em tese, se o paciente tem o defeito, a molécula não age direito e o comportamento agressivo tende a aumentar", diz Coleman, que estudou 81 alcoólatras violentos na Finlândia. Em três deles, o gene do receptor era anormal.
Sentimentos alteram o pensamento
Se o cotidiano pode mudar nossa maneira de sentir, a recíproca é verdadeira: os sentimentos alteram o raciocínio e a percepção do dia-a-dia. Pesquisadores do Instituto Weizmann, em Rehovot, Israel, provaram que as emoções fazem a gente ver o mundo de um jeito diferente. "Voluntários tinham que descrever fotografias, enquanto monitorávamos a área cerebral da visão", diz à SUPER Armando Arieli, chefe da equipe. "Antes, fizemos entrevistas para saber se tinham alguma preocupação ou se estavam ansiosos mesmo que fosse por um motivo positivo. E, de cara, podíamos prever um padrão para as ondas cerebrais", conta. Isso porque os exames apontam que existe um gráfico das ondas típico para cada estado de espírito.
Cabeça na lua
Os cientistas já sabem, por exemplo, que a alegria muitas vezes dificulta as coisas. Imagens de ressonância magnética mostram que as áreas ligadas a cálculos e raciocínio lógico podem funcionar devagar quase parando se as células nervosas estão banhadas de endorfinas e outras substâncias conectadas ao contentamento — é a tal impressão de estar com a cabeça no mundo da lua.
Mas há uma área cerebral que nunca trabalha menos: é o tálamo. Ele agora é considerado um órgão fundamental para a sensação de ter consciência – a noção de que você sabe quem é, o que faz e o que pensa a cada instante. O tálamo funciona como um radar, captando todas as informações ao redor. Só que a gente não tem consciência de tudo. Os dados despercebidos podem estar arquivados em algum local ainda indefinido — o inconsciente. Mas também existe a suspeita de que muita coisa é mesmo jogada fora.
Nesse sentido, cientistas da Universidade de Dusseldorf, na Alemanha, liderados por Joseph Huston, fizeram uma descoberta: ao se destruir um pequeno grupo de neurônios de ratos, os bichos ficam mais espertos e aprendem mais depressa. Como poderia uma lesão causar algum benefício? "As células eliminadas são justamente as produtoras de histamina. Talvez essa substância seja uma espécie de cadeado impedindo que o cérebro guarde tudo o que vê, ouve ou sente", explica o professor Huston.
Ligada aos processos alérgicos, a função da histamina já era bastante conhecida no resto do corpo. O que ninguém sabia é o que ela estaria fazendo em pleno sistema nervoso, no qual foi flagrada há três anos. A experiência de Dusseldorf pode ser a explicação: "Provavelmente seu papel é protetor, deixando que um indivíduo memorize apenas o que é essencial ou do seu interesse."
Andar de bicicleta
Outra revelação é a do papel do cerebelo no raciocínio. Essa estrutura com jeito de concha, próxima da nuca, era conhecida por comandar gestos automáticos como um piscar de olhos. Mas parece que o cerebelo também participa do aprendizado. "Dentro dele, existem células especializadas em memorizar movimentos", garante o professor William H. Tach, da Universidade de Washington. "É ele o responsável por aquela história de que aprendemos a andar de bicicleta uma vez e depois nunca esquecemos."
A experiência da pesquisadora Julie Fiez, também da Universidade de Washington, é mais impressionante Ela pediu que pacientes com danos no cerebelo realizassem a seguinte tarefa: ao ouvirem um verbo como chutar os voluntários tinham que associá-lo a um substantivo, como pé ou chuteira."Em pessoas normais as respostas são cada vez mais rápidas, pois elas logo se acostumam com a tarefa", conta Julie. "Mas com o cerebelo afetado, parece não haver melhora. Ou seja, a estrutura deve ser fundamental para se automatizar qualquer coisa, como as regras de um jogo, e não apenas memorizar os movimentos."
Doença mental pode ser prevenida
Todo o interesse em ver como o cérebro funciona é para aprender por que muitas vezes ele não funciona bem. Está aí a intenção prática da década do cérebro. Existem em torno de
1 000 distúrbios mentais conhecidos — de depressão à esquizofrenia, passando por dificuldades diversas de aprendizado. Em cada cinco habitantes do planeta, um já teve ou tem algum desses problemas, cujo tratamento custa muito dinheiro e pode ser ineficiente, uma vez que tudo ainda carrega certa aura de mistério.
Hoje os cientistas procuram, por exemplo, moléculas que fixam lições de casa. Claro, não servirão de remédio para crianças normais, mas para aquelas com grandes dificuldades em gravar idéias na mente. Uma droga assim poderá ser testada antes do final desta década em homenagem ao sistema nervoso.
Estresse atrapalha a memória
A ciência também pretende frear o envelhecimento cerebral. Nos últimos cinco anos descobriu-se muita coisa sobre a perda de memória que aparece em menor ou maior grau na terceira idade. Não há mais duvida: os hormônios despejados no corpo durante o estresse do dia-a-dia vão estragando aos poucos o hipocampo. E daí essa região ligada à fixação das lembranças já chega à idade madura bastante estropiada. "Assim como os cardiologistas ensinaram os jovens a comer menos gorduras para evitar infartos no futuro", diz a neurologista americana Carla Shatz, "nós vamos mostrar que uma juventude menos estressada é fundamental para manter o cérebro saudável na velhice." Além disso, os pesquisadores estão investigando moléculas que os neurônios secretam durante o sono para arquivar novas memórias. Se forem reproduzidas em laboratório, surgirão remédios capazes de acabar com as dificuldades de lembrar.
A área de pesquisa mais obscura ainda é a da esquizofrenia, doença em que o paciente tem bruscas alterações de humor, não consegue formular pensamentos com lógica e, freqüentemente, sofre alucinações. Só agora seus mecanismos começam a ser esboçados pela ciência. Estudos indicam que os esquizofrênicos têm uma atividade exagerada em certas áreas cerebrais, como a frontal. "Até agora os médicos apenas vinham presumindo pelos sintomas que o paciente era ou não um esquizofrênico", conta a psiquiatra Carol Tamminga, do Centro de Psiquiatria de Maryland, nos Estados Unidos.
Volta ao normal
A médica está animada com as imagens desordenadas do cérebro esquizofrênico. "Se a gente entender o que essa doença tem de diferente em relação ao padrão normal, vamos fazer diagnósticos mais objetivos", especula Tamminga. "O mais importante, porém, será o trabalho de prevenção, pois poderemos detectar e tratar gente com o problema antes de as crises aparecerem."
Uma em cada cem pessoas sofre de esquizofrenia — e em 89% dos casos os sintomas aparecem entre os 15 e 25 anos de idade. "Antigamente, essa gente era rotulada de louca. Hoje seu problema é comparado à hipertensão, ou seja, a um distúrbio que, em tese, pode ser corrigido com medicamentos", diz a médica. Até o momento, as drogas mais eficientes em testes são aquelas que se encaixam nos receptores do neurotransmissor dopamina, impedindo que ele aja. "Não tenho dúvida que a dopamina está envolvida nesse processo", diz o psiquiatra inglês Raymond Dolan, do Instituto de Neurologia de Londres. "A questão é que, como em muitos distúrbios mentais, devem existir vários fatores envolvidos. E estamos apenas começando a trajetória para decifrá-los. Será uma década sem fim."
Como a gente fala e os pássaros cantam
Estudos indicam que a fala humana e o canto dos pássaros se desenvolvem de um jeito parecido
O passarinho recém-nascido pode aprender o canto típico de seus pais. Mas se entrar em contato com outra espécie, também aprenderá o jeito de cantar estranho. A princípio, o ser humano recém-nascido também pode gravar perfeitamente sons de qualquer língua.
Mais tarde, os filhotes de aves ficam desconfiados quando ouvem sons diferentes e tendem a só prestar atenção no canto da sua espécie. O cérebro da criança também passa a só gravar sons mais comuns — justamente os sons da sua língua.
Pássaros e crianças, na etapa seguinte, repetem os sons dos adultos. Isso marcará o cérebro de ambos para sempre, criando conexões de neurônios. A criança, ao se tornar adulta, jamais perderá o sotaque de sua língua de origem. Experiências em que os cientistas tentaram ensinar cantos estranhos para pássaros maduros mostraram que, quando eles conseguem aprender, o "sotaque" estrangeiro também é inevitável.
O retrato nítido da esquizofrenia
Só a partir de 1993 é que os cientistas começaram a ver o sistema nervoso em plena ação. Agora surgem imagens impressionantes, como a das alucinações
Com as idéias no lugar certo
Esta é a imagem do cérebro de um indivíduo normal. As áreas amarelas são as que estão recebendo mais sangue — portanto as que estão ativadas. Geralmente, as pessoas têm esse padrão.
Com tudo em desordem
Este é um cérebro com alucinações. Embora o exame tenha sido feito em um ambiente silencioso, as áreas da audição, nas laterais, estão mais ativadas do que o normal — isso indica que o paciente está ouvindo vozes que não existem.
O que esperar para o ano 2 000
Até o final da década, os pesquisadores prometem muitas novidades no tratamento de doenças:
Derrame
No derrame, além da afetada pelo vazamento de sangue, os neurônios nas vizinhanças do acidente se suicidam, aumentando os estragos. Mas drogas para evitar o suicídio celular, diminuindo as seqüelas, serão testadas este ano.
Alzheimer
As manchas escuras abaixo são áreas em que os neurônios degeneraram por causa do Mal de Alzheimer, que destrói rapidamente o raciocínio — efeito nefasto que será retardado em cinco anos com novos remédios em testes.
Epilepsia
Uma espécie de marca-passo poderá ser implantado no cérebro para normalizar as transmissões nervosas ao menor sinal de alterações. Isso evitará os ataques epilépticos.
Vícios
Devem surgir moléculas criadas em laboratório que se encaixam no mesmo lugar do álcool ou da cocaína nos neurônios, curando a dependência, sem sofrimento para o viciado.
O controle de todo o corpo
Direta ou indiretamente, o cérebro comanda o funcionamento de todos os órgãos do corpo, por meio de hormônios ou de sinais nervosos. Se não faz isso direito, surgem doenças.
Parecidas com sementes, oito pequenas estruturas de nome complicado — órgãos circunventriculares — controlam todos os cantos do corpo. Uma delas, a mais próxima da nuca, conhecida por área postrema, passou a ser muito estudada. Não é à toa: ela controla a pressão do sangue nas artérias. O tempo todo, seus sensores estão analisando a quantidade de certas substâncias no sangue. Conforme o que encontram, os sensores disparam sinais. "É possível que várias doenças tenham de ser tratadas diretamente no cérebro", diz Alan Kim Johnson, da Universidade do Iwoa, nos Estados Unidos. A pressão, então, deveria ser regulada com drogas que atuem na área postrema.
Para cima
Quando moléculas de um hormônio chamado angiotensina se encaixa nas células da estrutura cerebral, elas logo disparam uma ordem para as paredes de cada vaso sangüíneo do corpo se contrair, aumentando a pressão.
Para baixo
Por sua vez, quando a pequena estrutura percebe que existem muitas moléculas de vasopressina no sangue — outra substância que faz a pressão aumentar — ela envia uma ordem para os vasos sangüíneos relaxarem. Assim, se tudo vai bem no cérebro, a pressão de um indivíduo nunca está alta nem baixa demais.
LEMBRE-SE: RECORDAR É VIVER
A massa de informações que a memória humana grava equivale a 20 bilhões de livros. Mas é preciso que um fato mexa com as emoções para ser encontrado depois com facilidade nesse fantástico arquivo do cérebro.
Por: Lúcia Helena de Oliveira
Já pensou se, cada vez que fosse assinar o nome, você tivesse de recordar as primeiras letras, aprendidas na infância? Pois é exatamente isso que acontece, embora não se perceba: escrever é como pressionar no cérebro a mesma tecla da cartilha do curso primário, desenhar novamente as palavras do jeito que a professora ensinou. A rigor, fazer qualquer coisa—qualquer coisa mesmo—é voltar inconscientemente à primeira experiência de aprendizado. A memória está presente em tudo. Graças a ela somos capazes não só de fazer algo como também de relacionar as coisas entre si, de estabelecer toda sorte de associações, sem as quais a própria sobrevivência seria impossível. Todos nós, enfim, vivemos de recordações.
O dia de sol evoca a praia, o céu cinzento adverte que pode chover, a música reanima um antigo sentimento. Dito desse modo, é como se os responsáveis pelas lembranças—ou pelas memorizações — sempre estivessem fora da pessoa, no sol, no céu, no som, por exemplo. Faz sentido: a memória é uma interação entre o ambiente e o organismo. Essa interação altera o sistema nervoso de tal modo que lhe permite reviver uma experiência. Naturalmente, todos os sentidos—tato, paladar, olfato, audição e visão—são instrumentos da memória. Mas a sede das lembranças é uma massa gelatinosa, com cerca de 1 quilo e meio que mal se acomodaria na palma da mão. Ou seja, o cérebro.
Comparáveis ao número de estreIas na Via Láctea, existem no cérebro 100 bilhões de neurônios, acinzentadas células nervosas com centésimos de milímetro de diâmetro, que possuem prolongamentos, chamados axônios.
Aparentemente, o cérebro é revestido por uma camada cinza, o córtex, que deve sua cor ao fato de ser formado quase só por corpos de neurônios. Dentro está a chamada substância branca. Trata-se de uma rede de axônios, feito fios encapados. O revestimento é a mielina, componente químico que lhe confere a cor clara.
Neurônios e axônios formam conexões: não chegam propriamente a se tocar, mas se aproximam tanto, que basta um neurônio liberar a substância química chamada neurotransmissor para que outro neurônio a capte e se estabeleça a comunicação entre eles. Calcula-se que no cérebro humano existam 100 trilhões dessas conexões. Chamadas sinapses. Um pensamento, por mais simples que seja, ativa centenas de sinapses. A capacidade de memorizar que todas as sinapses dão ao homem é incrível: aproximadamente 1014 bits (unidades de informação), ou o número 1 seguido de catorze zeros. Esse oceano de bits daria para escrever 20 bilhões de livros. Difícil é imaginar que cada um de nós carrega essa megabiblioteca na cabeça.
Já se nasce sabendo. É o que os cientistas chamam de memória biológica do cérebro, herdada geneticamente, que tem a ver com o instinto de sobrevivência de cada indivíduo de uma espécie. Assim, não se precisa ensinar o recém-nascido a mamar. O bebê também já nasce com todo o potencial para arquivar o que for aprendendo pela vida afora e formar, dessa maneira, a memória cerebral— que é, aliás, 10 mil vezes mais ampla que a memória dos genes das células do organismo.
Recentemente, cientistas italianos levantaram a hipótese de que a potencialidade da memória cerebral é hereditária. Eles fizeram uma experiência muito sugestiva: cruzaram ratos de laboratório dotados de boa capacidade de memorização; verificaram depois que a geração seguinte de ratinhos se distinguia pela facilidade com que aprendia a buscar comida num labirinto, em comparação com filhotes de outros ratos. Mas nada prova por enquanto que filhos de pais com boa memória também nasçam com boa memória.
Mas onde será que a memória se localiza? Todas as partes do cérebro são capazes de armazenar memórias; mas isso não impede que existam vagas demarcadas especialmente para certos tipos de memória. O grande desacordo entre os cientistas diz respeito a outra questão: os mecanismos que o cérebro usa para gravar os eventos. São duas correntes: de um lado a dos que acham que são as sinapses (conexões entre os neurônios) as responsáveis pela memorização, de outro, a dos que acreditam que a chave da memória está na síntese de proteínas feita pelo cérebro. "A explicação mais lógica é que a cada evento o cérebro ou forma novas sinapses ou amplia a área de contato nas sinapses já existentes", raciocina o neurologista Paulo Bertolucci, da Escola Paulista de Medicina.
Ele dá um exemplo: "Quando me lembro de que fui a um baile, ativo várias sinapses, uma para cada detalhe: o lugar, a cor do vestido da moça com quem dancei, as pessoas presentes etc. Com o passar do tempo, a não ser que esteja sempre me recordando da festa e mantendo as sinapses em atividade, como correntes elétricas, elas irão se desfazendo. Eis por que a gente se lembra minuciosamente do que aconteceu no dia anterior e depois os detalhes vão fugindo. Na verdade, são as sinapses que estão se desativando aos poucos".
"A idéia de novas sinapses é absurda", contesta o neurologista João Radvany, do Hospital Albert Einstein de São Paulo, ferrenho partidário da síntese de proteínas. "As pessoas não formam sinapses após a adolescência." A teoria da síntese de proteínas sugere que a memória é transmissível. Na década de 60, cientistas americanos ensinaram um rato a ter medo do escuro: quando ele entrava num quarto sem luz, onde sabia estar a comida, levava um choque elétrico. Depois de um certo número de descargas, o animal associou a dor à ausência de luz.
Os cientistas — por incrível que pareça—liquefizeram então o cérebro do ratinho condicionado a temer a treva e injetaram o líquido obtido em outro rato. Resultado: este passou a manifestar sintomas de pânico do escuro. O problema é que nunca se conseguiu repetir essa experiência. "Todos sabem que se inibirmos a produção de proteínas pelo cérebro, um animal de laboratório perderá a capacidade de aprender", observa Radvany. Os neurologistas — seja qual for sua opinião sobre o papel de sinapses e proteínas—dividem a memória em três tipos.
A imediata é aquela que entra em ação quando se acha um número na lista telefônica: ela é eterna enquanto dura; o problema é que dura pouquíssimo. Se, por exemplo, a pessoa que acabou de localizar o número desejado no catálogo ouvir um ruído intenso antes de começar a discar, é bem possível que o número Ihe fuja, porque a memória imediata, de tão frágil, não resiste a interferências. Elas interrompem a sinapse ou a síntese (conforme a teoria).
O segundo tipo, a memória evocativa, menos sujeita a esses percalços, dura de algumas horas a alguns dias. Frustrada pelo primeiro esquecimento, a pessoa volta à lista, dessa vez com a firme intenção de decorar o número. A concentração necessária — mesmo quando inconsciente — transporta a informação da memória imediata para a evocativa. Enfim existe a memória de longo prazo, que pode durar a vida inteira. Se houver um motivo muito forte, o número daquele telefone não sumirá jamais.
Normalmente, o esquecimento é um recurso do cérebro para não ficar entulhado de informações inúteis. Trata- se, portanto, de uma limpeza de arquivos. Ocorre que nem sempre —alguns diriam, raramente—os critérios dessa seleção do que deve ser guardado passam pelo racional. Se já não bastassem as teorias de Freud e a prática da psicanálise, a experiência pessoal de cada um demonstra que aquilo que mexe com as emoções fica guardado no cérebro por mais tempo e com uma riqueza maior de detalhes. Ficar guardado não quer dizer necessariamente que se consiga evocar certas memórias com facilidade. Ao contrário: lembranças associadas a emoções básicas ou poderosas demais tendem a permanecer bloqueadas.
A terapia analítica busca desbloquear tais fatos, que seriam a causa oculta de neuroses e outros distúrbios de personalidade. Os neurologistas, de seu lado, já descobriram que os sentimentos influem na formação de neurotransmissores. "Parece que nada melhor do que uma novidade para ajudar a memorizar algo", revela Esper Cavalheiro, do Laboratório de Neurologia Experimental da Escola Paulista de Medicina. Trabalhos com animais têm demonstrado que o cérebro reage à novidade liberando a substância endorfina, um eficiente fixador de memórias.
"Algo semelhante deve acontecer aos seres humanos", imagina Cavalheiro. Se isso é verdade, após estudar para uma prova, um aluno bem que poderia fazer em seguida algo novo, como andar de roda- gigante, caso nunca tenha feito isso. Provavelmente, Ihe será mais fácil recordar a matéria na hora do exame. Com animais, pelo menos, essas coisas funcionam.
Emoções demais, porém, podem ser prejudiciais. Quem será que nunca sentiu um "branco" num momento de nervoso? A razão é conhecida: o estresse libera grandes quantidades de hormônios, principalmente adrenalina, que atingem o cérebro e interferem na capacidade de evocar informações.
Várias pesquisas têm demonstrado que as substâncias do estresse desempenham papel importante na memorização: animais em que se injetaram aquelas substâncias em pouquíssima quantidade tinham dificuldade em memorizar; com doses maiores; alcançavam- o auge da capacidade de memorização; com grandes quantidades, porém, os animais esqueciam tudo o que haviam aprendido—exatamente como uma pessoa estressada. Tudo indica que, quando alguém se concentra para memorizar algo, está produzindo substâncias do estresse nas quantidades intermediárias, como as cobaias de boa memória.
Um dos trabalhos mais interessantes sobre a produção dos neurotransmissores que influenciam a memória foi realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pelo neurologista Ivan Izquierdo, que estuda há vinte anos os processos da memória. Izquierdo provou que existe o que chama de "dependência de estado":aquilo que um animal aprende sob estresse só será recordado em outra situação semelhante. "Talvez seja um mecanismo instintivo". supõe o professor, "pois a comparação de situações parecidas pode ajudar o animal a se sair-melhor."
Segundo especialistas, os maiores inimigos da memória são os acidentes automobilísticos—a principal causa de amnésia. "mais do que qualquer doença do sistema nervoso", garante o neurocirurgião Reynaldo Brandt, do Hospital Albert Eisntein Mas ele faz questão de deixar claro: "Aquela amnésia do cinema e de novelas de televisão, na qual a pessoa pergunta "quem sou eu?" é pura ficção. De fato, como a memória se espalha por todo o cérebro, não existe acidente que possa apagar todo o arquivo sem ser fatal. A pessoa pode se esquecer do momento do acidente, pode perder a capacidade de recordar determinadas coisas. Mas jamais se esquecerá de tudo, vagando pelas ruas.
A idade está deixando de ser associada à perda de memória, embora essa seja uma idéia tão recente que muitos especialistas ainda argumentem que, com o passar dos anos, diminui o número de neurônios. "Talvez os idosos apenas sejam mais lentos para formar sinapses"; especula o neurologista Paulo Bertolucci, de São Paulo. "A mocinha, por exemplo, precisa repetir o nome do novo namorado à avó, até que ela o guarde." O fato de pessoas idosas se lembrarem mais do passado do que de episódios recentes também tem sido explicado como uma questão de prática: a vida inteira elas ficaram com aquelas lembranças, que por isso acabam vindo à tona com mais facilidade. "Manter a memória acesa depende de usá-la sempre, o que significa atividade- mental e interesse pelo mundo", diz: Bertolucci. Nesse sentido, recordar não é só viver—é viver bem.
Não esqueça de conhecer a sua memória
O cérebro está sempre gravando tudo o que a pessoa vê, ouve, sente ou toca. Mas o que dá o foco àquilo que se grava, tornando as lembranças mais nítidas ou menos, é a concentração—cuja falta é a principal responsável pelos problemas de memória. Por isso, o primeiro passo para se avaliar a memória de alguém é testar a sua atenção: pedir, por exemplo, que conte até cem de três em três números—1, 4, 7, 10, etc. "Quem não consegue cumprir a meta não tem atenção suficiente para fixar informações'', interpreta a neuropsicóloga Cândida Pires de Camargo, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Se está tudo bem com a atenção, testa-se a capacidade de reter eventos mais remotos, com perguntas sobre fatos históricos conhecidos, enredos de filmes antigos e ainda mostrando fofos de personalidades para serem identificadas. "Finalmente. peço ao paciente que me conte fatos importantes de sua vida em ordem cronológica; depois, confiro essa ordem com seus familiares", diz Cândida. Já os testes de memória imediata ou recente, são mais específicos, conforme a modalidade— memória para números, rostos, nomes etc. "O importante é dar o estímulo uma única vez; por exemplo, mostrar um desenho e logo escondê-lo, para a pessoa reproduzir o que se lembrar dali a 5 minutos, meia hora, um dia, uma semana", descreve a neuropsicóloga.
Ela aplica um método semelhante para testar a memória verbal, pedindo que o paciente repita uma história breve, de quatro ou cinco linhas, também em prazos diferentes. É natural esquecer um ou outro detalhe. Mas se após uma semana a pessoa só se recorda de 60 por cento da história, então é preciso diagnosticar se a dificuldade é de evocação — o equivalente a buscar a ficha correta nos arquivos do cérebro—ou de fixação. Problemas de evocação costumam estar relacionados a estados de ansiedade e de depressão, que comprovadamente atrapalham o processo de trazer as lembranças à tona. Esse tipo de problema pode ser tratado com auxilio de um psicoterapeuta. "Casos em que a dificuldade é realmente de memória, quando o cérebro perde a capacidade de gravar, são raríssimos", informa Cândida. "Isso é seguramente sinal de que alguma doença orgânica está em andamento.''
O ENDEREÇO DA INTELIGÊNCIA
Cem trilhões de conexões celulares, em eterna troca de informações, tecem a estrutura mais complexa do Universo: o cérebro humano.
Por: Lúcia Helena de Oliveira
Preste atenção. Ler este pedido é possível porque os olhos traduziram a imagem de cada letra em centenas de milhares de sinais elétricos que, em linha quase reta, escorregaram até a parte de trás da massa gelatinosa abrigada na caixa do crânio. Daquela região, próxima à nuca, foram disparados outros milhares de mensagens que se esparramaram pelas laterais, encontrando na superfície rugosa da massa uma área capaz de reconhecer as letras e montar palavras. Em seguida, partiram dali, em todas as direções, ondas elétricas que, ao varrer a víscera cinzenta, encontraram o significado da frase, escondido em um canto qualquer da memória.
Compreendida, a ordem foi comparada a outras mensagens, desde relatórios sobre o organismo a informações sobre o ambiente, que chegam a todo instante ao cérebro humano - uma construção tão complexa que os melhores cérebros que se dedicaram a estudá-la concluíram, sem preocupação com a modéstia, que não existe nada igual em todo o Universo conhecido. Então, se ao cérebro que defrontou com a primeira linha deste texto nada pareceu mais importante do que o pedido de prestar atenção, se por algum motivo não brotou na memória uma forte saudade nem irrompeu no organismo uma dor de dente, é bem capaz que o sistema nervoso tenha decidido escalar mais células para interpretar a leitura, atendendo à solicitação. E, caso todo o processo tenha ocorrido, durou exatamente o tempo necessário para ler as quatro primeiras palavras do texto.
De uma célula para outra, no entanto, a informação trafega no cérebro 1 milhão de vezes mais devagar do que um sinal de computador. Apesar da desvantagem inicial, porém, o cérebro consegue reconhecer um rosto em fração de segundo; portanto, no final das contas, está um corpo à frente da Informática. A diferença é possível porque bilhões de células nervosas, os neurônios, podem trabalhar ao mesmo tempo na solução de um único problema, como identificar uma forma ou compreender uma ordem, enquanto um computador processa bovinamente, passo a passo, as informações que recebe. Só recentemente começaram experiências para fazê-los trabalhar em paralelo, como o cérebro humano.
Apenas nos últimos dez anos os cientistas começaram a desvendar para valer os mecanismos cerebrais que tornam o homem inteligente. E as últimas descobertas aconselham apagar da memória a gasta analogia do computador. Parece muito mais adequado comparar o cérebro humano a um movimentado pregão da Bolsa ou a um igualmente agitado debate estudantil em que as informações pipocam de forma desorganizada e muitas vezes prevalece quem fala mais alto. No ano passado, cientistas americanos concluíram que qualquer estímulo que chega ao cérebro não segue uma rota definida, mas percorre diversos caminhos de neurônios, e alguns vão levar a dados que nada têm a ver com a assunto tratado.
Mas sempre que determinado estímulo encontra uma espécie de eco em algum dado estocado na memória, esse circuito passa a ser mais ativado, como se gritasse alto e bom som uma pista. No final, é como se o cérebro escolhesse as pistas e, por intuição, decidisse em favor de uma resposta, mesmo que incompleta, pelos dados de que dispõe. Graças a essa maneira aparentemente desajeitada de ser inteligente, às vezes nem com muito esforço o homem resolve equações cuja solução uma calculadora de bolso daria em um zás-trás.
Em contrapartida, é essa fórmula de sempre trabalhar simultaneamente com um grande número de informações que dá à inteligência humana toda a flexibilidade, fazendo com que o homem seja capaz de reconhecer depois de muito tempo um amigo que deixou crescer a barba, ou de imaginar um passeio de gôndola sem nunca ter pisado em Veneza e, principalmente, de lidar com toda sorte de imprevistos. Para chegar a essa compreensão dos mecanismos da inteligência, os americanos criaram um computador programado de acordo com os conhecimentos que se tem sobre a anatomia cerebral, ou seja, a forma como os neurônios se distribuem. É que na geometria dessas células de 1 centésimo de milímetro de diâmetro e de seus prolongamentos pode estar o segredo de ser humano.
Cada um dos 100 bilhões de neurônios do cérebro está ligado a 10 mil outros e assim é capaz de receber 10 mil mensagens ao mesmo tempo; a partir desse colossal volume de informações, o neurônio tira uma única conclusão, a qual, por sua vez, pode ser comunicada a milhares de outras células.
Calcula-se que existam entre os neurônios nada menos de 100 trilhões de contatos, as sinapses. Junto com a câmara de pósitrons, o único aparelho que permite visualizar o cérebro em atividade, o computador simulador de neurônios é um dos recentes recursos que podem ajudar o homem a conhecer os segredos da sua inteligência. Mas devagar com o andor. "Podemos entender os mecanismos básicos. No entanto, dizer que a gente entenda tudo é um grande exagero", adverte o neurologista Esper Cavalheiro da Escola Paulista de Medicina. "Conhecemos muito melhor o cérebro do macaco do que o do homem", informa esse professor, que passa o dia no laboratório. "O chimpanzé, por exemplo, é um dos animais mais inteligentes, pois pode até aprender uma dúzia de palavras em linguagem de surdo-mudo e manter certa comunicação com seres humanos", compara. "Mas, entre o cérebro do chimpanzé e o do homem existe um abismo."
A quantidade de novos genes que o homem adquiriu na evolução, em relação aos genes de seus ancestrais primatas, é muito pequena para justificar o avanço no sistema nervoso. Esse salto para a inteligência é um dos maiores enigmas da espécie humana. "Coincidência ou não", aponta Cavalheiro, "junto com o crescimento da área ligada a funções intelectuais, aparece a linguagem, uma aquisição que permite aos homens registrar informações, de maneira que cada geração não precise reinventar a roda. Os outros animais, sem aquela parte frontal do cérebro, não deixam história."
Se pudesse ser esticado, o cérebro humano também seria o maior entre os de todas as espécies. Pois, na realidade, a sua superfície cor de chumbo, o córtex, esconde nas reentrâncias nada menos de 9 décimos de sua área. E, em matéria de cérebro, ter uma vasta superfície vale muito mais do que a víscera pesa - afinal, seu quase 1,3 quilo ( 1,350 nos homens e 1,100 nas mulheres) é metade de um cérebro de baleia colocado na balança. A importância do córtex se deve ao fato de sediar a maior parte dos neurônios, as células nervosas que deixam fluir as idéias. Tais células foram observadas pela primeira vez em 1873 pelo fisiologista italiano Camillo Golgi (1843-1926), que descreveu seus milhares de prolongamentos espalhados feito galhos: são os dendritos, a porta de entrada das mensagens enviadas por outras células; o neurônio possui ainda um único axônio, ponto de partida da informação que processa.
São esses prolongamentos revestidos de uma substância branca que cruzam o cérebro de um lado para outro, tecendo a massa branca na parte interna da víscera. O fisiologista espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852-1934) notou em 1889 que os prolongamentos dos neurônios, medindo de milésimos de milímetro até mais de 1 metro, não formam fios contínuos, feito cabos elétricos. Pois, na realidade, uma célula nervosa não encosta em outra. Uma informação salta o vazio entre um neurônio e outro graças a proteínas muito especiais, sintetizadas nas próprias células nervosas: são os neurotransmissores. Até a década de 70 se conhecia uma dúzia dessas substâncias mensageiras químicas; hoje os cientistas contabilizam mais de cinqüenta.
"Isolá-las e conhecer as suas principais propriedades é uma coisa", esclarece o neurologista Jorge Facure da Universidade de Campinas, no interior de São Paulo. "Mas ao se verem os neurônios em ação é quase impossível saber quais neurotransmissores estão sendo liberados naquele momento." Faz sentido: afinal, muitos neurônios fabricam mais de uma dessas substâncias, selecionando o momento de usá-las, a concentração e até a dose indicada, tudo conforme o sinal que pretendem transmitir. "Nos Estados Unidos", conta o médico Facure, que já trabalhou ali, "existem prédios inteiros ocupados por laboratórios dedicados exclusivamente ao estudo de neurotransmissores, tal a sua complexidade."
Há dois anos, Facure está à frente de uma equipe da Unicamp concentrada numa das mais instigantes investigações sobre o cérebro humano: trinta pesquisadores das mais diversas áreas - da Medicina à Informática, da Física à Psicologia - reúnem todos os dados ao alcance da ciência para tentar descobrir se existe alguma relação entre a mente e a matéria. Em outras palavras, a pesquisa confronta a delicada questão da possível existência de uma mente - que alguns preferem chamar alma - habitando os circuitos nervosos e controlando o funcionamento cerebral.
De fato, tão complicado como entender a inteligência é compreender por que ela se manifesta de maneira diferente de pessoa para pessoa. Ou seja, compreender por que uns são mais criativos do que outros, por que há quem goste de compor música e quem prefira escrever, como enfim a inteligência se desdobra em infinitos perfis. De acordo com os cientistas, para se tirar alguma conclusão dessa trama cerebral, o fio da meada é a comunicação entre os neurônios, cujas membranas funcionam feito uma divisória, separando cargas elétricas opostas: dentro da célula nervosa existem substâncias predominantemente negativas e, do lado de fora, encontram-se substâncias predominantemente positivas.
Um estímulo qualquer, como a visão de um retrato, subitamente inverte a situação: dentro do neurônio a eletricidade passa a ser positiva e, fora, negativa. A inversão, que dura um ínfimo milésimo de segundo, gera uma onda elétrica que percorre o neurônio de ponta a ponta. Ao alcançar o final do axônio - que se bifurca sucessivamente -, a corrente elétrica provoca uma alteração na membrana da célula. Assim, abrem-se brechas por onde escapam espécies de pacotes recheados de determinado neurotransmissor. Os pacotes logo se encaixam nos dendritos das células nervosas e ali se derretem, liberando o mensageiro químico. Este, por sua vez, provoca a inversão de carga que gera o sinal elétrico.
Para o neurônio que recebe a informação, as coisas não são tão simples. Afinal, é alcançado ao mesmo tempo por milhares de outras mensagens. "O sinal elétrico resultante não é necessariamente a soma de todos os sinais recebidos", explica Esper Cavalheiro, da Escola Paulista de Medicina, enquanto rabisca um exemplo. Segundo tal esquema, se alguém segura uma xícara de café muito quente, um neurônio pode ordenar: "larga"; um segundo neurônio, porém, passa a informação de que aquela é uma raríssima peça de porcelana chinesa. Provavelmente, a segunda mensagem irá atenuar a intensidade da primeira, de modo que a pessoa, apesar da dor, controlará o movimento da mão até pousar a xícara com cuidado sobre um móvel.
De acordo com as informações que um neurônio está habituado a receber, vai formando um comportamento. Passa a precisar de certa quantidade de energia, a produzir determinada dose de proteína, a reagir de modo específico a um estímulo. No final, um neurônio é sempre diferente de outro. Pode-se perguntar, no entanto, como o cérebro interpreta separadamente cada informação, sem confundi-las. O segredo é receber as mensagens por dendritos diferentes. Um neurônio, capaz de calcular a distância de onde veio uma mensagem, pode assim concluir qual de suas entradas ou dendritos foi usada naquela vez e, conseqüentemente, qual neurônio a está enviando.
O neurônio vai além: ao decodificar determinado sinal, sabe que a célula que o enviou está, por sua vez, sendo estimulada por tais e quais neurônios. Alguns cientistas, porém, acham que essa explicação é um tanto simplista.. Na opinião do neurofisiologista Luiz Menna-Barreto, da Universidade de São Paulo, não se pode entender o mecanismo de compreensão de mensagens quando se pensa em um único ou mesmo em poucos neurônios. "O cérebro sempre raciocina em cima de centenas de milhares de células nervosas. É muito mais adequado imaginá-lo como um jogo de batalha naval em três dimensões, onde os pontos assinalados seriam neurônios ativados", sugere Menna-Barreto. "Conforme o padrão formado por esses pontos, o cérebro entende um significado."
Existem neurônios que já nascem sabendo o que fazer: é o caso dos que controlam o ritmo cardíaco, feito marca-passos, disparando constantemente ondas elétricas em uma freqüência predeterminada. Outros, porém, surgem como folhas em branco, mas, à medida que um estímulo chega ali pela primeira vez, fica gravado para sempre de alguma maneira ainda não muito clara para os cientistas. Ou seja, aquele neurônio ativado passará a gerar regularmente a onda elétrica desencadeada pelo estímulo, que pode até já ter desaparecido.
Do mesmo modo, na batalha naval imaginada por Menna-Barreto, existem padrões inatos de comportamento cerebral, como os do sono. Mas outros padrões são criados pela experiência. Isso é possível graças à mais fantástica característica do cérebro humano: a plasticidade. Pode-se visualizar as ligações entre os neurônios como caminhos, a maior parte deles criados na infância. No decorrer da vida, o cérebro deixa de lado na memória as ruas por onde transitam poucas informações. Em compensação, rasga novas estradas e abre avenidas nas áreas por onde passam muitos estímulos nervosos. Isto é, faz crescer novos prolongamentos unindo mais neurônios ou aumenta as áreas de contato, as sinapses, já existentes entre as células.
"Quanto mais sinapses, mais recursos de informações", resume o neurologista Saul Cypel, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. "Logo, mais inteligente ou criativo aquele cérebro tende a ser." Segundo ele, a existência de mais sinapses em determinadas áreas cerebrais justificaria uma facilidade maior para lidar com um assunto do que com outro. "Alguém que cresceu ouvindo música", exemplifica, "provavelmente desenvolveu muitas sinapses na área do cérebro responsável por esse tipo de percepção. Daí, tende a ter talento para a música." Se a habilidade pode ser, fisiologicamente, questão de prática, não se pode esquecer de outro ingrediente fundamental à plasticidade das células nervosas: a emoção, algo que em neurologuês pode ser descrito como um mero conjunto de reações químicas na massa cinzenta.
O sistema nervoso tende a formar as tão importantes conexões entre as suas células ali onde existe uma dose concentrada de afeto. A percepção auditiva dos pais é um exemplo claro: o menor choramingo do filho explode, na calada da noite, como efeito despertador de uma turbina de Boeing. Isso porque a emoção fixa as sinapses: assim, toda informação relacionada àquela criança merece atenção do cérebro. Na realidade, a emoção está em jogo mesmo nas atividades mais banais do dia-a-dia. Toda vez que se lê um texto, os trechos mais marcantes, agradáveis ou desagradáveis, ganham mais sinapses no cérebro. É o afeto que ajuda a determinar a importância e a permanência de um registro na memória. Mas, de qualquer maneira, toda informação nova é gravada nos neurônios e forma sinais elétricos, que de seu lado inauguram diferentes caminhos de axônios para compreendê-la. Em suma, ninguém é exatamente o mesmo após ler uma matéria como esta.
Eis o que você é
Flagrando os miolos em ação
Médicos americanos pediram a voluntários que resolvessem problemas de raciocínio abstrato - e concluíram que o cérebro daqueles que se saíram melhor no teste consumia um terço a menos de energia. Isso leva à suspeita de que quanto mais neurônios conectados, menor o esforço do sistema nervoso para raciocinar. Descobertas como essa são possíveis graças à câmara de pósitrons, que permite aos cientistas bisbilhotar a intimidade do metabolismo cerebral. Os pósitrons são partículas que, imediatamente após sua emissão, se combinam com uma substância radioativa.
As combinações são interpretadas por um computador que desenha do cérebro uma imagem parecida com a de uma tomografia. O truque do exame está em ligar, por exemplo, flúor radioativo, que permanece cerca de meia hora no organismo, com aquilo que se pretende observar. Assim, ligado à glicose - combustível que o cérebro consome seis vezes mais do que qualquer outro órgão - o flúor acusa as áreas que gastam mais energia. Com o mesmo método pode-se examinar a ação de drogas e neurotransmissores.
Uma escalada em três degraus
Até os 20 anos de idade aproximadamente, o sistema nervoso ainda é capaz de alterar a sua arquitetura formando novas sinapses. No entanto, como para tantas outras coisas, os primeiros anos de vida são os mais importantes no desenvolvimento cerebral, que obedece a um rígido passo-a-passo. Nos primeiros meses surgem nas chamadas regiões primárias conexões nervosas que fazem o bebê perceber, por exemplo, um objeto escuro. Sem elas, não se formariam, nos três primeiros anos de vida, sinapses nas áreas cerebrais secundárias, que já são capazes de interpretar informações com maior riqueza de detalhes - o objeto escuro é reconhecido como uma caneta.
Isso leva ao terceiro e mais importante passo: o surgimento de sinapses em áreas de associação, especializadas em cruzar as informações mais diversas no cérebro, verdadeiros pontos de convergência. Segundo o neurologista Saul Cypel, de São Paulo, as experiências são fundamentais para o cérebro poder escalar os três degraus do seu desenvolvimento: "Prova disso é que crianças paralíticas, justamente pela impossibilidade de explorar o mundo ao seu redor, tornam-se adultos com dificuldade de perceber, por exemplo, distância e dimensões".
Tudo que o cérebro faz para reconhecer rosto um
1) Uma pessoa vê um rosto que lhe parece familiar, mas por algum motivo não identifica imediatamente de quem se trata. O cérebro então registra os traços essenciais daquela imagem - o bigode, o formato da face e do nariz.
2) Com essas pistas, a memória busca retratos aparentados. Assim o cérebro compara a imagem que vê com as lembranças de um ex-chefe, de um antigo médico da família, de um primo distante, de um professor dos tempos de colégio. Este último possui o mesmo formato de rosto e tem nariz e cabelos iguais. Mas na imagem gravada na memória o seu rosto aparece de barba.
3) Sem ter certeza absoluta, o cérebro se decide pelo professor, cujo rosto é o mais parecido. A partir daí, surgem lembranças: a de que certa vez o professor ofereceu uma feijoada, a do rosto de sua amiga, a de que ele tocava violão - e tudo vai reforçar a decisão de que é de fato o professor, só que sem barba.
4) Um computador não chegaria a essa resposta, a menos que encontrasse dados idênticos na memória. Além disso, processaria as informações uma por uma, enquanto na verdade o cérebro pode acionar ao mesmo tempo milhões de lembranças arquivadas.
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