O Romance e a Psicanálise

Hilda Gouveia de Oliveira

 

Começando a escrever este artigo para a revista Seele, lembro-me que o perplexo Jacques Lacan rotula a psicanálise de "questão morcego", e declaro a minha total incapacidade de precisar a questão da literatura, provavelmente uma "questão-coruja", uma vez que a ambígua obscuridade do texto literário propõe infindáveis interpretações, e ilumina o intelecto como a coruja de Pallas Atena.

Como cópia poética do real, o romance tradicional é considerado por Marx, Engels e pelos seus seguidores como um competente tradutor da realidade social e das aspirações da burguesia, do liberalismo e do capitalismo dominantes no século XIX. Tudo bem... A sociologia e a política tratam de questões mais objetivas, e a psicanálise e crítica literária vivem de imponderáveis, e fazem perguntas irrespondíveis. Quem se esconde no texto? O autor, o leitor, o próprio texto, a sociedade, a humanidade inteira, ou determinado indivíduo? A crítica pede ajuda à ciência, à arte e a todos os saberes e práticas; por economia metodológica, particulariza opiniões e escolhe pontos de vista específicos. Northrop Freye descreve o romance como representação de seres "low-mimetic;" Maurice Schroder compreende-o como busca da sabedoria que implica uma viagem que parte da inocência rumo à experiência; Georg Lukacs entende-o como representação do mundo sem deuses, como retrato do esquema social, e da procura filosófica do ser; para Mikhaïl Bakhtine, ele é um cronótopo multifocal e plurissignificativo; a estética da recepção lança a responsabilidade sobre o leitor, enquanto, à moda de Coleridge, alguns críticos apelam para a "suspension of disbelief;" Derrida o desconstrói na tentativa de explicá-lo; Roland Barthes olha-o à caça de mitos sociais e de outros valores escondidos nos signos lingüísticos; Ricardou estuda-o como um corpo em que técnicas narrativas, descritivas e dissertativas estão harmoniosamente entrelaçadas; Cassirer compreende-o como um arquivo simbólico; para Ortega y Gasset ele é o retrato poético das circunstâncias que afetam o homem, e por aí vai...

A pergunta permanece em aberto, entretanto, até porque, assim como o ser humano, o romance desvia e modifica-se ao sabor do tempo, do espaço e das circunstâncias. A crítica literária é então mero "divertissement" estéril e fundamentalmente masturbatório? E a psicanálise? Sem obter ou proporcionar respostas precisas, a psicanálise também indaga quem, no romance, assume o papel do analista e quem o do analisando. O romance como um todo, o personagem, a voz social, as indagações filosófico-míticas-psicológicas submersas, ou o leitor? Onde se situa no romance ou fora dele o "sujeito do suposto saber", e onde se instala o núcleo de resistência? E o "objeto a" onde se esconde ou entremostra? E as instâncias do hic et nunc da transferência manifestam sexualidade ou o quê? E a evasividade do "outro"? Como, e em quem, e onde no romance alguém pode deduzir os complexos e as suas estruturas? O que diz a letra à Letra? O que dizem letra e Letra uma da outra? Quem reage à Palavra ou a quem ela cativa? Como divisar a pulsão escópica escondida nos componentes do romance, no leitor, no escritor, na palavra, no signo? Como estudar um romance somente a partir do nó boromeano? Como divisar nele Drang, Ziel,Objekt, e Quelle, os quatro termos da pulsão (Trieb) tão caros a Freud? Novamente a psicanálise obtém respostas incompletas, e instala suposições e complexidade perenes.

Por tudo isso, desisto de indagar, e leio o romance pelo "prazer do texto", adotando uma ponderada atitude que serve igualmente aos letrados e aos não-letrados; leio-o como se ele fosse inocente e, também inocentemente, entrego-me ao seu fascínio, pensando que o compreendo um pouco, declarando ingenuamente que gosto ou desgosto dele e, ao largá-lo, vejo que a minha perplexidade diante da vida e de seus artifícios continua intacta.

Penso que, como condenado à psicanálise, Freud tem a sorte de nascer num século bem adequado a ela, e que o romance do século XIX é um celeiro completamente abastecido, para gáudio dos chamados "analistas de plantão" de todas as áreas do conhecimento, principalmente para os cultores da psicanálise. Com curiosidade, apanho na estante o volume de Great Expectations, escrito em 1841, pelo inglês Charles Dickens, e me disponho a passar a manhã de domingo em sua companhia. Começo empreendendo uma viagem no tempo e no espaço, e instalo-me no cronótopo do romance, onde encontro a Inglaterra vitoriana, palco do espúrio casamento entre a esfera privada e a esfera pública, e no qual a visão kantiana de moral e ética está substituída pela ideologia burguesa fundamentada no capitalismo arrogante, no "laisser-faire" audacioso, na convenção constrictora, e no preconceito moralista.

Assim como a atual novela de televisão e os programas de auditório comandam o desejo das chamadas classes D e E, a nobreza inglesa serve de modelo para a família burguesa, que se espelha na família da Rainha Vitória, um polvo de nove tentáculos destinados a tornarem-se cabeças coroadas em grande parte da Europa. Metódica, endinheirada, e relativamente inculta, a família comum é uma cópia imperfeita, mas ao mesmo tempo bem fiel da pomposa família real. Enaltecendo o dinheiro, a posição social elevada, a convenção, a segurança, a prudência, o dogma, a aparência refinada, e cultivando o luxo com o mau-gosto característico das camadas emergentes, é determinadamente materialista e dotada de senso de oportunidade; além disso, transforma a religião em dogma, as instituições em instrumentos sociais de moral duvidosa, e serve-se do trabalho como veículo de transformações vinculadas ao poder configurado no dinheiro e na projeção social.

O liberalismo incentiva a participação do indivíduo na construção da sociedade, e cada criança do sexo masculino tem a possibilidade e o direito de vir a ser um cidadão bem-posto, e de aproximar-se financeira e socialmente dos membros da pequena aristocracia. Em geral, o homem de sucesso é o ambicioso que se aproveita do trabalho alheio. Com efeito, por meio de argúcia e trabalho, e como vencedor de uma corrida de obstáculos, o "self-made man" é um competidor louvado pela sociedade inteira, e disputado pelas moças casadouras. Copiando a forte Rainha, a mulher é sobretudo esposa e mãe; usa máscara de placidez mas, na verdade, retrata concretamente o poder; como "emergente", procura copiar as vantagens, o gozo do lucro econômico-financeiro, os prazeres proporcionados pela riqueza e pela posição social que desfruta. Aparentemente frágil, protege o marido em nome da ascensão social da família, e tiraniza filhos e filhas, transformando-os em instrumentos de poder.

O liberalismo é também a ponte para a adaptação da Lei e da moral às demandas do indivíduo desejoso de progredir; respondendo pelas visões da utopia fundada em luxo supérfluo e em conforto exagerado, infiltra a imaginação das pessoas e, correlativamente, a mente das personagens de ficção, cujo universo repete o tom grotesco, melodramático e ambicioso da voz do indivíduo e da sociedade reais e, de modo especial, da família cujos membros têm parte ativa na corrida pelo poder endinheirado.

A hierarquia doméstica define as atribuições e os direitos de cada membro da corporação familiar: as armas do pai são o espírito competitivo, as lucrativas transações comerciais, a adequação criteriosa aos ditames da esfera pública, e a portentosa sexualidade que lhe permite gerar muitos filhos; por sua vez, a mãe conta com o exercício da maternidade continuada e silenciosa, exercendo poder absoluto sobre os filhos e os criados. Através do casamento, uma instituição que harmoniza as esferas pública e privada, as moças virgens podem ajudar a família a projetar-se social e financeiramente; enquanto isso, o rapaz destinado a seguir o esquema paterno de comportamento aprende desde cedo a cultuar o dinheiro e os mistérios do sexo. A criança vitoriana vem ao mundo com a etiqueta que lhe determina o papel na sociedade; quando pertence à burguesia, é reprimida, e física e psicologicamente violentada em nome do progresso econômico, financeiro e social; se pobre, cabe-lhe o trabalho desumano ou, dependendo de suas próprias capacidades de inteligência e de perseverança, tem também o direito de transformar-se num "self-made man" digno de admiração. Nesse esquema, as crianças suportam toda a sorte de freios; dependendo das circunstâncias, chegam a confundir o arquétipo do pai com a figura da mãe repressora e às vezes sádica, e todos os meninos vitorianos são Édipos declarados ou em potencial. À época, o homossexualismo – masculino ou feminino – é também comum.

A obra de ficção literária constrói uma cópia relativizada dessa sociedade e de seus conflitos e, como esperável, não raro ascende ao púlpito, tornando-se retórica, dogmática e propedêutica. Naturalmente, assim como o "morcego" de Lacan, ela não explica integralmente o mundo mas, através de recursos técnicos como ironia, hipérbole, sugestão, símbolos e metáforas, desvia, confunde, pluraliza, individualiza e meio mostra e meio esconde a realidade. Na Inglaterra do século XIX, apesar dos regulamentos do romance tradicional, propõe de modo desviante a ligação entre o privado e o público pois, invertendo os sinais, simultaneamente exalta o código de ética firmado pela figura do pai aparentemente impoluto, e insinua a distorção de tal código, sugerindo que o chefe de família não é tão virtuoso como parece mas, em geral, sob a aparência de correção e decoro, esconde um impenitente transgressor do código moral e ético que ele próprio apregoa. Da mesma forma, pintando uma mãe aparentemente dócil, denuncia a sua rijeza dominadora e o seu temperamento repressor e calculista.

Através do desvio, portanto, e expondo a discrepância entre e aparência e realidade, a ficção revela que, no mundo real, a moral das aspirações kantianas já está transformada em moralismo preconceituoso e hipócrita. Ao mostrar que a sociedade vitoriana prestigia o trabalho como meio de enriquecimento, denuncia-a como um esquema em que as classes mais altas exploram as mais fracas e mais pobres, sugerindo assim que o liberalismo não enseja a igualdade sócio-econômica mas, ao contrário, transforma a sociedade num grande acervo de desigualdades e de injustiça. Na obra de ficção dessa época, evidentemente, o homem de sucesso é também aquele que se aproveita com ganância do trabalho alheio.

É nesse ambiente de desigualdades que reponta e se desenvolve o talento de Charles Dickens que, de certa forma, incorpora o papel do "self-made man" famoso e rico que enfrenta trabalho penoso, penúria, e maus tratos físicos e psicológicos durante a infância. Com ambição, imaginação criativa, método e audácia, constrói uma obra muito pessoal e, do ponto de vista psicológico, o escritor adulto é ainda um menino que aprecia o teatro, a oratória, a tribuna, o espetáculo, o patético e a hipérbole. Não lhe faltam sequer boas pitadas de sadismo e de "voyerismo", das quais se aproveita eficientemente para retratar com humor os homens e as mulheres comuns de seu tempo, e para extravasar o seu incondicional amor pela cidade de Londres. Como uma criança, o autor já famoso ainda faz da emoção a sua primeira arma, e exalta desejos, medos, frustrações inconfessáveis através de seus muitos personagens e, de modo especial, através do ardente temperamento de suas muitas crianças vicárias. Coerentemente, ele faz das crianças o seu tema predileto, e a base maior de sua força criativa.

Dickens possui uma mente tão impregnada de infância que, em Christmas Carol, sequer precisa criar uma personagem para proporcionar ao leitor uma visão de jogo e de infância; basta-lhe o "cartoon", a sua técnica preferida, para exprimir o medo e a vitalidade imaginativa das crianças; por exemplo, referindo-se a uma casinha de vila, explica que ela "must have run there when it was a young house, playing at hide-and-seek with ohter houses, and haven forgotten the way out again."

O brinquedo, o jogo, a sexualidade, as frustrações, o patético, as emoções em geral, principalmente o medo e a ira, o sofrimento físico imposto às crianças pelos adultos severos, poderosos e geralmente sádicos são a parte mais significativa da arquitetura das crianças inventadas por Charles Dickens.

O personagem David Copperfield, o seu alter-ego mais revelador, é um menino tímido que, inicialmente atrelado às saias da mãe e da ama, sofre nas garras do pai postiço, o padrasto hipócrita e sádico que o lança no mundo do trabalho humilhante. Casa-se muito jovem, e tenta comportar-se como típico marido vitoriano em relação à sua desmiolada esposa-menina mas, depois de viúvo, volta à condição de criança tímida, às ordens da sensatez e da aparente mansidão de uma segunda esposa dominadora e hábil, inteligente e boa, verdadeira representação do típico "anjo do lar" vitoriano.

Apesar de extremamente infiltrada de emoção, a escritura de Dickens demonstra curiosidade pela sugestão velada e pela indefinição; o fog londrino é um de seus panos-de-fundo prediletos, e a atração pela dicotomia claro / escuro reflete o interesse de seu criador pelo contraste aparência/realidade. Nessa ficção, o homem, a mulher e a criança enformam o reinado do super-ego mas, simultaneamente, fervem com as demandas de um "id" avassalador. Qualquer romance desse complexo autor corresponde a um curso completo de psicanálise, principalmente aquela interessada no mundo íntimo das crianças.

O menino "Pip" , protagonista de Great Expectations, por exemplo, é um perfeito candidato à análise, com a sua história povoada por fantasmas de todas as ordens, e com os temas capitais da época integrados em sua vida pessoal e pública. O sexo, as emoções exacerbadas, a exploração da criança através de trabalho penoso e injusto, as instituições públicas em suas desumanas ou desonestas relações com o indivíduo, o tema da orfandade, a procura do pai, a figura distorcida do pai, a procura da mãe ideal e, inversamente, a realidade da mãe substituta rigorosa, cruel e não raro sádica são parte dessa vida vicária. A imaginação de Pip é atiçada pela emoção, especialmente pelo medo, pela ansiedade e pelo sentido da culpa, como o demonstra a passagem que se segue, na qual, aliás, mais uma vez o escritor utiliza magistralmente o "cartoon":

The mist was heavier yet when I got out upon the marshes, so that instead of my running at everything, everything seemed to run at me. This was very disagreeable to a guilty mind. The gates and the banks came bursting at me through the mist, as if they cried as plainly as could be, "A boy with somebody else’s pork pie! Stop him!" The cattle came upon me with like suddennes, staring out of their eyes, and steaming out of their nostrils, "Halloa, young thief!" One black ox, with a white cravat on – who ever had to my awakened conscience something of a clerical air – fixed me so obstinately with his eyes, and moved his blunt head round in such an accusatory manner as I moved round, that I blubbered out to him, "I could’d help ir, sir! It wasn’t for myself that I took it!

A culpa do pequeno personagem transforma-se em pecado e pavor, ressaltando a religião amedrontadora e castigante, configurada na virago repressora e rancorosa que, como os demais adultos do romance, transforma a vida da criança numa sucessão de momentos cruéis e sádicos. Sugestivamente, alguns dos adultos do livro são representantes da Lei, que usam em proveito próprio, transformando-se assim em verdadeiras contrafações dessa mesma Lei. Para compensar a falta do pai, e para exorcizar a presença de adultos que deturpam o papel de tutores ou de "surrogate mothers", a afetividade de Pip apega-se a uma curiosa inversão do ideal paterno, o criminoso do tipo Jean Valjean que, condenado ao trabalho forçado, foge e consegue sobreviver às custas de ajuda da criança a quem, posteriormente, e às escondidas, proporciona educação e ascensão social, tornando-o também herdeiro universal de sua fortuna. Na juventude, e mesmo em suas primeiras emoções infantis, dominado por complexidade sexual, Pip vê a mulher ora como "estrela" angélica, ora como Lilith cruel e libidinosa. A sua história é também um exercício de ascensão espiritual, uma espécie de "pilgrim’s progress" vitoriano pois, através de muito sofrimento físico e emocional, ele descobre a simplicidade e a beleza da vida.

Embora dotado de grande senso realista, Charles Dickens transfigura romanticamente a realidade e, através de ponto de vista caracteristicamente infantil, explora os temas predominantes na era vitoriana; jovem ou já na meia-idade, conserva a faculdade criadora da imaginação, e uma alma de criança. Tendo na emoção o leito essencial de suas histórias, nas quais a representação do real é uma pintura invertida, pois condiz simultaneamente com o conflito do indivíduo e com a sociedade supostamente ética e moralmente sadia mas, na verdade, cruel, repressora e preconceituosa, e na qual o bem e o mal transformam-se em farsa, o escritor, em toda a sua obra, transforma a emoção infantil no melhor tradutor literário do brilho como contraparte do lodo.

Chego ao final do romance sem haver encontrado resposta para minhas perguntas iniciais; apesar disso, compreendo que a literatura pode se aproveitar livremente da psicanálise para elaborar as suas intuições, enquanto, por sua vez, fornece à psicanálise um significante acervo de "seres de papel" que, com grande fidelidade mimética, trazem à tona circunstâncias físicas e psicológicas reais. Assim, considerando a capacidade simbolizadora da mente humana, e o magistral empenho de Freud em entreabrir as comportas do inconsciente, prefiro apelar para o bem gasto mas eficiente truísmo segundo o qual literatura e psicanálise são gêmeas inseparáveis em seu ofício de perscrutar os conflitos do homo sapiens.

Hilda Gouveia de Oliveira

Doutora em Teoria Literária (UFRJ)

Romancista, Contista, autora de

"Os Sete Tempos"(José Olímpio Editora),

"Brincadeira de Quatro Cantos"(Ed. Cátedra),

entre outros.

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