Desconstruindo Harry

 

Um exercício de desconstrução do conceito e da prática de segmentação de mercado com base no gênero e na etnia: o que nos ensina Woody Allen sobre a hegemônica teoria de marketing?

Jorge Francisco Lengler

Doutorando em Administração (ênfase em Marketing e Estratégia Competitiva) pelo Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA/UFRGS)

Professor do Departamento de Ciências Administrativas da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).

Introdução

Desde que foi cunhado, o termo segmentação de mercado tem sido utilizado pelo meio acadêmico e empresarial como um instrumento capaz de fornecer subsídios para a tomada de decisão quanto ao composto mercadológico das organizações (Dickson & Ginter, 1987; Richers, 1991). Vários foram os esforços para definir os instrumentos para esta segmentação. No início predominou a segmentação de mercados a partir da localização geográfica do consumidor. Posteriormente foram introduzidas as questões relacionados às características psicográficas dos consumidores e benefícios esperados em relação ao produto (Haley, 1968; 1984).

A gênese do conceito remonta às primeiras décadas deste século. Shaw (apud Fullerton, 1988, p. 113) foi um dos primeiros a voltar sua atenção para as questões da divisão do mercado consumidor a partir da identificação de grupos homogêneos em termos de características específicas.

Apesar da contribuição deste construto para a gestão organizacional e para a consolidação de uma "teoria de marketing", este artigo busca lançar luz sobre elementos não percebidos pelo esforço de minimização e redução de algo que esconde uma heterogeneidade e complexidade não-classificáveis, algo que é único e particular a cada indivíduo. Não se trata, entretanto, de desconsiderar uma estrutura conceitual que foi erguida ao longo de mais de quatro décadas de esforço de pesquisa de uma prolífera comunidade acadêmica. Trata-se, sim, de olhar de outra forma o conceito, identificando o que a busca da categorização consideram os indivíduos como semelhantes ou, no extremo, iguais em comportamentos, hábitos e desejos.

Esta crítica acompanha a via cibernética do pós-modernismo, locus de um indivíduo fragmentado e descentrado (Kumar, 1997). Rejeita-se a idéia de um indivíduo autônomo, centrado, com uma identidade unitária segura como o centro do universo social (Alvesson & Deetz, 1999).

Mas, por que desconstruir um conceito que a literatura da área consolidou como discurso hegemônico para administradores e acadêmicos da área? Primeiro, servimo-nos da obra de Derrida (1967; 1999), um dos mais importantes autores pós-modernos, para o qual toda palavra, predicado, conceito e significação léxica, são passíveis de desconstrução (Stern, 1996b); segundo, porque o manto pós-moderno e sua significação permitem-nos acreditar que o conceito de segmentação de mercado e sua prática encerram significados não revelados, guardando em si um conjunto de atores e vozes marginalizados. Assim, se considerarmos como verdadeiros os argumentos pós-modernos de indivíduo e mundo fragmentados, heterogêneos, pluralistas, contraditórios e efêmeros, como aceitar fórmulas cartesianas e predeterminadas de classificação de comportamentos?

A preocupação deste esforço de desconstrução, entretanto, é mais profunda se considerarmos a hipótese de que o conceito de segmentação e suas práticas guardam em si um conjunto de significados que empurram para a margem grupos de indivíduos que acabam por ser marginalizados por este discurso hegemônico. Em especial as minorias que, sob a ótica de grupos consumidores, são vistas pela indústria como grupos "segmentáveis por suas características específicas". O que se sustenta, assim, é o posicionamento de que a segmentação de mercados por algumas bases específicas (como etnia e sexo, por exemplo) são manipulações da própria intencionalidade mercadológica das organizações.

Além disto, embasamo-nos na crítica pós-moderna às metanarrativas, alvo central ao dogma modernista, rejeitando aquilo que "parecia velho e ultrapassado" (Horton, 1995). Estas metanarrativas são esquemas histórico-filosóficos criados pela era moderna para explicar e legitimar os movimentos sociais. Em lugar das metanarrativas, sugerem os pós-modernistas, estão as "narrativas modestas", que não têm a pretensão de explicação do mundo, ou de validações externas, mas são válidas internamente nas comunidades de onde brotam. Estas petits-récits definem o que deve ser dito e feito, criando formas auto-reguladoras de legitimação. Toleram o ilógico e as diferenças. Isto porque, do ponto de vista pós-moderno, o conhecimento é inerentemente local (Horton, 1995; Alvesson & Deetz, 1999).

Como Wood Jr. (1999) argumenta, na perspectiva pós-moderna o homem é um voyer navegando em um mar de símbolos, onde o que existe são discursos. A vivência é mediada por imagens de cinema e televisão que carregam uma simbologia que guarda nas suas entrelinhas muito mais do que os diálogos insinuam. "A realidade, como construção social, passa a ser julgada em face da contraparente cinematográfica" (Wood Jr, 1999, p. 269). Nesta sociedade de espetáculo, os espectadores são confundidos por realidades artificiais e simulações que falseiam o próprio mundo. A realidade é interpretada e, conforme os pós-modernistas céticos, tudo pode ser interpretado de diferentes maneiras, nunca há apenas uma interpretação. E mais, como terceiro motivo para a desconstrução do conceito de segmentação, amparamo-nos na agenda de pesquisa de proposta por Wood Jr. (1999), na qual se inclui a crítica sistemática a discursos pseudomodernizantes.

E porque Allen? O que tem a ver Woody Allen com estruturas conceituais que parecem tão distantes como segmentação de mercado e o pós-modernismo? E ainda...por que Desconstruindo Harry?

2. Pós-modernismo e conceito

Definir o pós-modernismo é uma tarefa que tem ocupado seus principais autores. Há aqueles que afirmam que qualquer tipo de esforço de definição do conceito é inútil. A maior certeza é que esta busca pelo conceito de pós-modernismo leva a muita contradição: marca particular do movimento (Agger, 1993; Kumar, 1997; Alvesson & Deetz, 1999). Kumar (1997, p. 115) afirma que os pós-modernistas têm "horror a definir, em parte por que toda definição de pós-modernismo acabará por ser moderna". E que não se pode afirmar que exista uma teoria unificada do pós-modernismo ou mesmo um conjunto coerente de posições, sendo a diversidade uma das características mais marcantes do movimento: "ela (a diversidade) encoraja a criatividade, enquanto a repetição a inibe" (Jameson apud Kaplan, 1993, p. 29). Outro sustentáculo do movimento pós-modernista, a negação das metanarrativas, leva consigo a rejeição do passado e a ausência de um futuro imaginável, que não tem fundamento nem sentido na construção do mundo. De acordo com esta concepção de passado sem sentido e futuro "indefinível", não é coerente pensar-se no pós-modernismo como uma sucessão do modernismo enquanto movimento histórico. Conforme Jameson (apud Kaplan, 1993) "no pós-modernismo o passado em si desapareceu – junto com o conhecido senso de passado e memória coletiva. O que toma seu lugar são simulações (simulacros) e representações do passado mas sem senso de passado" (Soares, 1996).

Na contenda por uma definição, há autores que defendem o pós-modernismo como uma rejeição ou superação ao movimento modernista, dando por encerrado esta fase da história (Kumar, 1997). Outros, afirmam que o pós-modernismo não é uma fase histórica, que indica temporalidade, mas que toda a fase histórica teria sua idade média, moderna e pós-moderna.

Condicionados por uma exigência de mercado, alguns autores arriscam-se na tarefa de definir o pós-modernismo. Permitindo-se a variação e o ecletismo, a definição envolve indefinição, fragmentação do indivíduo, que é visto pelo movimento como um modernista desencantado, esquizofrenia, pluralismo, heterogeneidade e, sobretudo, contradição (Horton, 1995). A contradição pós-modernista está na preocupação com as vozes excluídas pelo modernismo e na ambigüidade do mundo pós-moderno. Ser ambíguo, no pós-modernismo, é dar voz e vez àqueles que foram excluídos e ficaram à margem ou, da mesma forma, é aceitar a contribuição de várias fontes e correntes, obstando os dogmas impostos pela verdade absoluta.

O pós-modernismo emergiu para o interesse acadêmico na área organizacional ao redor dos anos 80 (Wood Jr, 1999; Alderson & Deetz, 1999). Autores como Foucault, Baudrillard, Jameson, Derrida e outros, contextualizam o surgimento do pós-modernismo a partir de uma antítese aos pressupostos modernistas, pronunciando sua morte (Kilduff & Mehra, 1997; Alderson & Deetz, 1999).

3. O indivíduo pós-moderno

Fragmentação do indivíduo e a idéia de hiper-realidade estão presentes no pós-modernismo. As redes de informação e a sociedade eletrônica dão o tom desta nova (hiper)realidade. Neste estágio de sociedade, eletrônico e interligado por uma rede interminável, onde tudo parece tão desesperadamente perto que não há mais segredos ou intimidade, pois tudo é dissolvido em informação, resta-nos perguntar "quem sou eu e então onde estou?" (Kumar, 1997, p. 139).

A sociedade de informação dá ao discurso pós-moderno vazão e meio para que suas diferenças e oposições ao modernismo concretizem-se. Participação, ausência, dispersão e fragmentação do indivíduo são permitidas pela malha eletrônica que atinge a todos na sociedade (Hassan, 1985). Ausência e fragmentação – binômio inexorável no pós-modernismo - nos dão a fronteira (e não o modelo) do conceito de consumidor pós-moderno: pessoas diferentes procuram (compram e consomem) coisas diferentes. Mas, também, as mesmas pessoas, em ocasiões diferentes, demandarão produtos e serviços diferentes (Kumar, 1997).

O sujeito descentrado da pós-modernidade não pensa em sua identidade em termos temporais. O self pós-moderno é uma entidade descontínua, com identidades construídas e reconstruídas permanentemente ao longo do tempo. Assim, a biografia pessoal torna-se um conjunto de experiências e identidades descontínuas e não uma história de personalidade em desenvolvimento. O indivíduo não experimenta um crescimento contínuo, pois vivencia uma interminável troca de identidades. Tudo se desenrola num eterno presente, sem destino ou origem, mutável e temporário (Kumar, 1997) .

Sobretudo, o indivíduo pós-moderno é convencido de que a razão humana e a inteligência não podem garantir felicidade a todos. Não há esperança em movimentos utópicos, sejam eles liberais, conservadores ou democráticos.

4. A desconstrução do significado

Desconstruir para revelar significados. A perspectiva pós-modernista usa técnicas, insights, métodos e abordagens de uma variedade de tradições, permitindo ao pesquisador, ir, voltar, e ir novamente, sem muita preocupação com os limites acadêmicos. Desta perspectiva do pós-modernismo, todos os estímulos são simultaneamente aceitos. O pós-modernismo não se limita ao desconstrucionismo como técnica, apesar desta ter sido considerada e especialmente útil em seu projeto de compreensão do mundo. A análise de discurso e as genealogias foucaultianas também são utilizadas (Calás & Smircich, 1999).

A visão de mundo da pesquisa pós-moderna é essencialmente diferente do modelo modernista. A epistemologia da pós-modernidade focaliza tudo ao analisar um fenômeno, sem deixar qualquer elemento de fora do cenário - mesmo que este não seja central no discurso.

A desconstrução, como forma de "leitura", analisa as particularidades de um texto julgando de forma crítica seus significados. Motivados pelo desafio da desconstrução de um conceito mercadológico hegemônico, busca-se identificar o que está nas entrelinhas, identificando elementos obscurecidos pela força do discurso dominante. A ideologia reproduzida nas histórias – ou nos conceitos - pode significar uma forma de dominação de um sujeito sobre outro. Desconstruir significa contar a história de outra forma, revelando elementos escondidos, marginalizados por quem conta a história. O discurso pós-moderno, questionador e preocupado com as minorias, afirma que toda história tem dois lados ou, pelo menos, mais de um lado (Boje & Dennehy, 1993; Derrida, 1999).

5. Como desconstruir?

O método da desconstrução foi proposto por Derrida e adotado pelos pós-modernistas. Segundo Paul de Man, um dos maiores divulgadores da desconstrução como método de análise e seguidor de Derrida, o texto tem uma significação aberta que possibilita constantes modificações, em contraste com a concepção modernista de significados únicos e fechados (Stern, 1996b). Esta afirmação encontra respaldo em Barthes (1987, p. 150): "...um sentido nunca pode ser analisado de modo isolado. Os signos são constituídos por diferenças." Desconstrução não quer dizer destruição. Desmontar, para analisar e entender o real significado do significante, as entrelinhas e elementos subjacentes ao discurso que, quase sempre, têm a voz do contador da história (Boje & Dennehy, 1993; Foucault, 1998). Desconstruir é, de fato, aproximar-se do conceito e significação original da palavra "analisar", desfazer.

A proposta de desconstrução elaborada por Stern (1996a, 1996b) segue o leito de Derrida (1967) na qual é feita uma leitura aproximada do texto, usando-se a práxis da nova crítica – close reading – para analisar os significados e expor seus paradoxos e elementos não revelados, utilizando-se os atributos da linguagem, influências históricas e suposições culturais do texto. O procedimento se dá pela exposição intertextual, pelo rompimento das hierarquias, pelo desmantelamento dos binários, revelando relações de poder e enfrentando a limitação dos significados presentes no texto. Este método será adotado para a desconstrução do conceito e da prática da segmentação de mercado por respaldar o pesquisador com uma teoria e história sobre a estrutura ou relação a ser desconstruída.

O método envolve a identificação de elementos textuais, construção de significados e, por fim, a desconstrução deste, fase na qual o pesquisador desafia as perspectivas de significado dominantes.

A primeira fase tem a finalidade permitir ao pesquisador a identificação dos atributos presentes no texto, tais como linguagem e personagens.

Posteriormente, volta-se a atenção da crítica desconstrutiva, em revisitar o "o quê" do texto. A identificação de atributos e gêneros serve como impulsionador para a exploração desconstrutiva do que não é percebido, inconsciente e não-presente na superfície do significado.

A desconstrução permitirá a penetração na simbologia que o conceito e a prática de segmentação de mercado encerram, identificando seus significados omissos e escondidos sob o conceito universalmente aceito e praticado, trazendo à tona uma realidade alternativa, prestigiando elementos e atores marginalizados, suprimidos pelo conceito dominante.

O filme de Woody Allen serve como metáfora para a exposição da forma de desconstrução proposta pelos pós-modernos.

6. Woody Allen e Desconstruindo Harry

Para falar de Desconstruindo Harry é preciso que se fale de Woody Allen. Acostumado com a rispidez da crítica que por vezes não compreende seus filmes e por um segmento de público que idolatra sua obra, Allen não guarda qualquer semelhança com o film persona neurótico, conquistador frustrado, hipocondríaco e indeciso que povoa seus filmes. Ao contrário, trata-se de um autor disciplinado e capaz de tomar decisões que imprimem a seus filmes traços de obra de arte.

Allen iniciou sua carreira ainda adolescente, escrevendo pequenas histórias humorísticas e textos para jornais. Aos cinco anos assistiu ao primeiro filme no cinema, "Branca de Neve, provavelmente", tornando-se, durante sua infância e adolescência, presença diária em alguma das 25 salas de projeção do Brooklyn, em Nova York (Björkman, 1994, p. 14). Sem dúvida, esta vivência foi determinante na formação do artista de múltiplas habilidades, onde a música e o cinema são um conjunto quase inseparável em sua obra. A forte influência dos irmãos Marx, Ingmar Bergman e Felini, eivam sua filmografia de uma aura de filme europeu. Entretanto, a referência assumida por Allen está muito mais nos filmes de Alain Resnais do que nos citados anteriormente. Em Desconstruindo Harry a influência da fórmula cinematográfica cerebral de Resnais, assim como dos irmãos Marx, se exprime no surrealismo, na falta de sentido, na loucura inexplicável dos personagens e na auto-reflexão. Recusando-se a comprometer sua arte e visão de mundo por caprichos de mercado, Allen ousa ao produzir seus projetos e não se impressiona em ser melhor recebido nas salas européias do que no grande mercado consumidor norte-americano.

6.1 A Desconstrução vista por Allen

Dos dramas urbanos explorados em Interiores, Manhattan e Hanna e suas Irmãs, passando pela comédia sem medidas de Bananas, Allen atinge seu auge no filme gravado em 1997 e que desfila um conjunto de celebridades do mundo cinematográfico da atualidade.

A falta de clareza, a fragmentação, a inexistência de uma narrativa homogênea e, sobretudo, a abordagem de temas relacionados às minorias, fazem a tônica da desconstrução da vida de Harry Block em pouco mais de uma hora e meia de projeção. O filme é uma paráfrase pós-moderna onde o diálogo joga para as entrelinhas a força do discurso. Os "you knows..." fazem parte indissociável dos diálogos, no qual o conteúdo entranhado no texto torna-o maior que o todo, exigindo cuidado na interpretação do seu significado. Não há preocupação com formas ou regras. A hierarquia tampouco é preservada. Allen dá lugar à "anarquia", à falta de seqüência. Tudo transcorre num grande simulacro onde a realidade é falseada pela composição de fatos, superposição de cenas e repetição de takes.

Em Desconstruindo Harry, a fronteira entre obra e vida parece cada vez mais difusa entre a personalidade e obra cinematográfica de Allen, o que, aliás, forma o estilo do roteirista que é acusado – ou estigmatizado – de reproduzir nas telas fragmentos de sua vida pessoal.

O estilo do filme, que alterna momentos de ficção e realidade, mostra um escritor que usa seus amigos em histórias fictícias para recobrar-se de sua impotência literária. Desconstruindo Harry flutua entre os pólos da realidade e ficção de três mundos diferentes: o mundo que cerca o escritor; o mundo que flui na própria interpretação e, por fim, o que pertence aos fantasmas pessoais do escritor (Casas, 1998). Allen filma e produz a montagem ao estilo de suas obras anteriores. Ele atua praticamente fora da cena e, manipulando a realidade, apresenta um sentimento dissonante do plano real, filmado. Este tipo de artifício deixa clara a intenção do cineasta em instalar uma realidade paralela à vida dos personagens (Couto, 1999). Não raro, Allen traz à cena o cenário do inferno, onde a figura do ceifador da vida novamente coloca o espectador em dúvida se a cena transcorre no plano da realidade ou da ficção. Acostumados às brincadeiras, os espectadores são, agora, convidados à reflexão. A manipulação da realidade deixa transparecer um autor desencantado com a vida, que mostra incessantemente a fragilidade dos indivíduos. Mel, interpretado por Robin Williams, aparece desfocado em frente à câmera. Ao primeiro julgamento, poder-se-ia atribuir a falta de foco a um problema técnico, da própria câmera. Aos poucos, nota-se que não é um truque, mas sim um problema do próprio personagem, que aparece "desfocado no mundo real", fora do foco de sua vida. Esta seqüência poderia ser entendida como a essência do trabalho de Allen, que os indivíduos são descentrados, ou fora de foco em uma realidade manipulada por constantes simulacros.

A tradição judaica, temática constante nos filmes de Allen, é mais uma vez lembrada. Só que, desta vez, o autor preocupa-se em mostrar os conflitos do personagem com os dogmas da religião. Harry é um sujeito descrente das orientações religiosas cultivadas pela fanática irmã, mostrando o antagonismo do protagonista com a religião. O judaísmo é revelado pelas cenas em que a parafernália festiva hebraica se confunde com brinquedos de filmes de ficção científica.

A visão de mundo pessimista e resignada, que expressa a desilusão com um caminho sem volta nem salvação, peculiar aos pós-modernos céticos (Kilduff & Mehra, 1997), é a essência desta obra. A morte e a fragilidade da vida se convertem num tema subjacente à história de Harry. Exemplo disto é a seqüência em que um dos seus melhores amigos morre enquanto iam juntos para uma cerimônia oferecida a Harry por sua contribuição literária pela mesma escola que antes o expulsara.

A fragmentação dos atores em um mesmo plano é garantida pelos cortes rápidos em uma mesma cena. Atenção que o espectador deve manter no filme é necessária que para que se revelem todos os elementos que estão por detrás de suas cenas. A cena inicial dá uma boa medida desta fragmentação e do caráter esquizofrênico-descentrado dos seus personagens. A liberdade cinematográfica de Allen está no limite: a seqüência da chegada do taxi que conduz Judy Davis à casa de Harry é mostrada quatro vezes, numa clara intenção de se explorar as diferenças que uma mesma cena tem a cada uma de suas múltiplas projeções.

Os planos de filmagem, que são intercalados com os títulos dos créditos antecipam a inquietação que domina o filme. Esta "liberdade" de ação mostra a fórmula de Allen, mantendo um terreno cinematográfico autônomo da rede limitada de Hollywood, onde o gosto a ser seguido é o do consumidor (Björkman, 1994; Casas, 1998).

Na parte final do filme Harry é laureado por sua contribuição literária pela escola de onde foi expulso. A desilusão com o mundo amargo e a perspectiva negativa formam a retórica da última parte do filme. Harry, vendo-se sozinho para ir à cerimônia que lhe era oferecida, contrata uma prostituta negra, seqüestra o filho na porta da escola e arrasta o amigo doente para que o acompanhem à cerimônia.

7. Construção do significado – a literatura dominante de segmentação de mercado com base no gênero e etnia

Considerada como uma das ferramentas capitais do marketing, o conceito de segmentação de mercado começa a se projetar no meio acadêmico e gerencial a partir da segunda metade do século, quando surgiram os trabalhos de Wendell Smith (1956; Engel, Fiorillo & Cayley, 1972). Seu objetivo era claro: diante da impossibilidade de atingir todos os consumidores, seja devido à heterogeneidade de necessidades, valores, dispersão geográfica, gênero ou padrões culturais, as organizações direcionariam seus esforços para grupos específicos de consumo. Através desta filosofia empresarial, fragmenta-se o mercado total em inúmeros micromercados, cada qual englobando consumidores que apresentam particularidades que os fazem semelhantes em termos de suas atitudes, comportamentos, valores, localização, etnia, sexo, uso e emprego dos produtos (Churchill & Peter, 1995). Empresas que optam pela segmentação têm condições de conhecer melhor seus clientes, identificar seus desejos e, até mesmo, saber as razões que os levam a determinado comportamento de compra. Em essência, trata-se dos valores dos consumidores.

Para que uma segmentação de mercado seja eficiente, deve haver uma escolha adequada das bases utilizadas para sua formulação. Interessa-nos aqui, apresentar as bases institucionalizadas pela teoria de marketing para a segmentação de mercados consumidores com maior ênfase para as questões étnicas e de gênero.

O interesse de desconstrução recai sobre esta forma de segmentação justamente por ser esta uma das bases mais utilizadas no processo de divisão dos mercados consumidores. Embora utilizada de várias formas, a etnia refere-se aos limites de um grupo étnico associados por seus valores, formas de vestir-se, religião, linguagem, entre outros (Mowen, 1995; Schiffman & Kanuk, 1992).

7.1 Desconstruindo o significado – identificação e reconciliação dos binários

Cabe-nos, aqui, desconstruir esta mensagem. Esta etapa envolve a desconstrução da noção simplista que se supõe estar subjacente ao conceito e prática da segmentação de mercado com base em variáveis étnicas e de gênero, motivando o leitor a eximir-se da leitura ortodoxa postulada pela literatura de marketing. Os binários serão elementos que permitirão a comparação e revelação daquilo que é marginalizado no conceito, trazendo à tona elementos oprimidos pela prática do discurso dominante (Boje & Dennehy, 1993). Uma das conseqüências deste tipo de leitura é a dúvida permanente da estabilidade das relações entre a disciplina e a ideologia que estas incorporam. A desconstrução é uma forma de tomar posição, em relação à estrutura política e institucional. Derrida (apud Stern, 1996b) ressalta que como esta desconstrução nunca é unicamente relacionada com o conteúdo expresso e seu significado, a desconstrução não deveria ser separada da problemática político-ideológica que a envolve.

Os binários apresentados neste esforço de desconstrução expõem a natureza de um sistema hegemônico do conceito que revela os preconceitos da prática do construto hegemônico da segmentação de mercado.

7.2 Brancos e negros: dominador/dominado

O binário branco/negro revela uma dominação histórica presente nos textos e que devem ser tratados de maneira desconstrutiva, buscando o real significado da segmentação de mercado com base na etnia.

Considerando a emergência da população negra como um segmento de consumo, o setor produtivo passou a considerar este grupo como uma possível oportunidade de mercado para seus negócios. É preciso, entretanto, que se considere este processo do ponto de vista histórico. Da mesma forma como os negros norte-americanos, a história do negro no Brasil é marcada pela escravidão, sofrimento e preconceito. Quando enfim libertos, os negros brasileiros pouco evoluíram em sua condição econômica. Tratados como mercadoria, sem direito à construção de laços familiares e descanso, à educação e alimentação decente, os escravos alforriados não foram preparados para a liberdade. O conceito de trabalho estava associado a sacrifício. Além disso, os ex-escravos não conheciam a idéia de acumulação ou de salários justos, e se conformavam com qualquer trabalho que lhes permitisse a subsistência (Furtado, 1989).

Mais de cem anos após a assinatura da lei de libertação dos escravos, os resultados da situação exposta ainda se refletem nas desigualdades entre negros, pardos e brancos. Hoje, ainda são claros os sinais de discriminação. Do total de negros da população brasileira, 81% estão no estrato social D e E e 97% têm renda inferior a dez salários mínimos (Grottera, 1997).

A discriminação percebe-se em ações individuais, provérbios populares, enfim, no dia-a-dia da sociedade brasileira. Uma breve análise da história brasileira revela que a origem dessa desatenção e preconceitos tem sido, até o presente momento, constantes. Por vezes, defende-se a idéia de ser o Brasil uma democracia racial. No entanto, a realidade prova que o que existe é uma tolerância racial e a existência do preconceito (Alencar et al, 1985). O artigo publicado por Vicente Paulo da Silva, presidente do Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial evidencia esta situação. Em sua manifestação, veiculada no jornal Folha de São Paulo (13 de maio de 1998), Silva aponta, entre outros aspectos, para a discriminação inconsciente e institucionalizada pela própria língua portuguesa através de expressões como "denegrir", "a coisa está preta", dentre outras.

Entretanto, estimulada por cifras e prognósticos sobre o poder de compra da população negra no Brasil, o setor produtivo se prepara. Os números referentes à população afro-brasileira por si só serviriam para justificar a importância de trabalhos que revelassem às empresas os padrões de consumo desta parcela da população brasileira. De acordo com os resultados de pesquisa realizada pela agência Grottera (1997), os negros e pardos correspondem a 68,7 milhões de brasileiros, sendo a maior nação mestiça do mundo, superando, inclusive, a dos Estados Unidos (34 milhões) e até de nações africanas como a África do Sul (35 milhões) e o Zaire (45 milhões). A chamada classe média negra brasileira, que corresponde a 7 milhões de habitantes, percebe uma renda média mensal de R$ 2.311,94, totalizando uma renda anual de R$ 46 bilhões, com cerca de R$ 6 bilhões anuais excedentes para o consumo de produtos que não os considerados básicos. Em virtude deste cenário, as indústrias de bens de consumo iniciaram na década de 80 esforços para colocar no mercado produtos e serviços que atendessem às expectativas deste conjunto de consumidores.

As pesquisas de segmentação de mercado conduzidos por institutos autônomos e organizações interessadas em identificar um perfil étnico de consumo garantem que a falta de produtos direcionados para o segmento negro pode ser atribuída a um desconhecimento das diferenças culturais que representam este grupo (Miller, 1993). Alguns destes estudos afirmam que os consumidores negros são mais leais a marcas, quando adquirem alimentos, bebidas e produtos para a casa, privilegiando a qualidade do produto que consomem. O mesmo estudo destaca que ir às compras é uma das atividades preferidas deste segmento.

Nesta busca pela identificação das "necessidades" dos consumidores negros, institutos de pesquisa e empresas lançam-se ao mercado. Algumas pesquisas afirmam que "percebe-se despertar uma consciência de grupo entre os negros brasileiros e, como um grupo, tem suas necessidades, valores e aspirações de consumo específicas" (Grottera, 1997).

Os consumidores negros reivindicam produtos específicos para a raça negra:

36% mencionaram sabonetes;

31% mencionaram tecidos e moda afro;

27% mencionaram alimentos e temperos afro;

22% pediram maquiagem específica;

17% mencionaram móveis afro;

8% shampoos; e

8% desodorantes.

7.3 a real significação do conceito e prática de segmentação de mercado pela etnia

"...O escravo então foi deitar-se,

pois tinha de levantar-se

bem antes do sol nascer,

e se tardasse, coitado,

teria de ser surrado,

pois bastava escravo ser."

(Castro Alves: A Canção do Africano, 1960).

Desigualdade. Este poderia ser o vocábulo da língua portuguesa para manifestarmos da melhor forma o distanciamento entre a cultura negra (dominada) e a branca (dominante). Sob este binário (negro/branco) assenta-se uma estrutura de dominação subjacente às práticas de segmentação de mercado com base no componente étnico.

A desigualdade pode ser evidenciada de diversas formas na sociedade atual. O rendimento dos negros é, em média, 37% inferior ao dos brancos, enquanto os considerados pardos recebem rendimentos 32% inferiores aos brancos (Grottera, 1997). Comparando-se a expectativa de vida dos brancos em relação à dos negros, verifica-se que os primeiros vivem, em média, 66,1 anos, enquanto os negros e pardos têm uma expectativa de vida de 59,4 anos.

Outro aspecto que evidencia a desigualdade é o nível de educação inferior recebido pelos negros (Engel, Blackwell, Miniard, 1995). Quando não se trata de qualidade, o problema é um número menor de anos dedicados ao estudo.

Ávidas por novas oportunidades de mercado que possam lhe render resultados positivos, as indústrias de bens e consumo lançam-se em busca do consumidor negro, colocando no mercado "produtos e serviços específicos para este segmento de mercado". A inquietação empreendedora do setor produtivo em conhecer este "novo" consumidor revela os preconceitos.

Nota-se um esforço das organizações em atingir o consumidor negro com produtos e comunicações específicas, que atendam suas necessidades. Entretanto, o que há de tão específico em consumidores negros que justifique a elaboração de produtos diferentes aos dos brancos? Tecnicamente, não há qualquer tipo de impedimento no uso de produtos "não segmentados para negros" por parte de pessoas da cultura afro-brasileira. Neste sentido, sustenta-se que a segmentação de mercado pela etnia ou raça guarda em si um apelo discriminatório, oriundo das relações sociais históricas entre negros e brancos, onde os primeiros desempenhavam papéis secundários ou dominados, enquanto o segundo grupo garantia o status quo de dominante, ou opressor.

Da forma como tem sido tratado pelo setor produtor de bens de consumo e serviços, o segmento de consumidores negros e pardos - ou não brancos - parece Ter assumido o direito da condição soberana de consumidor, capaz de entrar no mercado de consumo e participar dos processos de socialização a partir do momento em que reuniu condições financeiras para tal. A forma como os meios de comunicação apresentam este novo mercado coloca-o na condição de criador de demanda de novos produtos e serviços Grottera (1997).

A segmentação de mercado é abordada pelo discurso dominante como uma forma de respeito às etnias consideradas minorias, como negros e pardos, por oferecer-lhes valores através de produtos e serviços específicos.

A problemática desta segmentação é a dominação de uma etnia em detrimento de outra, levando a um grau de etnocentrismo (Rocha, 1985; 1995). Não raros são os esforços de comunicação em diversos meios que reproduzem indivíduos de uma minoria étnica em condições típicas de indivíduos de grupos sociais dominantes, como a cultura waspie retratada por Tom Wolf (1987), ou seja, branca, anglo-saxã e de orientação religiosa protestante. A questão predominante é da exclusão de grupos do consumo de produtos e serviços que são produzidos para outros grupos e indivíduos. Assim, o que se postula é que esta divisão do mercado não encontra uma condição suficiente para justificar a divisão de um grupo. O resultado da pesquisa de mercado conduzida pela Agência Grottera, onde os consumidores negros manifestam seu interesse em produtos específicos para esta etnia, é outra forma de discriminação.

7.4 masculino/feminino: sexo dominante/sexo frágil

A mesma condição de binário identificada para as questões étnicas (branco/negro), pode ser reproduzida quanto à segmentação de mercado com base no gênero. Sem dúvida, este é um dos binários de maior destaque na desconstrução do conceito e prática da segmentação de mercado, uma vez que a orientação para o grupo feminino de consumidoras tem sido mais efetiva nas últimas duas décadas. Munidos de pesquisas que apontam para um crescimento deste mercado consumidor no que se refere a bens de consumo duráveis e não-duráveis, a indústria busca criar produtos que estimulem consumidoras a optarem por seus produtos. Institutos de pesquisas como o IBGE (1990), e Target apontam para um crescimento das mulheres na população economicamente ativa brasileira. Em 1950, 85% da PEA (população economicamente ativa) no Brasil eram de homens e apenas 15% de mulheres. Em 1990, as mulheres já detinham 35% das vagas do mercado de trabalho brasileiro. Com rendimentos crescentes, as mulheres ocupam cargos anteriormente destinados aos homens e têm nível educacional superior ao destes. Tom Peters (1998), especialista norte-americano em megatendências, afirma que a organização deve reavaliar todos os seus processos, buscando conquistar este mercado. A importância, segundo Peters, está nos números: 8 milhões de empresas pertencem a mulheres (nos EUA), cerca de 30% das mulheres casadas que trabalham fora ganham mais do que o marido. Elas representam 59% dos cargos de professores assistentes em universidades e, por fim, gastam mais do que os homens com sapatos e equipamentos para esporte. Na mesma pesquisa, Peters concluiu que as mulheres tomam ou influenciam significativamente a maioria das decisões de compra do casal, no que diz respeito a moradia, assistência médica, automóveis ou pacotes de viagens.

Frente aos números, o mercado feminino constitui-se num bom segmento a ser explorado pelas organizações.

7.5 a sociedade falocêntrica e a dominação subjacente no conceito e prática da segmentação de mercado pelo gênero

"O sexo frágil representa o mercado

mais forte da atualidade."

(Peters, 1998)

Apesar de comemorar os avanços obtidos pelas mulheres, a segregação sexual continua de diversas maneiras. A desigualdade remuneratória e de cargos deve ser considerada ainda como uma das mais contundentes formas de discriminação de gênero. Segue-se a isto o número de lares que são mantidos por mulheres sozinhas, o que conduz a uma estatística de concentração de baixa renda nestes casos (Calás & Smircich, 1999). Estes são fatos recentes, que atingem mulheres de todas as classes ao final da década de 90.

Pela forma como é explorado, as organizações deixam claro nos seus esforços de comunicação a mais evidente e pervasiva forma de discriminação da cultura ocidental: a dominação e supremacia do masculino sobre o feminino: a sociedade falocêntrica (Stern, 1996b). Em muitas das peças publicitárias veiculadas com o objetivo de conquistar o público consumidor feminino, seu personagem encontra-se em condições de submissão em relação ao homem. Esta, via de regra, é retratada em campanhas publicitárias desempenhando atividades caracteristicamente submissas a personagens masculinos. Novamente, a história assume a lógica de quem a conta. Numa sociedade permeada por valores masculinos, as campanhas de comunicação empresariais seguem esta corrente. A submissão feminina torna-se evidente em atividades profissionais, onde a mulher é o agente excluído do processo decisório, relegado a atividades secundárias, em que cabe aos homens a tomada da decisão. Esta busca pela segmentação do mercado traz em seu seio uma leitura discriminadora, do opressor sobre o oprimido que derivam, sobretudo, da histórica supremacia masculina. Busca-se em Stern (1996b) um exemplo. O personagem Joe Camel que, personificado nas campanhas publicitárias da companhia de cigarros norte-americana RJR, mostra um mundo masculinizado, onde a figura da mulher associa-se à subordinação e subserviência. Joe Camel, um camelo que assume a figura humana nas peças publicitárias de mídia eletrônica e impressa da empresa, tem o nariz em formato fálico, é maior que as suas parceiras e desempenha papéis de maior prestígio que elas. Invariavelmente, as mulheres que contracenam com Joe Camel são garçonetes ou dançarinas que chamam a atenção por seus atributos físicos e não por suas características intelectuais.

Na divulgação de produtos de uso doméstico, tais como eletrodomésticos da linha branca, produtos de higiene e limpeza e até mesmo alimentos, a estrutura familiar patriarcal é mantida. O homem ocupa o papel principal nas histórias que são contadas, apesar da participação intensiva da mulher no mercado de trabalho, inclusive como maior renda do grupo familiar.

Os exemplos não cessam. A campanha publicitária dos produtos de higiene pessoal de um dos maiores fabricantes do gênero, veiculada na mídia eletrônica brasileira, retrata a situação que se descreve. O personagem feminino, neste caso, pratica atos supostamente ilegais e é julgado por personagens masculinos que lhe conferem o direito à absolvição após interrogatório. Novamente, a mulher é colocada em uma situação de inferioridade e subserviência à dominação falocêntrica do mundo.

Apesar do discurso feminista que as organizações pregam, parece ainda não ter havido a ruptura definitiva do status quo definidor das relações de poder entre masculino/feminino no que se refere à prática do conceito de segmentação de mercado.

Apesar disto, as correntes feministas têm lugar de destaque na literatura organizacional. Influenciadas pelos maiores expoentes do pós-modernismo, autoras do movimento feminista buscaram identificar o papel e contribuição da mulher na vida organizacional. Espera-se que, deste processo de reivindicação acompanhe uma consciência nas práticas organizacionais.

Embora abordados com brevidade, percebe-se que os textos deixam sempre uma segunda chance para interpretação e análise. O método da desconstrução tem uma importante função na descoberta e revelação de elementos que ficam, por força de um sistema hegemônico, sufocado sob um elemento dominante. Esta dominação, de acordo com a Teoria Feminista Radical – uma das correntes feministas presente no cenário da questão organizacional - deve-se ao gênero, que se constitui num sistema de dominação masculina, num princípio que organiza as relação de opressão da sociedade e que está na origem de todos os sistemas de opressão. Os principais problemas citados aqui e relacionados à discriminação feminina, são atribuídos aos privilégios garantidos ao gênero masculino em uma sociedade onde o homem dominador é definidor das regras.

8. conclusão

Por quê desconstruir? No que este processo de desestabilização de um conceito se relaciona com a teoria de marketing? O argumento para esta desconstrução baseia-se no clamor da revelação crucial da relação entre poder, ideologia, historicismo e dominação. Esta revelação permite que se conte a história de outra forma, do ponto de vista do oprimido, descortinando o real significado dos textos. A desconstrução, neste sentido, não deve ser separada da problemática político-institucional que a envolve.

A partir relação estabelecida pela confrontação da história contada por Woody Allen com a desconstrução empreendida neste estudo, pode-se sugerir que as estratégias de segmentação de mercado empreendidas por uma comunidade acadêmica à procura de oportunidades de negócios num mundo competitivo, reúnem em si um esforço quase niilista do self de grupos sociais específicos.

Não deve causar estranheza, portanto, a sustentação dos objetivos deste trabalho, que procura mostrar uma prática organizacional e acadêmica que, como constituinte de um discurso hegemônico, guarda em si fatores de opressão e submissão poderosos. Para este entendimento, foi necessário utilizar a linguagem como sistema de significação, representando além daquilo que foi escrito ou dito. A contribuição de Allen, através de Desconstruindo Harry é significativa. O filme do cineasta norte-americano busca na inter-relação de diversos personagens debater temas como a submissão racial, de gênero e a supremacia religiosa através do confrontamento de opiniões conflitantes. A história é contada na forma de simulacros que falseiam a realidade e expõem a intenção de se mostrar a face descentrada e esquizofrênica dos seus personagens. A crítica ao conceito de segmentação de mercado assenta-se justamente sobre estes artifícios utilizados por Allen na desconstrução do personagem Harry Block.

Buscou-se revelar que por trás das práticas de segmentação está um instrumento de dominação. Negros e mulheres assumem a condição de destaque. Grande parte do construto de marketing, sobretudo no que se refere à segmentação de mercado, é anterior à década de 90, e é marcado pelo acorde monovocal da cultura waspie. Mais recentemente, novas correntes começaram a trazer luzes para a questão, buscando debelar a hegemonia de um mundo predominantemente branco, masculino e educado. Segundo Dholakia (apud Stern, 1996b) este panorama de dominação do opressor sobre o oprimido mostra significativas mudanças: o exame de peças promocionais (histórias) sob a ótica dos que eram historicamente dominados, tem revelado a voz oprimida das mulheres e negros.

O desmantelamento da supremacia masculina corrobora para o enfraquecimento de outros binários que hierarquizam a sociedade ocidental. Agrega-se a isto o fato de que mais da metade dos habitantes de grandes países do continente americano, com maior ênfase nos Estados Unidos e no Brasil, constituir-se-ão de negros e pardos nos próximos dez anos. Esta mudança passa pela construção das identidades através da incorporação do self de indivíduos ou grupos específicos.

A questão feminista está em curso, sendo paulatinamente modificada. Entretanto, o tema das etnias dominadas ainda é subjacente no discurso e prática dominantes. Woody Allen soube trabalhar o propósito da revelação das vozes oprimidas. No primeiro momento, de identificação dos atributos da história, o personagem Harry contracena com uma prostituta negra. Na seqüência da história, a identidade da mulher é resgatada com outra forma. Seu self foi alterado, retirando-se o fator hierárquico que a distancia dos personagens masculinos e brancos.

A exemplo da perspectiva feminista, a desconstrução de Allen revela sua crítica às metanarrativas. Em lugar destas, surgem as "narrativas modestas", que explicam a realidade peculiar de uma comunidade sem a pretensão de explicação do mundo. Estas narrativas funcionam como elemento de legitimação e auto-regulação local (Horton, 1995; Alvesson & Deetz, 1999). Enfrenta-se o que pode ser a forma de evitar essas discriminações presentes no conceito e na prática da segmentação de mercado. Tomando-se como base estas narrativas locais (petites narratives), tem-se uma forma própria para tratar as minorias oprimidas, sem que estas tenham que ser, como historicamente o são, vistas a partir das lentes de grupos dominantes hegemônicos. Pois, apesar da importância e significação que negros e mulheres têm na formação social e de mundo contemporâneo, suas identidades ainda são o reflexo da figura dominante.

O tema está aberto à discussão. Na área mercadológica a prática da desconstrução e revelação de conteúdos subjacentes aos discursos dominantes abre um grande campo de exploração acadêmica. Cabe-nos, então, a reflexão e o questionamento contínuos dos processos organizacionais que, legitimados por práticas de mercado, escondem a dominação dos que contam a história sobre aqueles que têm suas vozes omitidas.

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