A PROBLEMÁTICA DO PRAZER NA OBRA FREUDIANA:

UM ESTUDO TEÓRICO *

 

Aline de Alvarenga Coelho

 

A leitura da obra de Freud é marcada por idas e vindas, avanços e retornos dentro de suas concepções. Certas idéias estiveram presentes em seu trabalho do início até o fim, mas foram atravessando contínuas modificações até alcançarem sua forma final. E podemos especular que, se Freud estivesse vivo até hoje, muita coisa teria se modificado novamente.

A questão do prazer faz parte desse grupo de idéias que foram se modificando ao longo do tempo. Desde o texto do Projeto para uma Psicologia Científica, que Freud fala sobre a tendência do sistema nervoso em descarregar toda a quantidade de excitação (Q), e este seria o Princípio da Inércia. Mas, logo algumas linhas adiante, Freud retifica o que havia escrito: há certos estímulos originados no próprio corpo, para os quais o comportamento de fuga se revela simplesmente inoperante. Contra estes estímulos, é necessária a realização de uma ação específica, ou seja, uma alteração no mundo externo para atender às exigências da vida. Freud logo percebeu que a total descarga não se compatibiliza com a manutenção da existência de um organismo.

Por conta dessa impossibilidade de descarga total, o sistema nervoso se contenta em tentar manter a quantidade de excitação no nível mais baixo possível, de forma constante. Este é o Princípio da Constância, posteriormente descrito como Princípio do Prazer.

Mas esta busca do prazer a qualquer custo esbarra em situações que podem causar desprazer: é o caso clássico do bebê que, sentindo a premência da fome, alucina o seio materno. A alucinação não diminui o desprazer, mas o aumenta junto com a frustração da necessidade não satisfeita. É por causa disso que nosso aparelho mental desenvolve posteriormente o Princípio de Realidade. Este não nega a busca pelo prazer, mas o faz de uma forma, digamos, mais madura: suportando o desprazer necessário para a obtenção do prazer.

Estas concepções surgem juntamente com o advento da Psicanálise enquanto tal, em 1900, com a publicação de A Interpretação dos Sonhos e a primeira concepção do aparelho psíquico. Freud fala da existência de um sistema Inconsciente (Ics), que seria regido pelo chamado Processo Primário. Este sistema seria formado por representações recalcadas que se associam por similaridade, simultaneidade, homofonia e etc. e que buscam expressão, forçando entrada no sistema Pré-Consciente (Pcs).

No texto O Inconsciente, de 1915, Freud se detém mais nesta questão da passagem das representações do Ics para o Pcs. Ele afirma que, neste caso, ocorre a ligação da apresentação da coisa com a apresentação da palavra. Esclarecendo melhor esta frase, vale ressaltar que estou usando a palavra apresentação (vorstellung), que foi assim traduzida no citado texto. Esta mesma palavra é comumente traduzida como "representação". Freud supõe que no Ics estão presentes as apresentações das coisas dos objetos, enquanto que no Pcs, estas apresentações das coisas se ligam a apresentações de palavra para que, assim, possam acessar a consciência.

O sistema Pcs não é regido pelo Processo Primário, e sim pela Secundário, que estabelece a ordem de nossa vida consciente. Um exemplo simples para ilustrar a dessemelhança de procedimento destes dois processos é tomar a diferença entre nossa vida onírica e nossa vida desperta. Num sonho, as representações se condensam e se deslocam, exibindo, além disso, uma vividez alucinatória. Em nossa vida mental, mesmo quando desejamos ardentemente algum objeto, não o alucinamos, mas formamos uma identidade de pensamento, à espera de que sua presença real nos forneça uma identidade perceptiva.

Mais uma vez, vemos que esta busca pelo prazer pode levar ao desprazer se esta não se coadunar com a realidade. Freud vai percebendo os limites do Princípio do Prazer, limites intrínsecos a sua própria existência.

Com um aprofundamento maior do estudo das pulsões, em 1915, suas relações com o prazer se tornam mais claras. A pulsão é sempre ativa, ela busca a descarga, não importando se esta vá trazer prazer ou desprazer para o eu. É preciso acrescentar aqui que, embora a primeira concepção do aparelho psíquico, vigente até 1923, divida-o em Ics/Pcs/Cs, Freud já falava, bem antes disso, num eu, colocando-o como a sede das pulsões do eu, ou de auto-conservação. Por outro lado, teríamos as pulsões sexuais. Esta busca pela descarga, derivada das pulsões sexuais podem encontrar resistência por parte do eu, que não pode deixar de sentir esta descarga como desprazerosa. O eu é formado pelo retorno de investimentos objetais; também é investido pelas pulsões sexuais, mas tem uma função especial: tenta submeter-se ao teste de realidade, obedecendo a este princípio. Porém, uma parte do eu é inconsciente; é a instância da censura e de onde provém o recalcamento. É o eu que exerce a função recalcadora, impedindo que as representações incompatíveis com a moral do indivíduo ganhem o acesso à consciência.

Por causa disso, Freud diz que aquilo que é sentido como prazer numa instância, é desprazer em outra. A pulsão busca a descarga, mas é o eu quem vai determinar se a representação associada àquele impulso vai atingir a consciência. Se o acesso a esta é fechado, o material recalcado não vai deixar de manifestar, mas esta manifestação ocorrerá de forma disfarçada e distorcida, através de sonhos, chistes, atos-falhos e sintomas. Todos estes processos da vida mental que Freud se dedicou a estudar são as chamadas "formações de compromisso": o Pcs aceita a manifestação deste material recalcado, desde que a consciência não possa reconhecê-lo enquanto tal. Conforme Freud afirmou, é mais econômico para o Pcs tolerar certas manifestações do Ics do que mantê-lo sob rédea curta todo o tempo.

Em 1920, Freud introduz novos questionamentos a sua teoria. Ele percebe que certos fenômenos da vida mental não podem, de forma alguma, ter por objetivo a busca do prazer. São comportamentos claramente desprazerosos, repetidos compulsivamente. Ele começa falando sobre os sonhos das neuroses traumáticas, passa para as brincadeiras de crianças e, por fim, chega ao comportamento do neurótico comum durante o tratamento psicanalítico, repetindo na transferência as situações desprazerosas de seu passado. Freud acaba por concluir que existe uma tendência em nossa vida mental mais primitiva que o princípio do prazer, um além do princípio do prazer. O objetivo desta função mais primitiva do aparelho psíquico seria, não a busca pelo prazer, mas a dominação de estímulos. Diante desta função, o prazer fica em segundo plano, embora não se exclua.

É neste artigo que Freud institui a existência de uma pulsão de morte, a qual ele associa, em princípio, com as pulsões de autoconservação, e uma pulsão de vida, associada às pulsões sexuais. Em suas especulações, Freud percebe que o corpo se protege contra as influências externas, mas nada pode fazer contra os estímulos internos. Ele conclui que o organismo morre por razões internas e este desvio da morte promovido pela vida só acontece porque este organismo "deseja morrer de seu próprio modo". A sexualidade, por outro lado, representa a preservação da vida, através da união germinativas, dando origem a um novo indivíduo. O corpo seria o "guardião mortal de uma substância imortal".

Mas tanto a pulsão de vida quanto a de morte seriam conservadoras. Se a segunda deseja "restaurar um estado anterior de coisas", um "retorno ao inanimado", a primeira deseja conservar a vida. Apesar de ter uma conotação claramente negativa, podemos encontrar uma certa positividade na pulsão de morte, visto que só através da destruição do que existe é que se pode construir algo novo.

No ano de 1929, Freud escreve o belíssimo texto O Mal Estar na Cultura (Civilização), no qual aborda a busca humana pela felicidade. Ele acaba por concluir que grande parte dessa busca pelo prazer torna-se, simplesmente, uma mera evitação do desprazer. O prazer, diz ele, só pode ser sentido no contraste, na passagem de uma situação desprazerosa, para uma prazerosa. Ou seja, o prazer é sentido quando uma situação que causava desprazer é eliminada.

Mesmo o mais alto grau de prazer que o ser humano pode sentir, o prazer sexual, é intenso, mas curto, instantâneo, não se coadunando com a idéia comum de felicidade, um prazer intenso e constante.

Talvez o prazer mais inabalável pelas influências externas seja aquele que provém da sublimação das pulsões sexuais, canalizando esta energia para o trabalho intelectual. Mas é uma pequena parcela das pessoas que apresenta esta capacidade de sublimação e, além disso, a satisfação proveniente destas produções científicas e intelectuais não é intensa o suficiente para ser chamada de felicidade.

Ao final deste texto que, embora belo, é um tanto pessimista, Freud não pode deixar de concluir que esta busca humana pela felicidade é mais uma ilusão criada para tornar menos árida nossa relação com a realidade.

Aline de Alvarenga Coelho

Psicóloga pela UFRJ,

Estágio em saúde mental.

 

* Artigos publicados: Estudo sobre a teoria pulsional na psicanálise, no número 9 da Revista Acheronta de Psicoanálisis y Cultura.

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