Dois filhos de Shakespeare
Histórias do tipo “Romeu & Julieta” são vistas a rodo na Sétima Arte. Produções que destacam as favelas do Rio de Janeiro são - igualmente - comuns na cinematografia brasileira. Contudo, poucos conseguiriam conjugar esses dois contextos num longa funcional. Como este “Era Uma Vez....”, um "verídico contos de fadas” de Breno Silveira, autor do bem-quisto “2 Filhos de Francisco”, cinebiografia (belamente encenada) da popular dupla sertaneja “Zezé Di Camargo & Luciano” - a película de maior bilheteria na “retomada” do cinema nacional - atingindo a expressiva marca de 5.3 milhões de expectadores. Apegando-se aos aspectos mais emocionais da obra, e menos no impacto da violência, melhor descrita nos exemplares ao estilo de “Cidade de Deus”, o cineasta consegue unir (neste daqui) a essência do amor clássico de William Shakespeare e a veracidade das personas que compõem a (atual) trama apaixonada. Situada entre as esquinas - divisórias - da riquíssima Ipanema e o empobrecido morro do Cantagalo.
O bravo romance do honesto favelado com a comportada “patricinha” da elite carioca serve de balanço crítico aos preconceituosos inerentes da segregação social, estes, delimitados em espaços inter-relacionados, mas ainda sim, separando (por poucos metros) pobres e ricos. Vide os contrastes característicos da cidade “maravilhosa”, onde estas classes econômicas são inacreditavelmente vizinhas. Breno se aproveita disso na hora de fotografar a (esmera) paisagem comum aos dois ambientes, principalmente se lambuzando das diferentes visões exploradas nas sacadas de onde vivem os protagonistas amantes. Do apartamento grã-fino da moça encaramos de frente o típico subúrbio terceiro-mundista, do barraco do menino, por sua vez, temos o sol emoldurando as praias de um dos mais belos cartões postais verde-amarelos. Conceitualmente inversos, as imagens retratam a intromissão destes “mundinhos pseudo-lacrados” se incidindo um sobre o outro. Concomitantemente. Assim, do condomínio (fechado) vemos a miséria em contraponto, enquanto os céus pintam a beleza posta adiante das terríveis condições de vida observadas (repetidamente) nas tais “cidadelas verticais”.
Neste ambiente propício de boas e más influências, o roteiro tece o caminho cruzado desse enrosco amoroso - proibitivo de berço. Na pura tradição Shakespeariana. Silveira aloca-se no tema utilizando vários interpretes-personagens verossímeis, destacadamente, agregando um rostinho conhecido do neo-realismo brazuka, Thiago Martins, cobra criada do recitado longa-metragem de Fernando Meirelles. Descoberto num selecionado que procurava talentos nas comunidades carentes, Martins confunde-se com sua cara-metade, misturando (nitidamente) casualidades naturais à fantasia elementar da frase título: “Era Uma Vez...”. O ator consegue legitimar sua figura, abusando da própria vivência pessoal (que lhe valeu - inclusive - o papel), emprestando seu carisma para apadrinhar uma composição (nua) crua e realista. Auxiliado, logicamente, pelo restante do elenco, todos nutrindo destas mesmas qualidades - compondo (expontaneamente) cada pecinha no tabuleiro (fidedigno) - atitude cênica bastante estimulada pelos realizadores, filmando in loco e recriando com precisão as vicissitudes de cada um dos locais vizitados. Amparando a produção na ajuda das comunidades retratadas nas telonas.
Sem querer entregar o “The End”, já antevisto pelos admiradores do texto original (escrito lá trás pelo - brilhante - dramaturgo britânico), “Era Uma Vez...” deixa escapar seu teor fatalista por uma válvula incrivelmente mal empregada. De repente, criasse um supla-realismo que se apodera da autenticidade verdadeira do produto - reposicionando o enredo numa seqüência de situações limítrofes, alegóricas e absurdas. Quase jogando na sarjeta uma construção - até aqui - fundamentalmente firme. Calcada em questões objetivas e conduzidas sem qualquer arrobo bobo/extravagante (aka destoante). Todavia, as cortinas da “peça filmística” se fecham forçosamente, entregando-se a uma resolução rápida e grosseira, do tipo que almeja “chocar” o expectador - só que de forma fartamente equivocada. Sendo fiel ao teor propagandeado em todas as demais conversões de “Romeu & Julieta”, entretanto, sem adaptá-las as condições (únicas) apregoadas pela modernizada (presente) empreitada - o grande mérito da projeção até então, aliás. Cujo conteúdo termina (infelizmente) “relativizado” pelas indulgentes cenas finais. Desnecessárias e contrárias ao lídimo propósito deste descendente Shakespeariano.