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Cavaleiros e ladrões

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Primeira Parte: Os primeiros assassinatos

Cavaleiros e ladrões 

1        

          Ceresso Laquessante havia chegado a Portos Amenos há aproximadamente três semanas. Já percorrera boa parte do centro da cidade nesse meio tempo, em sua investigação sobre os ataques de um grupo de ladrões conhecido como ‘Os Escorpiões Noturnos’, a razão de sua estadia naquela repugnante lixeira que chamavam de cidade. Este grupo era formado basicamente por humanos peritos em roubos e furtos. A classe de ladrões na cidade sempre fora a dominante como todos nas Sete Terras sabem. No entanto, a fama dos escorpiões noturnos era diferente da maioria dos grupos de ladrões existentes na cidade. Eles eram particularmente violentos e seus ataques pareciam mais uma coisa de vândalos do que de ladrões. Os ladrões seguiam um código, assim como os cavaleiros seguiam seu código de honra, e eram extremamente organizados em sindicatos. A maioria procurava fama e era muito ambiciosa, mas existiam aqueles que não furtavam só para si mesmos, mas para outros também, estes beneficiados geralmente bem pobres. A humildade era a característica mais marcante dos ladrões. Como um cavaleiro, Ceresso não admitia, mas sentia um pouco de respeito por alguns ladrões; apesar disso, eles nunca estariam com razão em perturbar a ordem imperial.

         Os escorpiões noturnos estavam fazendo em média 128 ataques por dia, sem contar os pequenos furtos. Apesar do tamanho da cidade, era uma média absurda. No entanto, na última semana, esta média se estabilizara em dez ocorrências, e nenhuma realmente de grandes dimensões. Mas tinha quase certeza, como reportara ao Imperador esta semana, que, apesar dos ataques terem diminuído quase que linearmente desde que havia chegado à Portos Amenos, sua presença ali não seria o motivo disso. Um Cavaleiro da Ordem Imperial, a mais alta ordem de cavaleiros do Império de Natumerf, poderia causar uma reação dessas em sindicatos de ladrões, mas, pelo que conseguira se informar, apenas os mais jovens e inexperientes integrantes dos escorpiões noturnos se intimidariam com cavaleiros. Descobrira muita frieza (quem sabe até mesmo coragem, mas isso era uma virtude inerente aos cavaleiros e, para Ceresso, parecia absurdo que seres tão reles a possuíssem também) nos ladrões de Portos Amenos, e apesar da aparente indiferença da maioria, estava claro que eles também se sentiam ameaçados pelos escorpiões noturnos.

         Agora, Ceresso estava hospedado na pensão ‘Beber, Comer & Dormir’, a uns três quarteirões do Porto da Areia Traiçoeira, um dos cinco portos da cidade. O dono desta pensão era Teli Ulgan, um homem alto e muito magro, com uma pele bem pálida e enrugada e olhos com olheiras bem marcadas. Estava ficando meio calvo no topo da cabeça e, sempre que olhava para ele, Ceresso pensava que se ele tirasse um pouco de pêlo de suas grossas e brancas sobrancelhas e os colocasse em sua cabeça meio devastada, seus problemas de calvície estariam resolvidos. Não era nada simpático e evitava conversar. Estava sempre presente no bar da pensão, porém pouco falava e quando o fazia era somente com sujeitos mal-encarados e bem vestidos que, pelo que já havia observado, o visitavam regularmente. A pensão era frequentada por ladrões, mercenários e bárbaros. Ceresso não queria arrumar confusões e se vestia como a maioria, às vezes tentando puxar conversa com um ou outro, à procura de informações sobre o misterioso forte dos escorpiões noturnos. Apesar disso, uma das descobertas mais importantes e assustadoras era que, às vezes, se divertia com uma naturalidade (e verdadeiro prazer!) surpreendente assistindo as brigas (ou massacres) de bêbados que eclodiam no bar.

         O quarto da pensão era bem barato e bem pequeno, com uma cama que, se fosse realmente para humanos, não queria nem imaginar o tamanho de uma para anões. Possuía uma velha escrivaninha infestada de cupins e um banheiro sujo e fedido. O colchão era duro e em vários locais estava soltando uma lã fedida e de má qualidade. As paredes ao lado de sua cama e principalmente as do banheiro estavam mofadas e com complexas teias de aranha em seus cantos. Ceresso Laquessante se incomodava um pouco, afinal era filho de pais bem pobres (e agora já falecidos) e crescera num vilarejo chamado Bernala, ao norte dos Campos Florais e ao sul do Lago das Hidras. Estava acostumado à pobreza, mas não àquela imundície.

         Areia Traiçoeira era um bairro sinistro e obscuro, que crescera em torno do porto de mesmo nome, o menor dos Portos Amenos. Possuía ruas largas de paralelepípedos e mal iluminadas à noite. Ali, o Império parecia não ter influência nenhuma e talvez por isso fosse um dos bairros preferidos de pequenos criminosos, mercenários anônimos e fugitivos de qualquer espécie. Mais à beira do porto, encontrava-se casebres pobres, mas, à medida que se afastasse, em direção ao centro de Portos Amenos ou ao sul, em direção ao Porto das Sereias, conseguia-se admirar várias casas pomposas, apesar de sombrias. Havia pessoas famosas e ricas, no entanto, tanto suas famas quanto suas fortunas eram de origens suspeitas. Definitivamente Areia Traiçoeira era um bairro perigoso e parecia fazer jus ao seu nome. Por isso Ceresso estava lá.  

2        

         Depois de jantar aquela comida horrível da pensão, eu fiquei imaginando porque Ulgan havia dado aquele nome à sua pensão e não simplesmente ‘Beber & Dormir’. Deixei metade do prato de carne de baleia com hortelã, que Ulgan recolheu com uma expressão não-dou-a-mínima-se-você-gostou-ou-não, e saí para andar e observar um pouco mais o bairro novo em que estava hospedado. Apesar de tentar ao máximo esconder minha identidade como cavaleiro, não abandonava de jeito nenhum Linei, o florete venenoso e inquebrantável que recebi de presente de Grojen, o rei dos quedins, criaturas semi-civilizadas com aparência física de bebês humanos que viviam ao norte do Império Sarconiano de Rah. Eu a escondia na bainha presa à cintura, por debaixo do manto marrom e velho, que eu fazia questão de manter sempre fechado.

         Após uma hora de caminhada ainda não tinha visto uma viva alma na rua. Não que fosse estranho; estava um bocado frio e já era tarde da noite. Havia passado na frente de alguns botecos e via suas luzes acesas e emaranhados de vozes altas, mas parecia não haver ninguém com disposição suficiente para sair àquela noite para a rua. Subi uma ladeira longa e íngreme, cujo silêncio e escuridão me deu alguns calafrios, e, quando cheguei ao seu topo, uma voz desesperada quebrou a quietude bizarra daquela rua.

         ¾ Socorro! Eu fui roubado!

         Virei-me para trás e vi uma janela do segundo andar de um casarão antigo acesa, com um homem de cabelos grisalhos debruçado sobre seu parapeito. Desci os olhos pela casa e vi uma sombra encapuzada descendo a parede velha e mal iluminada logo abaixo da janela do homem que gritara. A sombra tinha uma habilidade fenomenal, de modo que se locomovia grudado na parede como uma graciosa aranha gigante de quatro patas. Chegou ao chão e vi que carregava um saco grande nas costas. Olhou para os dois lados e, quando me viu, a uns vinte metros dele, levou a mão à cabeça, num aceno até-logo-otário e percebi um sorriso debochado por debaixo de seu capuz cinza.

         Saí em disparada atrás daquela figura cínica. Ele percebeu que eu o perseguia e, apesar de poder correr bem rápido, a grande sacola que carregava, provavelmente com seus lucros do recente latrocínio, o impedia a fuga.

         Ele dobrou à direita na esquina do final da ladeira, derrubando a cheia e fedida lixeira do restaurante ‘Harpias Montanhesas’, especializado em comida anodesa. Eu o seguia implacavelmente. Continuamos assim até chegar a um cruzamento em que ele, numa vantagem de uns dez metros agora, parou rapidamente olhando para os dois lados e dobrou à esquerda. Quando eu dobrei a esquina, o vi subindo pela parede de um mercado, o ‘Capitão Nervat – Tudo para a pesca de baleias’, provavelmente tentando alcançar o telhado. Tinha mais dificuldade agora para subir paredes, talvez pelo cansaço da corrida. Pulei, alcançando sua bota surrada, e dei-lhe um puxão, quase me dependurando nele. Com a mão que segurava a sacola nas costas ele se agarrou na parede e o saco despencou em minha cabeça.

         Larguei-o quando caí com a pancada que me atingiu em cheio. Sentado na rua, levei a mão à cabeça, meio atordoado, e vi do meu lado o saco aberto com um monte de artefatos de mármore, prata, ouro e até alguns diamantes bem grandes. Olhei para cima e ele já alcançava o telhado; deu uma olhada para baixo, me mostrou aquele sorriso cínico novamente e me arremessou uma adaga que fincou no chão bem no meio das minhas pernas, ainda abertas e estateladas. Então ele desapareceu. Peguei a adaga que ele havia jogado. Um pequeno pedaço de pano velho e meio esfarrapado estava amarrado com um barbante. Nele estava escrito: “Um presente de Milos ‘Tarântula’ Vormav”. 

3    

         Após deixar os bens do velho no Posto da Cavalaria mais próximo (que era demasiado longe), voltei para ‘Beber, Comer & Dormir’. Minha cabeça ainda estava dolorida e sentei no balcão do bar ainda cheio, precisando de uma bebida. Pedi uma cerveja e um homem que já estava sentado lá virou-se para mim:

         ¾ Noite fria, hein, amigo?

         ¾ Muito. ¾ respondi sem nem olhá-lo. Minha cabeça latejava e, apesar do frio que estava lá fora, eu precisava de uma cerveja. Aquela perseguição, além de ter me dado um belo galo na testa, havia me deixado com a garganta muito seca.

         ¾ Tome um vinho comigo então. ¾ insistiu o homem.

         ¾ Não, obrigado. Já pedi minha bebida. Além do mais, o vinho daqui dá uma tremenda dor de cabeça no dia seguinte.

         ¾ Hum... Bem como andar por ruas escuras e frias esta hora da noite. ¾ e sorriu.

         Olhei para o homem ao meu lado. Ele estava usando um capuz cinza-escuro que cobria seus olhos. No entanto, eu consegui ver aquele sorriso cínico inconfundível. Coloquei minha mão na bainha do meu florete e Milos ‘Tarântula’ Vormav no mesmo instante percebeu.

         ¾ Calma, amigo, vim aqui apenas para conversar. Além do mais, você teria sérios problemas aqui se eu anunciasse que você é um cavaleiro. Sabe, os cavaleiros aqui em Areia Traiçoeira não são muito apreciados. Bem, a não ser que estejam mortos. ¾ e sorriu de novo, dando um gole em sua caneca de vinho.

         ¾ Por quê você está dizendo isso? ¾ perguntei, tentando esconder o espanto. ¾ O que lhe faz pensar que eu sou um cavaleiro?

         ¾ Ah, quem, além de um cavaleiro, se preocuparia em perseguir um reles ladrão nesta noite e neste lugar? Quem, além de um cavaleiro, usaria uma arma tão afeminada quanto esta que está na sua cintura?

         ¾ Hã? ¾ me espantei com o atrevimento daquele sujeito mas ainda assim controlei-me. Ora, quem ele pensa que é?

         ¾ Está bem, está bem...desculpe...eu corrijo: quem, além de um cavaleiro, se preocuparia em perseguir um famoso e habilidoso ladrão como O Tarântula? ¾ deu um risinho baixo e sorveu mais um gole de seu vinho.

         Eu então o agarrei pelo nó do seu manto e sussurrei por entre os dentes em seu ouvido:

         ¾ É melhor que você, seu ladrãozinho ridículo, diga logo o que quer antes que eu te faça em pedaços.

         As pessoas que estavam perto de nós se afastaram um pouco (alguns se eriçaram), meio que prevendo uma briga e Tarântula se levantou meio curvado do banco em que estava, ainda com a minha mão firmemente pendurada em seu pescoço.

         ¾ Calma, calma, pessoal...o meu amigo aqui apenas se estressou um pouquinho, mas não é nada que eu não possa resolver. Ah, sinto lhes informar, mas não haverá briga aqui hoje, pelo menos não entre nós dois.

         As pessoas que tinham parado para prestar atenção em Tarântula então voltaram a beber e a conversar como antes, em meio a umas lamentações daquela platéia amante de uma boa briga.

         ¾ Tenho uma proposta para lhe fazer, mas aqui tem muita gente. ¾ sussurrou Tarântula no meu ouvido. Olhei para ele e parecia estar falando sério. Então resolvi lhe dar um último crédito. 

4      

         Sugeri a Tarântula o estábulo que ficava nos fundos da pensão. Não tinha um cheiro muito agradável, mas era reservado e quieto à noite. Tarântula iniciou a conversa enquanto ainda caminhávamos para lá.

         ¾ Já que ainda não fomos apresentados formalmente, eu sou Milos Vormav, chefe dos escorpiões noturnos. ¾ ele estendeu sua mão direita com um escorpião tatuado. ¾ Mas pode me chamar de Tarântula. ¾ e sorriu, mas não aquele sorriso debochado de antes.

         ¾ Prazer, Ceresso Laquessante. ¾ eu disse, disfarçando a surpresa e apertando sua mão. A conversa estava começando a ficar interessante.

         Agora sem o capuz, eu podia ver seu rosto por inteiro. Sua franja de cabelos negros quase cobria seus olhos vivos e brilhantes. Era moreno e tinha barba e bigode por fazer, dando-lhe um aspecto não muito apresentável entre os cavaleiros, mas banal entre os ladrões. Usava umas roupas meio surradas por debaixo do manto, um cinto com diversas adagas e botas de couro até o meio da canela. Não era alto e não parecia magro, porém suas vestes eram bem largas e poderiam enganar os olhos. Usava uma argola prata como brinco na orelha esquerda e atrás prendia os cabelos numa pequena trança que nem passava do pescoço.

         ¾ Sabe, eu fico imaginando o que um cavaleiro como você estaria fazendo por aqui, nesta lixeira gigante que é Areia Traiçoeira. ¾ Tarântula gesticulava muito quando falava e passou seu braço pelo meu ombro num gesto amigável demais que me deixou alarmado. E continuou, antes que eu pudesse responder: ¾ Nós, os escorpiões noturnos, não confiamos em ninguém, mas, que diabos, ainda temos um código a seguir. Vocês, cavaleiros, também possuem algo parecido, então suponho que esteja entendendo o que eu estou falando...

         ¾ Vá direto ao ponto. ¾ cortei seu papo-furado.

         ¾ Bom, um cavaleiro por estas bandas só pode significar uma coisa: você fora deserdado pela sua ordem. Portanto, logo, logo, você vai acabar se tornando um mercenário ou um ladrão, competindo conosco nesta região portuária. Assim, gostaria que você nos conhecesse um pouco mais e, quem sabe?, entrar para o nosso grupo.

         Eu estava achando aquela oportunidade perfeita para descobrir o paradeiro do esconderijo dos escorpiões noturnos. Infiltraria-me no grupo e depois seria extremamente fácil de acabar com o bando deste persuasivo, mas ao mesmo tempo carismático, Tarântula. Ele iria pagar por ter trazido o caos à Costa dos Finórios.

         ¾ É claro que lhe darei um tempo para pensar na proposta e em breve entrarei em contato com você. Mas enquanto isto, levarei isso aqui, apenas como uma parte da restituição do prejuízo que você me causou hoje. ¾ Afastou-se de mim furtivamente e estendeu sua mão mostrando um pequeno saco de moedas.

         Como num impulso, levei minha mão ao meu cinto e vi que minha bolsa de moedas estava faltando. Enquanto isso, ele correu e saltou pela cerca dos fundos da pensão, atrás do estábulo. Meu sangue subiu à cabeça e decidi que desta vez ele não iria escapar.

         Maldição! Meu orgulho fora destruído ao ter sido enganado e envolvido pela lábia daquele desgraçado. Estava furioso com ele e comigo mesmo. Por quê eu fora tão ingênuo? Nunca, nunca se deve confiar em ladrões; toda criatura viva sabe disto!

         Corri atrás dele através da pequena cerca de bambus que separava a pensão de uma casa modesta, onde morava um casal idoso que estava tomando vinho no quintal dos fundos. Logo após ter pulado a cerca, eles olharam assustados para mim e eu perguntei:

         ¾ Para onde ele foi?

         ¾ P-por ali. ¾ apontou o velhinho ainda tremendo do susto que levara de Tarântula, quando este caiu, vindo do nada, em seu quintal, e do susto logo depois quando eu apareci (vindo do nada também), quando ele ainda nem havia se recuperado do primeiro.

         Atravessei a curta casa dos velhinhos e logo me vi na rua detrás da Beber, Comer & Dormir. Olhei para os dois lados e vi Tarântula descendo a rua em direção ao Porto da Areia Traiçoeira. Fui atrás dele e passamos por armazéns de todos os tamanhos e pelo cais principal. Fomos nos afastando do porto até chegarmos numa praia. Já estava exausto e creio que Tarântula também. No entanto, ele continuava a correr no mesmo pique, enquanto minhas pernas já iam fraquejando. Foi quando de repente comecei a ouvir uma voz baixa e feminina. Acompanhei a voz murmurante já deixando a perseguição de lado inconscientemente. Olhei em direção à praia e vi na areia, banhado pelas ondas que o alcançavam, um vulto sentado e cantando: 

“Na praia eu sento e canto,

desejando te conhecer,

na areia me fiz em pranto,

quando vi que era você. 

O mar sempre foi meu lar,

você não pode ser meu, amor,

quero você comigo lá,

mas disto a natureza me privou. 

Venha comigo pra as águas,

e lhe darei meu melhor beijo,

não quero que tenha mágoas,

sinta tudo que eu vejo. 

Logo terei de partir,

e você vagará a esmo,

não quero me despedir,

venha comigo assim mesmo. 

Para o fundo do mar eu vou,

isso eu não posso mudar,

venha comigo, meu amor,

leve paz para o meu lar...” 

         Cheguei perto e ela se virou para mim. Eu havia andado até lá, seguindo sua voz melodiosa e suave, como que hipnotizado. Ela era um ser divino. De cabelos ruivos e longos, aquela sereia era um ser perfeito. Seus olhos eram verdes e claros, sua pele era branca como o mármore e seus lábios, sinuosos e carnudos, traziam uma expressão melancólica, mas ao mesmo tempo esplêndida. Meus olhos se arregalavam cada vez mais e eu não conseguia desviá-los dela; desde seu rosto maravilhoso até seus seios rosados e de proporções exatas e simétricas. A partir da cintura bem definida e sensual, se estendiam escamas que formavam um corpo pisciforme ao invés de pernas. Não conseguia pensar em nada a não ser beijá-la e ficar ao seu lado. Ela me fitou com seus lindos olhos durante algum tempo e seus lábios me mostraram um sorriso que inundou minha alma de paixão e alegria. Aquela voz calma chegou aos meus ouvidos novamente:

         ¾ Eu estava lhe esperando. Venha comigo. ¾ e me estendeu o braço. Segurei sua mão de unhas azuis e bem feitas e abaixei para carregá-la no colo e levá-la para aonde ela quisesse. Seu perfume era inigualável e extremamente prazeroso. Pensei daquele todo êxtase ter feito minhas forças desaparecerem, mas quando a suspendi, me vi forte e revigorado. Ela pôs seus dois braços em volta do meu pescoço e me deu um beijo quente e intenso, que me levou ao paraíso. E eu faria qualquer coisa, qualquer coisa, para jamais me separar dela.

5  

         Até que eu estava gostando da brincadeira. Sempre é bom para o ego de um ladrão enganar alguém, mas quando se trata de um cavaleiro, ah, aí sim é que se torna melhor. Um todo-poderoso cavaleiro, como todos eles se acham, foi humilhado por um simples ladrão como eu. E ainda havia conseguido uma boa quantia em dinheiro, a julgar pelo peso desta bolsa de moedas que eu tinha pego dele com, modéstia à parte, uma habilidade excepcional. Eu já estava acostumado a correr e via que o cavaleiro estava se cansando fácil. Só não entendi quando ele desviou seu caminho em direção à praia. Parei, vendo que o perigo havia acabado e a brincadeira ia finalmente perdendo a graça. Fiquei a espiá-lo de longe e ele parecia do nada ter perdido o interesse em sua bolsa de moedas. Fui conferir meu lucro e vi que algo estava errado. Havia tantas moedas de ouro lá que, mesmo que ele fosse bem rico, o que eu particularmente não acreditava, ele cairia de cansaço antes de desistir da perseguição. Aproximei-me um pouco mais e o vi parado diante de um vulto sentado na areia e banhado de vez em quando pelas ondas que quebravam e conseguiam chegar até eles.

         Quando ele se abaixou e pegou o que quer que seja nos braços, percebi que aquilo não possuía pernas humanas. O cavaleiro começou a carregá-la em direção ao mar e foi aí que me toquei que ele havia sido encantado pela voz de uma sereia. Não sei porque demorei tanto para chegar a esta conclusão; afinal, já tínhamos corrido tanto que estávamos bem perto do Porto das Sereias. Bom, a aventura desta noite então iria acabar com um fim trágico para o cavaleiro: cada um tem o que merece. Já ia me afastando, quando uma cinza se reacendeu em minha cabeça. 

6    

         Durante a infância, Tarântula viveu em Perene, uma cidade costeira localizada na Península dos Portos, ao norte da Baía Rasa. Seus pais, sua irmã menor e ele moravam num casarão antigo da época da fundação da cidade. O menino quase não via o pai, sempre viajando, e nunca realmente soube em que ele trabalhava. Era um homem misterioso, cheio de segredos até mesmo para a família. Sua mãe cuidava das crianças com uma quase devoção e uma proteção absurda. Ela vivia mergulhada num mundo de medos, o qual nem Tarântula nem sua irmã conseguiam entender. Alguma coisa realmente a assustava; algo que talvez pudesse vir a acontecer. Como crianças, eles não compartilhavam de seu pavor aparentemente infundado e, mesmo que fosse justificado, eles nunca compartilhariam este temor irracional.

         Num dia chuvoso, comum em Perene, os dois pequenos esperavam a volta do pai de uma longa viagem que ele havia feito até os Pântanos dos Espectros há quase um mês. Tarântula, ou Milos, seu verdadeiro nome, e a irmã, Melina, brincavam de duelos no jardim à frente da casa. Ano passado, sua mãe havia lhe dado uma grande adaga de madeira e um bastão também de madeira para Mel. Comparadas ao tamanho de crianças e com muita ajuda da imaginação infantil, estes dois inofensivos rústicos objetos se transformavam em uma espada letal e um poderoso cajado, seus brinquedos favoritos. Milos já havia mais de mil vezes pedido ao pai para que, assim que completasse os doze anos de idade (o mínimo para poder entrar para a Escola de Cavaleiros; e, veja só, faltava apenas um ano!) ele o matriculasse naquela escola mais desejada por um garoto de doze anos do que o próprio circo. Mas sempre que ele fazia isso, seu pai parecia não gostar, abaixava a cabeça, não o respondia e saía de perto dele. O menino ficava meio constrangido e não insistia. Mas sabia que o pai o colocaria lá; afinal, quem não gostaria de ser um cavaleiro ou ter um como filho?

         ¾ Eu fiz o Sol Maior cuspir luz em você, ó Cavaleiro da Justiça! ¾ dizia Mel meio a risinhos e apontando o cajado para o Sol Maior.

         ¾ Aaargh!!! ¾ gritou o garoto, ajoelhando na grama e tentando cobrir os olhos com os braços ¾ O bravo Cavaleiro da Justiça é protegido por sua armadura de trapos mágicos mas quase é cegado com a intensidade dos raios! ¾ olhou por uma fresta entre os dois braços que lhe cobriam o rosto: Mel vinha com o cajado para cima dele ¾ Mas veja: para a sorte do destemido cavaleiro começou o pôr-do-sol! ¾ Mel hesitou e parou, olhando para trás ¾ Agora o cavaleiro pode finalmente voltar a enxergar e derruba o perverso mago no chão de pedras de sua masmorra! ¾ Tum! Rolaram no chão, o pequeno Milos puxou sua ‘afiada espada’ da bainha e apontou para o pescoço da garotinha ¾ Sem o seu Cajado do Poder você não é nada! Renda-se, ó Feiticeira dos Sóis.

         ¾ Não! ¾ Mel gritou.

         ¾ Como não? ¾ abaixou a ‘espada’, surpreso.

         ¾ Não me rendo! ¾ confirmou a garotinha.

         ¾ Ah, que sem graça! Era pra você se render. Agora eu não sei o que fazer. ¾ o menino se sentou na grama com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos nas bochechas.

         Mel rolava no jardim dando gargalhadas enquanto observava o irmão emburrado. Quando conseguiu se recompor, a menina catou uns tufos de grama e jogou na cabeça do jovem Tarântula, acabando assim com seu aborrecimento e começando uma nova brincadeira: ‘arremesso de grama’.

         As crianças estavam quase esgotadas de correr e brincar quando um homem de vestes esfarrapadas saiu subitamente de trás dos arbustos que circundavam o jardim da frente e cambaleou, avançando sobre as crianças. Melina imediatamente gritou e correu pelo caminho de pedras que cortava o jardim até a casa. Milos parou e olhou para o homem encapuzado e sujo. O aparente mendigo caminhava com dificuldade e quando tentou se aproximar mais do garoto, fazendo-o recuar e tomar uma posição de fuga, tropeçou e desabou no chão. O menino então tomou uma atitude que não faria jus à sua fama quando adulto. Aproximou-se do maltrapilho e tentou levantar seu capuz para conhecer seu rosto. Neste momento, o homem agarrou seu braço, e o futuro Tarântula caiu sentado na grama com seus olhos esbugalhados de medo.

         ¾ Milos... ¾ o homem pronunciou entre os dentes com uma expressão nítida de esforço.

         ¾ Pai? ¾ o menino se recompôs e reconheceu a face de seu pai, camuflada pelo cansaço, pela sujeira e pelo sangue que escorria de sua têmpora esquerda.

         ¾ S-sua mãe... Melina... fuja com... argh... elas...

         Terminada a frase, os mesmos arbustos dos quais surgiram o homem, se abriram. Milos olhou para cima. Duas grandes silhuetas reluziram com os últimos raios do Sol Maior. O menino ficou paralizado de estupefação e admiração: os dois homens estavam trajando armaduras prateadas esplêndidas, que os cobriam da cabeça aos pés. Havia detalhes azuis nos braceletes, nas tornozeleiras, no peitoral e no elmo, do qual se projetavam plumas azuis. Milos se deteve tanto admirando as armaduras que se esqueceu momentaneamente dos rostos dos homens. Finalmente ao fitá-los, notou que eram jovens e... idênticos! Aos olhos de uma criança, pareceriam dois deuses gêmeos prateados; para o jovem Tarântula, eram mais que isso: dois Cavaleiros da Ordem Celeste, criaturas que ele idolatraria mais que qualquer deus.

         Após poucos segundos de estupor, o menino despertou com um grito desesperado. Abriu os olhos, piscando-os como se estivesse tentando descobrir se aquilo era um sonho ou não. Definitivamente não era. Olhou na direção de onde vinham os gritos e viu sua mãe correndo, carregando Melina com um braço e uma adaga na mão oposta. Ela gritava seu nome.

         Seu pai largara seu braço e agora tentava se erguer apoiado numa espada quebrada ao meio irregularmente. Vendo que sua família corria perigo, o bravo e esgotado homem invocara força das profundezas de seu ser. Se firmou de joelhos e, segurando as bochechas do menino com as duas mãos, lhe disse suas últimas palavras. Palavras que seriam amaldiçoadas pelo jovem Tarântula e glorificadas pelo adulto Tarântula.

         ¾ Fuja, filho... fuja, e viva... acredite em seu pai pelo menos uma vez na vida: não há desonra na fuga. Lembre-se: antes um covarde vivo que um corajoso morto ¾ mal terminada a frase, um dos cavaleiros retirou a fabulosa espada de sua bainha e ficou-a em suas costas.

         O menino recuou chocado, se arrastando de costas pela grama. Os dois divinos cavaleiros que via à sua frente imediatamente se transformaram em assassinos vis e cruéis. Uma triste confusão entorpeceu sua alma ao ver o imenso cavaleiro pisar com sua metálica bota no corpo inerte do pai e puxar aquela espada maligna banhada em sangue. Milos fechou os olhos. O terror e decepção que se instalaram neles transbordaram em silenciosas lágrimas. O tilintar da perversa armadura, os gritos desesperados de sua mãe, seus soluços inconscientes, e até mesmo o mórbido silêncio do outro cavaleiro, retumbavam em seus ouvidos como uma melodia infernal. Além de cortar a carne de seu pai, aquela maldita espada havia rasgado sua inocência, seus sonhos e suas fantasias infantis. O sanguinário cavaleiro olhou então para o menino com um sorriso doente. 

7  

         Um dos meus pontos fortes como um ladrão era a frieza. Não me importava com nada nem ninguém além de mim mesmo. Por quê agora estou hesitando em deixar alguém que eu nem conheço nas mãos do destino? Não alguém qualquer, mas um cavaleiro. Faz bastante tempo que deixei todo meu ódio e meu sentimento de vingança para trás, mas um cavaleiro havia mat...

         Chega! Não deixarei estas memórias virem à tona novamente. Meu passado e meu rancor quase destruíram minha vida. Minha vida. A única coisa com que me importo. Viver. Viver acima de tudo. ‘Antes um covarde vivo que um corajoso morto’. Isso aí, cavaleiro, agora você está sofrendo na pele as conseqüências. E, que pena, não posso fazer nada quanto a isso. 

         Posso sim.  

         Mas por quê eu faria? Não vale a pena correr um risco desse. 

         É, só valeria a pena correr este risco se você estivesse no lugar dele. Mas, veja só, você não poderia correr este risco se estivesse lá. Pense: o que o cavaleiro faria no seu lugar?

           “Milos, hein? Olhe isso...”       

         Você sabe que não. Ele não faria isso. Ele é realmente um cavaleiro. Ele tem um código de honra a seguir.  

         Mas foi um maldito cav... Pare! Quem é você, afinal? Minha consciência?

  8        

        Está aí. Tudo o que eu precisava agora: uma consciência. Por Mephisto! Um ladrão com consciência? Eu não iria durar muito. Voltei para a praia.      

         Peguei dois punhais, um em cada mão, e fui me aproximando sorrateiramente por trás deles. Se a criatura me visse enquanto eu tentava obter um ângulo bom para melhorar a precisão do arremesso, ela certamente voltaria a cantar e adeus Sr. Tarântula. Eu me movia mais rápido, porém com cautela e silêncio, pela areia da praia, enquanto eles cada vez mais se embrenhavam pelo mar adentro.

         Vi os dois se beijando e percebi que aquela era minha deixa. Corri para frente e, quando a sereia parou de beijá-lo e me olhou por cima dos ombros do cavaleiro, eu atirei um dos punhais. O tiro fora perfeito: o punhal fincou em sua garganta, atravessando-a. Sua cabeça pendeu dos braços do cavaleiro. Ele ficou um tempo olhando para o corpo dela e o sangue verde-escuro que jorrava de sua garganta. Depois a largou no ar e a criatura caiu toda torta na água. Ele olhava para suas mãos sujas do líquido verde e, quando parecia realmente desperto do encantamento, as lavou no mar. Ainda nem tinha se dado conta de que eu estava ali, quando eu gritei para ele:

         ¾ Sabe, cavaleiro, poucas pessoas têm um contato tão íntimo com uma sereia e sobrevivem!

         ¾ Tarântula? O que aconteceu aqui? ¾ disse ele, saindo com lentidão e dificuldade do mar.

         ¾ Você estava me perseguindo, atrás de suas valiosas moedas, quando foi atacado por uma sereia. Sorte sua eu estar por aqui ainda.

         O cavaleiro fez uma cara de quem não estava entendendo nada. Acho que era difícil para ele acreditar num ladrão (ainda mais depois do que eu tinha feito a ele, hehehe), mas mais difícil ainda acreditar que devia sua vida a um ladrão. 

         Mais difícil ainda é você acreditar que salvou a vida de um cavaleiro.  

         Pára! 

         ¾ Bom, cavaleiro, chega de aventuras por esta noite. É melhor desistir de suas moedas porque agora você me deve mais que isso. Até o nosso próximo encontro, se é que haverá algum!

         E deixei ele lá, ainda meio que atordoado, mas a salvo. Apesar de tudo, eu não podia dizer que não tinha sido uma noite proveitosa. Olhei mais uma vez para as moedas e fui para casa, agora com a minha consciência calada e o bolso bem pesado.

 

 

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Última modificação: 04 janeiro, 1980