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No auge de sua loucura, o ultranacionalista personagem de Triste Fim de Policarpo Quaresma, livro clássico de Lima Barreto (1881-1922), conclamava seus contemporâneos a abandonar a língua portuguesa em favor do tupi. Hoje, 83 anos depois da publicação da obra, o sonho da ficção surge na realidade. O novo Policarpo é um respeitado professor e pesquisador de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Navarro. Há dois meses, ele fundou a Tupi Aqui, uma organização não-governamental (ONG) que tem por objetivo lutar pela inclusão do idioma como matéria optativa no currículo das escolas paulistas. "Queremos montar vinte cursos de tupi em São Paulo no ano que vem", disse à SUPER. O primeiro passo já está dado: em maio, Navarro lançou o seu Método Moderno de Tupi Antigo e, em setembro, colocou nas livrarias Poemas - Lírica Portuguesa e Tupi de José de Anchieta (ambos pela Editora Vozes), edição bilíngüe de obras do primeiro escritor em língua tupi . À primeira vista o projeto parece birutice. Só que há precedentes. Em 1994, o Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro aprovou uma recomendação para que o tupi fosse ensinado no segundo grau. A decisão nunca chegou a ser posta em prática por pura falta de professores. Hoje, só uma universidade brasileira, a USP, ensina a língua, considerada morta, mas ainda não completamente enterrada. Em sua forma original, o tupi, que até meados do século XVII foi o idioma mais usado no território brasileiro, não existe mais. Mas há uma variante moderna, o nheengatu (fala boa, em tupi), que continua na boca de cerca de 30 000 índios e caboclos no Amazonas. Sem falar da grande influência que teve no desenvolvimento do português e da cultura do Brasil. "Ele vive subterraneamente na fala dos nossos caboclos e no imaginário de autores fundamentais das nossas letras, como Mário de Andrade e José de Alencar", disse à SUPER Alfredo Bosi, um dos maiores estudiosos da Literatura do país. "É o nosso inconsciente selvagem e primitivo." Todo dia, sem perceber, você fala algumas das 10 000 palavras que o tupi nos legou. Do nome de animais, como jacaré e jaguar, a termos cotidianos como cutucão, mingau e pipoca. É o que sobrou da língua do Brasil. |
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O português foi imposto por decreto
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O mundo em palavras
Uma língua que
só expressa
o concreto.
Em tupi, todos os verbos no infinitivo são substantivos.
Assim, nhe'enga é "a fala", e não "falar". O verbo só vai existir se estiver ligado a uma pessoa. Como em ere-nhe'eng, ou "tu falas".
A realidade ajuda a criar conceitos abstratos.
"Silêncio", por exemplo, é kirir~i, inspirado no cri-cri dos insetos na mata, à noite.
Elementos da natureza nunca são ligados à idéia de posse.
Você diz xe py (meu pé) ou xe u'uba (minha flecha), mas nunca faz o mesmo para elementos da natureza. Em tupi, não se diz nde ybyrá (tua árvore), mas somente ybyrá (árvore).
Não existe tempo verbal. Todos os verbos estão no passado.
Para dizer "eu saio" e "eu saí" a expressão é a mesma: a-sem.
O dia de hoje não é um período de tempo, mas um lugar iluminado pelo sol.
Para se falar hoje, diz-se Kó 'ara pupé (dentro desta claridade), expressão que poderia ser desenhada como abaixo.
Quando éramos reis
Nossa Senhora do Rosário surgiu de repente sobre o mar. Os ínchamá-la e ela os ignorou, nem os reconheceu como humanos. Os marinheiros brancos, vestindo roupas novas, foram à praia levando padres e banda de música. Eram ricos e poderosos, mas tinham pouca fé. A santa nem se moveu. Só então permitiram que os escravos tentassem: na beira do mar, de pés descalços, eles bateram os tambores tão forte que comoveram a mãe de Deus. E ela veio para a terra.
Ninguém sabe quando essa lenda surgiu, mas a festa de Nossa Senhora do Rosário, a padroeira dos escravos do Brasil colonial, é celebrada em todo o país há pelo menos 350 anos. Na primeira semana de julho, os 20 000 habitantes da pequenina cidade do Serro, no norte de Minas, levam a comemoração ao auge. Com missas, orações, danças e músicas africanas, a população inteira relembra a aparição da santa. É um espetáculo de tradição e religiosidade que amadureceu com o passar do tempo. A SUPER foi ao Serro investigar a cultura popular brasileira. Nas páginas seguintes você vai acompanhar, passo a passo, os rituais da fé que, durante três dias, transformam escravos em reis
A lenda de Nossa Senhora do Rosário virou de cabeça para baixo a sociedade colonial do século XVIII. Inverteu o poder dos senhores brancos e da Igreja, que foi contra a escravização de índios, mas justificou a dos negros. "A bula Romanus Pontifex, de 1454, do papa Nicolau V", explica Ilana Blaj, professora de História do Brasil Colonial na Universidade de São Paulo, "legitimou o tráfego de escravos como uma oportunidade de cristianizar os africanos. Os negros eram batizados no embarque, na África, ou na chegada, no Brasil." A Igreja portuguesa escolhera o culto de Nossa Senhora do Rosário para promover a evangelização da África, de onde vinham os escravos.
Liberdade espiritual
Em todo o Brasil foram criadas Ordens do Rosário dos Pretos, confrarias religiosas fundadas pelos escravos cristianizados. A primeira Festa do Rosário de que se tem registro foi realizada em Olinda, em 1645. Em Minas, a Ordem dos Homens Pretos surgiu em 1715, em Vila Rica. No Serro, as festas começaram em 1720.
Só que não era a Igreja que as promovia, mas os próprios escravos. No ritual, os negros tornam-se poderosos porque são os preferidos de Nossa Senhora. No contexto cruel da escravatura mineira, essa inversão de papéis era notável. O trabalho negro era muito pesado e sujeito a duros castigos. Faltava comida, pois todos os esforços estavam voltados para a mineração de diamantes e quase não havia lavoura. Com isso, "poucos escravos tinham condições de trabalhar mais do que cinco anos", conta Blaj. "Festejar", interpreta a historiadora Márcia Clementino Nunes, nascida no Serro e estudiosa da festa, "era uma válvula de escape numa situação difícil."
Hoje, o povo do Serro diz que é o lamento dos escravos que se ouve na música melancólica executada pela "caixa de assovios", a banda formada por dois tambores e duas flautinhas agudas (parecidas com os pífaros do Nordeste). É esse som triste que abre a festa, na madrugada do primeiro sábado de julho.
No segundo dia da festa, o domingo, os tambores e a dança animam as cores do Serro. Do nascer do Sol até a madrugada do dia seguinte, o ritmo não pára. Os fiéis cantam em língua bantu, angolana, e em português: Cuenda cuenda cambaiá dêia muxima, vamu vê a mãe de Deus". Querem dizer: "Vem, mano do coração, vamos ver a mãe de Deus". É o júbilo da fé.
Construida por escravos, no séculoXVIII, a igreja de Nossa Senhora do Rosário é pequena demais para acomodar todos os que querem participar da matina
História dos Caboclos , marujos e catoplês
No domingo, segundo dia da celebração, todos se fantasiam. Os "caboclos" vestem cocares de penas e empunham arco e flecha. São os índios que Nossa Senhora do Rosário ignorou. Outro grupo veste-se de marinheiro: são os "marujos" brancos, também preteridos pela santa. Os verdadeiros heróis da comemoração são os "catopês", os escravos negros. Quem é de um grupo não muda para outro no ano seguinte. "É até hereditário", diz a historiadora Márcia Nunes. "Quem é caboclo, tem orgulho disso. Acha que sua dança é a mais bonita e quer que seu filho seja caboclo também." Vitória católica Logo ao amanhecer, os catopês saem em busca do rei e da rainha da festa, em suas casas. O casal real, escolhido na festa do ano anterior, é a maior autoridade. Cabe-lhes preparar toda a comida -- arroz, tutu de feijão, leitão assado, doces de fruta e cachaça, tudo em grandes quantidades --, cuidar dos trajes dos grupos, dos fogos de artifício e dos enfeites da igreja. Durante o ano, são negros pobres. Nessa manhã de inverno, ninguém no Serro é mais importante do que eles. De manhã mesmo, acontece o confronto entre cablocos, índios e marujos brancos. "Oh, grande sustã monarco", gritam os marujos. "Sustã" é uma corruptela de sultão. "São os soberanos mouros que governaram a Península Ibérica durante a Idade Média", explica Marcelo Manzatti, antropólogo do Grupo Cachoeira, uma organização sediada em São Paulo empenhada em preservar o folclore brasileiro. Alterados pelo uso durante séculos, e jamais escritos, os cantos encenam a guerra entre cristãos e muçulmanos pelo território da Espanha e de Portugal. Só que, no Brasil, os infiéis, em vez de islamitas, foram substituídos por índios. No final, os caboclos se convertem e todos juntos vão adorar Nossa Senhora. A vitória dos marujos representa o triunfo da Igreja Católica sobre os povos não-cristãos. Depois, todos vão comer, cantando: "Quatro libra de carne, um mocotó, alegria de pobre é um dia só." |
A coroação do rei e da rainha
O último dia, a segunda-feira, é o da coroação. De manhã e à tarde, há danças, cantorias e comilanças. À noite, na sede da Ordem dos Homens Pretos, os devotos coroam os soberanos do ano que vem, escolhidos por aclamação entre aqueles que mais se destacam.
São quase três séculos de tradição. A festa, hoje, atrai turistas, é apoiada pela prefeitura e mobiliza a população branca do Serro. "Mas mantém vivos os elementos originais", diz Márcia Nunes, "o desejo dos negros pobres de se integrar na sociedade cristã branca preservando o que for possível de sua cultura africana."
Mistura lingüística
As letras das canções são uma reiteração disso. "Viva a rainha no céu, viva a sereia no mar." A rainha é Nossa Senhora e a sereia é a Iemanjá do candomblé. A mistura de culturas dá-se também com palavras da língua bantu. Inganga, por exemplo, é a palavra n'ganga, que significa sacerdote. "O senhor seu padre inganga, quando tá dizendo a missa, parece os anjim do céu", diz outra música. E os refrões celebram: "Ô luanda, luanda, luendê". Luanda, hoje capital de Angola, foi o porto de embarque de muitos escravos, embora pouca gente no Serro saiba disso.
"Hoje", diz Marcelo Manzatti, "só duas ou três pessoas da comunidade do Baú, um antigo quilombo onde os escravos fugitivos se escondiam, perto do Serro, ainda falam o dialeto africano." Como não ensinam para mais ninguém, esse conhecimento deve se perder. Mas os cantos usados no ritual estão preservados.
À noite vem a exaustão. São dois dias sem dormir. As fantasias vão para os armários e todos voltam a ser pobres. E cantam: "Quando a lua vem caindo, cadê nossa mucamba?" Mucamba é cama em bantu. É a hora em que o sonho de liberdade adormece.