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Reflexões
Autora: Sara Maria Binatti dos Anjos |
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Sou uma
pessoa comum. Fui criada com princípios morais comuns.
Quando criança, ladrões tinham a aparência de ladrões e
nossa única preocupação em relação à segurança era a de que
os "lanterninhas" dos cinemas nos expulsassem devido às
batidas com os pés no chão quando uma determinada música era
tocada no início dos filmes, nas matinês de domingo. |
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Mães, pais,
professores, avós, tios, vizinhos eram autoridades
presumidas, dignas de respeito e consideração. Quanto mais
próximos, e/ou mais velhos, mais afeto. Inimaginável
responder deseducadamente a policiais, mestres, idosos,
autoridades. Confiávamos nos adultos porque todos eram
pais/mães de todas as crianças da rua, do bairro, da cidade.
Tínhamos medo apenas do escuro, de sapos, de filmes de
terror. |
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Ouvindo
hoje o jornal da noite, deu-me uma tristeza infinita por
tudo que perdemos. Por tudo o que meu filho precisa
temer. Pelo medo no olhar de crianças, jovens, velhos e
adultos. Matar os pais, os avós, violentar crianças,
sequestrar jovens, roubar, enganar, passar a perna, tudo
virou banalidades de notícias policiais, esquecidas após o
primeiro intervalo comercial. |
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Agentes de
trânsito multando infratores são exploradores, funcionários
de indústrias de multas. Policiais em blitz são abuso de
autoridade. |
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Regalias em
presídios são matéria votada em reuniões. Direitos humanos
para criminosos, deveres ilimitados para cidadãos honestos.
Não levar vantagem é ser otário. Pagar dívidas em dia é
bancar o bobo, anistia para os caloteiros de plantão.
Ladrões de terno e gravata, assassinos com cara de anjo,
pedófilos de cabelos brancos. |
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O que
aconteceu conosco? Professores surrados em salas de
aula, comerciantes ameaçados por traficantes, grades em
nossas portas e janelas. Crianças morrendo de fome, gente
com fome de morte.
Que valores são esses? Carros que valem mais que abraço,
filhos querendo-os como brindes por passar de ano. Celulares
nas mochilas dos que recém largaram as fraldas. TV, DVD,
telefone, video game, o que vai querer em troca desse
amasso, meu filho? Mais vale um Armani do que um diploma.
Mais vale um telão do que um papo. Mais vale um baseado do
que um sorvete. Mais valem dois vinténs do que um gosto. |
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Que lares são
esses? Bom dia, boa noite, até mais. Jovens ausentes, pais
ausentes, droga presente e o presente uma droga. |
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O que é
aquilo? Uma árvore, uma galinha, uma estrela. Quando foi que
tudo sumiu ou virou ridículo?
Quando foi que senti amor pela última vez? Quando foi que
esqueci o nome do meu vizinho? Quando foi que olhei nos
olhos de quem me pede roupa, comida, calçado sem sentir
medo? Quando foi que fechei a janela do meu carro? Quando
foi que me fechei? |
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Quero de
volta a minha dignidade, a minha paz e o lugar onde o
bem e o mal são contrários, onde o mocinho luta com o
bandido e o único medo é de quem infringe, de quem rouba e
mata. Quero de volta a lei e a ordem. Quero liberdade com
segurança. Quero tirar as grades da minha janela para tocar
as flores. Quero sentar na calçada, e minha porta aberta nas
noites de verão. Quero a honestidade como motivo de orgulho.
Quero a retidão de caráter, a cara limpa e o olho no olho.
Quero a vergonha, a solidariedade e a certeza do futuro.
Quero a esperança, a alegria. |
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Eu quero ser
gente e não peça de um jogo manipulado por TV a cabo. |
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Eu quero a
notícia boa, a descoberta da vacina, a plantação do arroz.
Eu quero ver os colonos na terra, as crianças no colégio, os
jovens divertindo-se, os velhinhos contando histórias.
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Eu quero um
emprego decente, um salário condizente, uma oportunidade a
mais. Uma casa para todos, comida na mesa, saúde a mil. |
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Quero livros
e cachorros e sapatos e água limpa. Não quero listas de
animais em extinção. Não quero clone de gente, quero cópia
das letras de música. |
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Eu quero
voltar a ser feliz! Quero dizer basta a esta inversão de
valores e ideais. |
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Quero mandar
calar a boca quem diz "a nível de", "neste país", "enquanto
pessoa", "eles tem que", "é preciso que". |
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Quero xingar
quem joga lixo na rua, quem fura a fila, quem rouba um
lápis, quem ultrapassa a faixa, quem não usa cinto, quem não
paga a conta, quem não dignifica meu voto. Quero rir de quem
acha que precisa de silicone, lipoaspiração, implante,
dieta, cirurgia plástica, conta no banco, carro importado,
laptop, bolsa XYZ, calça ZYX para se sentir inserido no
contexto ou ser "normal". |
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Abaixo a
ditadura do "tem que", as receitas de bolo para viver
melhor, as técnicas para pensar, falar, sentir! Abaixo o
especialista, o sabe-tudo rodeado de microfones e câmeras!
Abaixo o "ter", viva o "ser"! |
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E viva o
retorno da verdadeira vida, simples como uma gota de
chuva, limpa como um céu de abril, leve como a brisa da
manhã! |
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E
definitivamente comum, como eu.
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