Decreto
Municipal nº 9.396 de 13 de
junho de 1990
Determina o tombamento definitivo do espelho d´água da Lagoa Rodrigo de Freitas
e cria área de proteção do entorno.
Remando contra a correnteza:
o sentido da cidade na luta pela preservação do Estádio de Remo
da Lagoa[1]
.
O que é uma cidade?
Há muitos planos envolvidos
nesta aparente obviedade.
No plano material empírico,
como mero acidente do mundo, a cidade é uma concentração de obras, produto
histórico, um imbricado arranjo de objetos, espaço denso construído pelo Homem.
Um ponto a mais no planeta Terra.
No mundo dos negócios, a
cidade é uma concentração extraordinária de oportunidades de investimento e
lucro. Um ponto na complexa e instável teia de relações do espaço econômico. Um
nó a mais na rede técnica-informacional do mundo contemporâneo.
No plano da política, a cidade
é uma concentração institucional de poder, regedora do espaço regional
circundante. Também é, na relação entre seus habitantes e o aparato
governamental, uma fonte inesgotável de tensões e acordos. A cidade pólis.
No mundo da cultura, a cidade
emite informação, valores e novos padrões de conduta, pois concentra intensa
vida científica, artística e cultural. Produz imagens e símbolos, ela própria
um ícone.
Todas estas definições expõem
a complexidade da urbe moderna. Mas ela é muito mais que isto. A cidade não é
apenas o espaço construído, movido por fluxos econômicos, gerido por um aparato
governamental e alimentado pela profusão de informações e idéias. Ela comporta
também, no plano da vida cotidiana, as formas de existência, as sociabilidades.
Abriga a diversidade das formas de ser, de ver e de se ver no mundo. Cidade
como resistência à mesmice padronizante da globalização.
Cada cidade se faz e refaz
cotidianamente na relação de seus habitantes com os espaços urbanos. As pessoas
percebem o mundo a seu redor, atribuem sentidos ás coisas e aos lugares da
cidade, usam, se apropriam, animam os espaços, conferem sentido e significado à
cidade. Produzem a cidade. Cidade como identidade, como estado de espírito.
Cidade patrimônio imaterial.
No Rio de Janeiro em
particular, o processo histórico pelo qual seus habitantes conquistaram o mar
ditou para sempre a forma da cidade e ainda hoje define em muito o
inconfundível jeito carioca de ser, de estar no mundo, corpo e espírito.
Foi árdua a conquista do mar.
Por séculos o tememos, e a cidade se ergueu e cresceu de costas para o litoral,
como testemunha em nossos dias edificações como o Museu da República, no
Catete. Tomado como temido território do insondável, restos abissais do
dilúvio, reino de criaturas assombrosas, o mar comparecia no imaginário de
então como negatividade.Os próprios relatos bíblicos , ao conceber o Éden, não
incorporam a presença do mar.
Domínio particularmente denso
de crenças mágicas, nossas praias eram unicamente habitadas ou freqüentadas por
índios, escassos e paupérrimos pescadores e nômades marisqueiros. A Família
Real nos legou a novidade de banho de mar como finalidade terapêutica, mas até
meados do século XIX poucos se arriscavam pelos domínios de Iemanjá. Não por
acaso, no ano de
Naquele final de século XIX, A
cidade se estendia pelo que hoje chamamos Zona Norte. São Cristóvão e Tijuca
eram os bairros mais disputados pelas elites e classes médias. Copacabana não
passava de um vasto e deserto areal, bem como Ipanema e Leblon o foram até as
primeiras décadas do século XX, e mesmo a Barra da Tijuca até a década de 1960.
O uso popular do mar alterou em definitivo esta geografia triste e sedentária,
enclausurada nos casarões coloniais.
Paralelo ao uso balneário,
outra atividade fundamental neste processo de conquista do mar foi a difusão do
remo, praticado sistematicamente na cidade desde pelo menos 1851, quando
se funda o grupo “os mareantes”. Nas últimas duas décadas do século XIX,
multiplicam-se os clubes de regatas e se realizam competições muito disputadas.
O Pavilhão de Regatas da praia de Botafogo, em 1904, é uma das realizações de
Pereira Passos que muito contribuiu para a popularidade do remo na cidade. Trata-se,
em toda a nossa história, da primeira intervenção urbanística promovida pelo
poder público em nome da prática esportiva. O remo abria o caminho para a
valorização do esporte, para o comprometimento do Estado para com a difusão da
prática esportiva organizada.
Ao animar e colorir o cenário
antes bucólico das águas da Baía de Guanabara, o remo não apenas contribui para
a nova geografia carioca, agora voltada para a orla. O remo estabelece uma
nova corporeidade, decreta o fim do sedenterismo, nega a tradicional
obesidade das elites, a flacidez dos músculos e a languidez romântica da
juventude boêmia. Como afirmou Gilberto Freyre, sobre a atitude sedentária dos
que dispunham de escravos em nossa sociedade colonial, “metidos em casa, e
sentados a mor parte do tempo, entregues a uma vida inteiramente sedentária,
não tardam que não caiam em um estado de preguiça mortal”. Ao desbancar a
liderança do turfe na preferência popular, o remo instaura uma nova concepção
de esporte, na qual o herói musculoso é o homem, e não um cavalo. Neste momento
se dá a ascensão da figura do sportsman, que aposenta o pince-nez
e o ar de austeridade do vestuário escuro e pesado para expor alegre e
publicamente seus músculos. Se o Rio de Janeiro é internacionalmente
reconhecido por sua forte inclinação ao fisiculturismo, tem seu tributo às
remadas.
Se o Rio de Janeiro Imperial
tem São Cristóvão como símbolo aristocrático e a nobre Tijuca dominada pelos
barões do café, a cidade republicana volta-se para o mar, para a zona sul,
tendo a enseada de Botafogo como importante centro da vida social, animada
constantemente pelas regatas. Ao menos 23 clubes de remo compunham nossa
paisagem litorânea no início do século XX. O remo criou uma cultura
esportiva na cidade, que frutificou e propiciou o advento de outras
modalidades, inclusive o futebol, conforme aponta o professor Victor Melo, em
seu livro “Cidade Esportiva”.
A busca de áreas amplas para
reunir espectadores em torno de um espetáculo esportivo, que enaltece a
atividade ao ar livre, tendo o sol e a oxigenação como ingredientes de uma
prática saudável, reflete um novo sentido de uso dos espaços públicos. Na
cidade colonial, o estado precário de conservação, o porte acanhado, a tradição
cristã de uso austero e ritualizado, o aparato de controle e vigilância da
burocracia estatal, e por fim a escravidão, dotavam os espaços públicos de um
significado predominantemente pejorativo e repelente às parcelas dominantes da
sociedade. O remo ajudou a modificar esta cidade, a construir o jeito
carioca de viver, de conviver. Esta informalidade na vida social,
internacionalmente reconhecida e elogiada.
Mas a cidade é dinâmica,
instaurando novas formas de uso. No transcorrer do século XX, o progresso
disseminou o uso do automóvel, e com ele a demanda por novas e modernas vias. A
criação do Parque do Flamengo, nos moldes das park ways
norte-americanas, se insere neste processo de modernização da cidade. Sem
dúvida um belo equipamento público, e de grande funcionalidade para o tráfego,
mas a solução automobilística desalojou quase todos os nossos clubes de remo,
que em contrapartida receberam do poder público o direito de se estabelecer na
orla da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Neste contexto de
transferência dos clubes se ergue o Estádio de Remo da Lagoa em 1954,
importante marco para a atividade, mais ou menos cem anos após a criação da
primeira agremiação de regatas. Sua importância ultrapassa a condição de único
equipamento desta natureza em todo o Brasil. Trata-se de uma obra de
arquitetura moderna. E o modernismo, todos sabemos, expressa um momento
particularmente grandioso na vida nacional, momento de utopias
desenvolvimentistas, de intensos debates em torno da nacionalidade, de grandes
realizações. A arquitetura moderna brasileira é mundialmente reconhecida e
premiada. É neste valioso esforço criativo da civilização brasileira, que
se insere o Estádio de Remo da Lagoa.
Para além de sua beleza
arquitetônica e de seu incontestável significado patrimonial, o estádio de remo
cumpriu relevante papel na prática esportiva carioca com inclusão social.
Através do Programa de Iniciação Esportiva, do governo estadual, 2.500 crianças
ali praticavam o remo e outras modalidades, nas décadas de 1970 e 1980, não por
acaso um período áureo na performance de remadores brasileiros em competições
internacionais. Crianças de comunidades como Pavão, Pavãozinho, Vidigal,
Rocinha e Cruzada são Sebastião. Todavia, desde 1994, com a concessão de uso
para uma empresa privada, a Glen, todo esse uso público, social, comunitário,
foi extinto. E o belo e socialmente inclusivo equipamento entrou em agonia.
O papel do estádio e dos
clubes de remo na Lagoa ultrapassam o aspecto meramente esportivo-recreativo.
Eles cumprem também uma importante função de preservação paisagística, pela
própria natureza do uso, que não agride o meio ambiente, ao contrário, compõe a
cenografia magnífica da Lagoa. O remo garante que a orla lacustre seja
preservada, mantendo-se aberta ao uso comunitário, mantendo a perspectiva de
todo o espelho d’água para quem ali passa.é portanto uma atividade que não
exclui outros usos, ao contrário do projeto de construção de um complexo de
shopping e salas de cinema, que impedirá a vista daquela bela paisagem. O
estádio de remo, inteligentemente, foi construído como estrutura vazada, para
manter nosso contato com a paisagem.
Por tudo que aqui foi dito, a
iniciativa de implosão do Estádio de Remo consiste em muito mais que agressão
ambiental-paisagístico-patrimonial de ordem legal (pois o bem é tombado).
Trata-se de um projeto de substituição de uma atividade que se harmoniza com o
entorno, por outra que impede a contemplação da bela paisagem natural e que
agravará o caos de tráfego na área. De substituição de uma obra de reconhecido
valor arquitetônico, símbolo de um Brasil que sonhou alto e buscou sua melhor
inserção no mundo, por uma arquitetura vulgar, padronizada. De substituir a
saudável tradição esportiva pelo lazer sedentário-comercial. De substituir o ar
livre pelo espaço fechado, numa área de aberrante beleza cênica. De substituir
o público pelo privado. De substituir a possibilidade de o uso comunitário pela
elitização. Enfim, de substituir lamentavelmente uma forma de viver/fazer
cidade por outra.
Nossa cidade é reconhecida mundialmente por suas belezas naturais
e pela alegre e intensa vida social e esportiva ao ar livre. E não por seus shopping
centers.
[1] Gilmar Mascarenhas, professor de Geografia da UERJ. Membro do Instituto Virtual dos Esportes e do Comitê Social do Pan