“(...) Este que aqui vedes, de rosto aquilino, de cabelo castanho, de testa lisa e alta, de olhos alegres e nariz adunco, ainda que bem proporcionado, de barbas de prata que, há mais de vinte anos foram de ouro, de bigodes grandes, boca pequena, dentes nem de mais nem de menos, porque são apenas seis e, ainda assim, em má condição, muito mal dispostos, pois não têm correspondência uns com os outros; o corpo, entre dois extremos, nem grande, nem pequeno; de cor viva, mais branca do que morena, de espáduas um tanto largas e de pés não muito ligeiros; este, digo, é o retrato do autor de A Galatéia e de Dom Quixote de la Mancha e daquele que fez Viagem do Parnaso [1614], à semelhança de César Caporal Perusino e outras obras que andaram perdidas por aí, talvez até sem nome de seu dono, que se chama Miguel de Cervantes de Saavedra. Foi soldado durante muitos anos, escravo por cinco anos e meio e foi aí que aprendeu a ter paciência na adversidade. Perdeu, na batalha naval de Lepanto, a mão esquerda com um tiro de arcabuz, defeito que, embora pareça feio, ele o considera formoso por tê–lo conseguido na mais memorável e difícil das ocasiões que os séculos passados jamais viram, nem hão de ver os séculos vindouros, lutando sob a bandeira vencedora de Carlos V, filho do raio da guerra, de quem se lembra com muita saudade. E se este amigo, do qual me queixo [D. Juan de Jáuregui, pintor do retrato de Cervantes], não se lembrasse de dizer, a meu respeito, outras coisas além das já mencionadas, eu acrescentaria a mim próprio duas dezenas de depoimentos e os daria em segredo a fim de que engrandecesse meu nome e tornasse meu talento digno de crédito, pois pensar que os tais elogios dizem somente a verdade é disparate, e isso porque nem os elogios nem os vitupérios têm fundamento, tampouco são verdadeiros"

(CERVANTES, M. "Prólogo", in Novelas Exemplares, pp. 9-10).

Resumo Biográfico

1547 - Nasce Miguel de Cervantes Saavedra, em Alcalá de Henares.
1567 - Escreve seu primeiro poema, em homenagem a Isabel de Valois, esposa de Filipe II, rei da Espanha.
1569 - Viaja pela Itália como camareiro do cardeal Júlio de Acquaviva.
1571 - Na batalha de Lepanto, como soldado, Cervantes é ferido no peito e na mão esquerda, que fica inutilizada.
1573 - Aquartelado em Nápoles, atua na tomada de Túnis, no norte da África, sob o comando de dom João da Áustria.
1575 - Em setembro, parte para a Espanha, a bordo da galera El Sol. É aprisionado pelos turcos.
1575, 1580 - Cativo na Argélia.
1580 - É resgatado pela missão católica de frei João Gil.
1581 - Em Madri, começa a escrever Galatéia.
1584 - Casa-se com Catalina Palacios.
1585 - Galatéia é publicada em Alcalá de Henares.
1587 - Serve como comissário real da Invencível Armada.
1594 - Trabalha como coletor de impostos.
1597 - Inicia Dom Quixote.
1604 - Obtém licença para imprimir a primeira parte de Dom Quixote.
1605 - Publica a primeira parte de Dom Quixote, em Madri.
1613 - Edita Novelas Exemplares.
1614 - Publica Viagem ao Parnaso.
1615 - Publicadas a segunda parte de Dom Quixote e Oito Comédias e Oito Intermédios.
1616 - Morre em Madri, pobre e esquecido, em 23 de abril.


        A Idade Moderna está se iniciando. O mundo passa por importantes transformações no século XVI. Os grandes descobrimentos e o comércio com as colônias européias do Novo Mundo contribuem com a revolução econômica, primeira etapa do capitalismo moderno. A Europa está em efervescência: começam a se formar os grandes Estados modernos; a Igreja passa pela Reforma e pela Contra-Reforma; o movimento artístico, intelectual e literário é mais intenso do que nunca.
        A Espanha, sob o reinado de Carlos V - filho de Filipe I, o Belo, Carlos I herdou o trono da Espanha em 1516 e passou a ser chamado de Carlos V ao tornar-se imperador do Sacro Império Romano-Germânico, em 1519 -, está envonlvida em guerras contra os mouros no norte da África.
        Nesse cenário nasce em Alcalá de Henares, Castilha, em 1547, Miguel de Cervantes Saavedra, filho de um modesto barbeiro-cirurgião e de uma plebéia, que, em busca de melhores condições de vida, vagueiam pelo interior da Espanha, de cidade em cidade. Cervantes, quarto filho dos sete do casal, cresce sem cuidados e sem conforto. Sua pouca educação formal lhe é ministrada por volta dos vinte anos, pelo mestre Juan López de Hoyos, um humanista espanhol. É dessa época seu primeiro trabalho literário: um soneto em homenagem a Isabel de Valois, esposa de Felipe II.
        Cervantes passa a assistir às curtas representações teatrais - os intermédios - do também espanhol Lope de Rueda, de quem mais tarde seguiria o gênero.
        O contato com estudantes e aventureiros despertam em Cervantes o desejo de conhecer outros povos e países, e ele então aceita o convite de um nobre cardeal para servir em sua casa, na Itália. Esse país assiste ao crepúsculo do Renascimento, movimento artístico revolucionário que teve como expoentes Rafael, Bramante, Michelangelo, Leonardo da Vinci, entre outros, e que produziram estupendas obras-primas.
        Aos vinte e quatro anos junta-se ao exército espanhol e luta com bravura contra os turcos na Batalha de Lepanto, na costa oeste da Grécia. As forças cristãs da Santa Liga saem vitoriosos, mas Cervantes é seriamente ferido e perde o movimento da mão esquerda. Após um período de recuperação e depois de outra expedição militar em 1575 ao norte da África, é preso por corsários em seu regresso à Espanha. Passa cinco anos de angustia e sofrimento no cativeiro em Argel. Só é libertado quando uma alta quantia - recolhida de familiares, alguns fidalgos e padres compadecidos - para o resgate imposto pelos turcos.
        De volta a sua cidade natal, dele ninguém mais se lembra: nem medalhas, nem a prometida promoção a capitão, apenas dívidas. Engaja-se como soldado raso nas tropas de Filipe II para sobreviver, mas pouco tempo depois, desiludido com a carreira militar e sem dinheiro, depõe a espada. Em 1584 Cervantes casa-se com Catalina, um mulher quase vinte anos mais nova, porém faltam-lhe o gosto pelas coisas domésticas e o apego à família e o lar. Catalina não aprova seu espírito aventureiro nem tolera a enteada, ilegítima, que ele levara consigo. Um ano depois, com a traição da mulher, advém o naufrágio do casamento.
        Nada lhe resta senão partir para Madri, onde desempenha modestíssimos trabalhos, como, entre outros, o de comissário de provisões, em que recolhe trigo e azeite para a campanha da Invencível Armada, a fabulosa esquadra criada por Filipe II para conquistar a Inglaterra.
        Cansa-se também dessa vida, e tudo o que quer é silêncio para escrever, concluir Galatéia, seu primeiro livro, iniciado ainda no período de cativeiro. Publicada em 1585, essa obra já demonstra seu talento, mas não lhe traz compensação financeira. Com afinco, até 1587 escreve cerca de trinta peças de teatro. Em 1593, com a destruição da Invencível Armada, perde o cargo de comissário.
        Mas, enfim, precisa viver, e passa então a exercer a função de coletor de impostos. Homem livre, dado a andanças e pouco afeito a números, é injustamente acusado de desvio de verbas. Até que se prove sua inocência, passa um período encarcerado em Sevilha, onde, supõe-se, começa a escrever a primeira parte de Dom Quixote, o Engenhoso Fidalgo de la Mancha.
        Em 1605, aos 57 anos, o guerreiro e poeta Miguel de Cervantes publica a primeira parte de Dom Quixote, e com ela atinge a tão esperada consagração literária. O êxito é imediato. Conhece então, por breve tempo, um pouco de homenagens que lhe seriam prestadas ao longo dos séculos. Em seu primeiro ano de publicação, a obra tem seis edições, e não tarda a ser traduzida para o inglês e para o francês. A fama de Quixote, símbolo do espírito idealista eaventureiro do ser humano, leva o nome de Cervantes além-fronteira.
        Em 1613, com 66 anos de idade, publica Novelas Exemplares, uma coleção de contos curtos, e um ano mais tarde, um poema satírico, Viagem ao Parnaso. Tenta ainda compor versos, mas acaba reconhecendo não ser essa a sua maior habilidade. Satirizando preconceitos e algumas profissões, dedica-se ao teatro, deixando de lado a poesia.
        Já velho e doente, em 1614, Cervantes participa de um concurso de poesias. Obtém o primeiro lugar, mas isso é nada para um gênio com seu talento. A segunda parte de Dom Quixote é publicada em 1615, completando sua novela de cavalaria, obra máxima do gênero que predominou na Idade Média.
        Sem amigos, vive só, pobre, doente e esquecido. Incompreendido, o mundo já não lhe interessa. Em silêncio, recolhe-se a um convento franciscano. E, como convém a um franciscano, um túmulo despojado, sem lápide, serve-lhe de última morada, em abril de 1616.