Rebela-se em cerimonial militar e é confundido com paciente psiquiátrico

Anarquista conta como foi seu primeiro motim de uma pessoa só

O dia em que eu não jurei a Bandeira:

Crespo Aerolito

 

 

Acho que escrevendo a história eu vou definitivamente parar de repeti-la para todo mundo, inclusive quem já ouviu duas vezes. Fico falando de uma coisa tão besta, deve ser porque eu fico orgulhoso, como se eu fosse revolucionar o mundo com isso.

 

Nunca jurei a bandeira nacional. Fiquei indignado em estar lá no dia e fiz uma birra. Além de eu errar todos os passos de formação, fui a contrapelo: troquei aquele papo de morrer pela pátria por uma letra da Legião Urbana que me ocorreu. Até pensei em Nirvana e Chico Science, que eram as bandas que eu mais sabia as letras na época. Mas Legião soou mais solene, para tal momento anarquista.

 

No dia marcado, todo o contingente militar dispensado (a galera de 18 anos) devia ir a uma cerimônia, devidamente uniformizado com camiseta branca. Num palco, a presença de tais e tais Figurões da cena política, alguns fardados, etc. Não quis ir, mas achei que corria o risco de perder meus “direitos civis”, algo assim, entre outras ameaças maternais da Mãe Pátria. E não queria ficar “marcado no sistema”, entre outras paranóias no future que viesse a ter em meus dezoito anos.

 

Certo, digamos que eu fosse um garoto bonzinho e achasse ótimos esses rituais institucionais de amor à pátria. Mas, por exemplo, mandaram ir de camiseta branca, adivinhando que cada jovem da cidade teria uma para vestir. Tinha lá um mar de meninos, todos de camiseta branca, mesmo que fosse de propaganda eleitoral ou de surf. Assustador. Eu também estava vestido com a minha.

 

A cerimônia era aquela coisa seriíssima, de uma época ou de uma mentalidade que eu achava que tinha ficado em outro tempo.

 

Talvez por eu ter nascido bem depois do fim da II Guerra, talvez por estar tão distante dos heróis americanos, é que eu não ache legal ficar sob o comando de alguns milicos algumas horas enquanto eles dizem “vocês foram dispensados das suas obrigações de Rambo, porque o governo que nos sustenta cortou nossas asinhas, o que nos obriga a termos poucos manés para marchar, para tentarmos transformar eles em homens. Jurem isso, esta é a Bandeira que defenderemos”.

 

Defenderemos esse país dos americanos e dos terroristas até que o último avião Tucano esteja no ar. Até que nosso último tanque afunde nas enchentes. Defenderemos até a última árvore da Amazônia. Não está muito longe o dia de precisar.

 

Argh minha família kerida foi junto, estilo “momento importante da minha vida”. Agora eu lembro minha avó (sempre ela) me dizendo que não era certo jurar porque “Judas tinha jurado e depois traíra Jesus”. Ela é evangélica. Mas mesmo estando eu me lixando para formações, disciplina & uniformes, estava até lhe dando ouvidos, me recusando a fazer promessas que talvez eu possa vir a não cumprir. Eu amo o Brasil, mas jurar por ele com um monte de burocrata olhando não é muito meu clima. Muito menos jurar minha vida, porque eu detesto guerras, militares e suas guerras, autoridades e seus cerimoniais, políticos e suas promessas.

 

Também me orgulho do gesto anarquista ridículo de “ser o último menino a baixar a mão depois da galera fazer sinal-de-dedo para o prefeito e sua comitiva”. Inclusive a figuraça etílica do prefeito, olhou na direção em que eu me encontrava, nessa hora. É claro que daí eu baixei o braço. Não sou tão louco assim.

 

Depois minhas tias até falaram que importante mesmo seria aproveitar que tinham milhares de garotos de 18 anos ali para fazer uma palestra ilustrada sobre sexo seguro, mandar a galera jurar que ia usar camisinha, agulha descartável e que não ia dirigir bêbado. Também lembraram que alguns daqueles “garotos” já eram pais, já trabalhavam desde os 13, nem todos eram adolescentes de cérebros vazios.

 

Na verdade a obrigação de todo esse protocolo, algum outro resquício da Ditadura Militar, também deve ser enfadonha pros burocratas idiotas que têm que estar lá e falar aquelas baboseiras. Bla bla bla. Menos para o militar que anunciou o tal juramento para repetirmos. Este, enquanto ordenava a formação das fileiras e nos passava a ladainha do juramento, tinha na voz o orgulho de ser paranóico e patriota. De sua missão, de dar o sangue e a vida pela ‘soberania nacional’.

 

Já que eu, mesmo a contragosto, estava lá, aproveitei o melhor que pude, fazendo do meu não-juramento um gesto de amor a mim mesmo; ao que eu acredito, à poesia, ao rock’n’roll, à minha anarquia, e principalmente, meu amor pelo Brasil brasileiro, amor que não depende de palavras garbosas porra nenhuma. Mesmo que poucos entendessem, ou como se alguém estivesse percebendo, um único ser tentando destoar no meio de uma massa de felizes agraciados com a dispensa do Serviço Militar Obrigatório. E agora ali conformados, uniformizados, em linha reta,  se vendo obrigados a jurar sua própria bandeira.

 

 

Trecho de “Será” (Legião Urbana)

 

Tire suas mãos de mim

Eu não pertenço à você

Não é me dominando assim

Que você vai me entender

Posso estar sozinho

Mas eu sei muito bem onde estou

Você pode até duvidar,

Acho que isso não é amor

 

Crespo Aerolito, aglutinado e aglutinador urbano, escreve para Combos & Tombos.

 

 

 

Mas a+:

 Eder S.

 

 

Interessante... É preciso que tenha uma lei me obrigando a defender isto, já que acho que isto não me pertence. Meus irmãos em outras partes do globo são submetidos à mesma lei. Porém, em outras partes, ainda não é preciso que tenham leis os obrigando a defender o que eles estão defendendo, já que o que eles estão defendendo realmente pertence a eles.

 

Milhões de irmãos meus já foram obrigados a matar outros milhões por algo que no fim, nem era deles de verdade. Passaram por uma baita lavagem cerebral... Não reconheciam mais uns aos outros, ficavam confusos. O pior é que os verdadeiros donos das coisas não sofreram um arranhão sequer.

 

Mas meus irmãos são bons e sabem reconhecer o verdadeiro inimigo, quando for a hora de eles defenderem o que é realmente deles, o que deveria sempre ter sido deles.

 

Quando for a chance de eu defender o que é meu não vai precisar de lei me obrigando a fazê-lo... Caralho, não precisa nem pedir!

Não fui eu quem desenhou essas linhas no mapa...

 

 

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