Pré-história revelada
As
pinturas rupestres da pré-história brasileira estão
registradas em rochas, paredões e grutas em todo o país. São
testemunhos silenciosos de tempos imemoriais. E já se conhece
muita coisa. Oficialmente, estão catalogados 787 sítios dessa
arte ancestral.
Agora, este número vai subir para 793. É que, com a ajuda da
reportagem da SUPER, foi confirmada a existência de mais seis
desses sítios. "As pinturas são mesmo inéditas e
merecem ser estudadas", atesta a arqueóloga Loredana
Ribeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais. A convite da
SUPER, ela acompanhou a nossa excursão ao interior mineiro.
O próximo passo, agora, é decifrar o achado. Tão fascinantes
quanto as figuras incrustadas nas rochas, são as perguntas que
elas trazem - e que ainda não têm respostas. Por que os
ancestrais dos primeiros povos indígenas da América decoravam
as rochas? Quais foram, exatamente, esses povos? O que queriam
dizer com seus desenhos? Qual a idade precisa de cada um deles?
Tantas interrogações servem de desafio para os pesquisadores.
Com novos sítios sendo achados, as imagens podem ser comparadas
entre si, e as respostas começam a ficar mais próximas. O
arqueólogo André Prous, da Universidade Federal de Minas
Gerais, um dos maiores especialistas no assunto, está empolgado:
"Nunca aprendemos tanto sobre o passado."
Primeira parada:
Botumirim
O carro mal conseguia vencer a areia e o cascalho da picada esburacada. Mas, depois de 1 hora e meia para rodar 30 quilômetros, se esgueirando pelos cerrados de Botumirim, uma pequena cidade mineira a 750 quilômetros ao norte de Belo Horizonte, o automóvel não pôde mais avançar. Então, vieram duas horas de caminhada por uma trilha aberta a golpes de facão. Já eram 10 horas da manhã quando a expedição da SUPER achou um pequeno tesouro pré-histórico: a Pedra do Veado Pintado, que é familiar para alguns habitantes de Botumirim, mas que nunca tinha sido registrada por um cientista. Nunca, até aquela terça-feira, 7 de julho. Junto com o repórter Denis Russo Burgierman, estava a arqueóloga Loredana Ribeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais, e o fotógrafo Omar Paixão.
O quarto integrante da equipe, o guia Eliomar Geraldo Farias, o Loma, foi o grande responsável pela descoberta. Foi ele quem informou a SUPER da existência de imagens pré-históricas inéditas naquela região (veja o quadro à direita). Cerca de um mês antes, Loma havia levado fotos dos painéis à redação da revista, em São Paulo. Com base nelas é que a excursão foi preparada. Graças a ele, a expedição foi um sucesso.
Nos dias 7 e 8 de julho, os aventureiros vasculharam uma área de 5 quilômetros de raio, sempre a pé. Só usaram o carro à noite, para dormir no único hotel de Botumirim. Em dois dias, Loredana pôde mapear e registrar (em desenhos que reproduzem as imagens pré-históricas) seis paredões, nenhum deles ainda catalogado. Numa ficha, a arqueóloga descreveu a localização e a tradição a que pertencem os desenhos.
À frente de um paredão, o solo estava forrado de instrumentos de pedra. Teriam sido deixados pelo autor dos desenhos? "Não dá para dizer sem um estudo mais detalhado", afirma a arqueóloga. Mas uma pista ela encontrou: certas pinturas lembram muito as de outro local, o Vale do Peruaçu, a 300 quilômetros dali, perto da divisa com a Bahia. O Vale é conhecido. É uma das mais bem estudadas e mais belas galerias do país. Estava decidido. Peruaçu seria o próximo destino da expedição.
Dez milênios de beleza
no Vale do Peruaçu
Da galeria inédita de Botumirim, a reportagem da SUPER foi direto, de carro, para o Vale do Peruaçu, perto de Januária, no norte do Estado. Aí estão os afrescos pré-históricos mais espetaculares do país, gravados num cânion com 17 quilômetros de comprimento e 60 metros de altura. A paisagem, descoberta pela ciência há uma década, é de tirar o fôlego. De apaixonar.
Um que ficou cativado foi o arqueólogo francês André Prous, de 53 anos, da Universidade Federal de Minas Gerais. "É espetacular, diferente de tudo que eu tinha visto", diz. Ele passa dois meses por ano no vale, coordenando as pesquisas, que empregam cerca de 20 profissionais. Todos dormem em barracas. São confortáveis, como comprovou a equipe da SUPER, que passou duas noites dentro delas.
As escavações revelaram que as obras
pertencem a eras distintas. Têm entre 2 000
e 11 000 anos. "É difícil saber as idades exatas dos
desenhos", explica Prous. "Teríamos que arrancá-los
das pedras e destruí-los para estudar sua matéria
orgânica." A saída, então, é examinar só os pedaços
coloridos que caem no chão.
Sabe-se que a região abrigou povos diferentes, e Prous tem uma estimativa para os períodos mais importantes: "Baseado na sobreposição das tradições e nos vestígios arqueológicos", diz o cientista, "acho provável que a maioria das pinturas tenha 7 000 anos, e algumas, 10 000 anos". Há ainda esqueletos no cânion, mas, como nenhum tem mais de 5 000 anos, não pertenceram aos autores da maior parte das figuras.
Quanto ao significado das obras, Prous explica que já não se tenta adivinhar a intenção dos artistas. "No início do século, imaginava-se que a arte era uma forma de magia." Os pré-históricos desenhariam aquilo que gostariam que acontecesse. Por exemplo: rascunhar animais atrairia a caça. Mas essa teoria não explica a variedade de imagens. "O que estudamos, agora, são as diferentes técnicas e temas", diz Erika Gonzales, da USP. Com isso, cria-se um catálogo das tradições, a partir dos quais é possível delinear os costumes e as características dos brasileiros mais antigos.
Terra fatiada
Veja como os cientistas analisam uma escavação arqueológica
Lagoa Santa - o cenário mais revelador
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Da África à América do
Sul
Uma nova teoria para explicar a ocupação do continente
O renascimento do barroco
No ano em que Ouro Preto, a capital nacional
do barroco, completa três séculos de existência,
o estilo artístico e religioso que dominou o
período colonial dá a volta por cima. Aqui você
vai entender por que, para alguns, esse
foi o gênero que formou e define,
até hoje, a cultura brasileira.
Por Ricardo Arnt, Lucia Helena
de Oliveira, de Ouro Preto,
e Fernando Valeika de Barros, de Lisboa
Há 300 anos, em junho de 1698, quando o acampamento de Ouro Preto foi fundado no alto de um morro perdido na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, nada prenunciava seu glorioso futuro. O clima era sombrio, esmagado por muralhas de montanhas, e o arraial equilibrava-se sobre solo escorregadio. "A primeira coisa que se fazia ao criar uma cidade", disse à SUPER o historiador português Vitor Serrão, professor de História da Arte na Universidade de Lisboa, "era construir uma capela. A maior preocupação era não faltar igreja para as festas santas como o Natal."
E foi de capela em capela, cada vez mais próspero com a descoberta de vários depósitos de ouro nas imediações, que, em 1711, o povoado virou a Vila Rica do Ouro Preto, a capital do barroco - o estilo artístico exuberante que dominou a arquitetura, a pintura, a escultura, a literatura, a música, o mobilário, a ourivesaria e a mentalidade do país durante 100 anos. Tanto tempo que, para muitos historiadores, o barroco não só fundou a cultura brasileira, como continua a influenciá-la até hoje - apesar de ser o avesso das modas minimalistas pós-modernas. A idéia é apaixonante. E controversa, como você vai ver nesta reportagem.
O certo é que o barroco brasileiro está em alta. Cento e vinte mil pessoas já visitaram em São Paulo a exposição O Universo Mágico do Barroco, que reúne, pela primeira vez, 400 peças deslumbrantes do período colonial. O sucesso é tanto que a mostra foi prorrogada até 18 de outubro. Em maio, a Christie's de Londres, a mais famosa casa de leilões do mundo, vendeu, pelo preço recorde de 420 000 dólares, uma imagem de Nossa Senhora das Dores esculpida por Aleijadinho, o principal artista brasileiro do período. Quer dizer, se alguma vez o barroco esteve em declínio por aqui, ele agora está renascendo.
Artistas brasileiros reelaboram, a seu gosto, o barroco português. As cores deste teto da Igreja de São Franscisco de Assis, em Ouro Preto, pintado por Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), são muito mais vivas e quentes do que as encontradas em Portugal
Os símbolos da fé revigorada
Ofuscar os sentidos. Afirmar o esplendor divino. Conquistar a alma e a imaginação com a exuberância da fé. Maravilhar. Extasiar. Ao recomendar novas diretrizes estéticas à Arte, os cardeais reunidos na última sessão do 19º Concílio Ecumênico da Igreja Católica Romana, em 1563, na cidade de Trento, na Itália, não estavam brincando. O Vaticano precisava reagir à expansão da Reforma protestante na Europa, iniciada por Lutero, na Alemanha, em 1517. O barroco - termo derivado da palavra espanhola barueco, que significa pérola irregular - foi um dos principais instrumentos de propaganda do movimento da Contra-Reforma. Não por acaso, um dos primeiros edifícios com decoração nesse estilo foi a Igreja de Jesus, em Roma, de 1575, construída para sediar a Companhia de Jesus, a ordem dos jesuítas, fundada para combater o protestantismo.
"A Igreja queria parecer moderna e não ultrapassada", explicou à SUPER o historiador Carlos José Aparecido, da Fundação do Museu de Arte Sacra de Ouro Preto, em Minas Gerais. "A pompa e a exuberância barrocas quebravam a linearidade e a rigidez dos estilos vigentes, o renascentista, harmônico e equilibrado, e o maneirista, superficial e artificioso. E impressionavam." Daí o seu apego à curva, ao movimento, ao drama, à decoração feérica e, paradoxalmente - em se tratando de uma arte religiosa -, à sensualidade.
O barroco foi uma reafirmação do poder da fé. Diante do protestantismo, que pregava austeridade e rigidez, o catolicismo reagiu alardeando a exaltação mística e o delírio dos sentidos. A vitória da emoção sobre a razão.
Anjinhos Os anjos meninos eram símbolo do amor divino |
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Flores São representações da beleza da alma e da fugacidade das coisas |
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Atlantes e Cariátides Figuras místicas da Antigüidade, atlantes (homens) e cariátides (mulheres), serviam como suportes de colunas |
Atraso luso
O Concílio de Trento e suas idéias estéticas ajudaram os reis católicos a impor seu poder sobre os nobres locais e a consolidar as monarquias absolutas. Por isso, no século XVII, o período barroco por excelência na Europa, surgiram palácios monumentais e hiperdecorados, como o de Versailles (1655), na França, reafirmando a grandeza do Estado.
Mas Portugal já estava em decadência quando o barroco surgiu. Perdera importantes entrepostos comerciais e, em 1580, o próprio rei, d. Sebastião, morria em batalha, no Marrocos, sem deixar herdeiros. A tragédia redundou em outra, maior, quando as complicações dinásticas levaram à anexação das terras lusitanas pela Espanha. "Esse período, de 1580 a 1640", define o historiador Nicolau Sevcenko, professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo, "constitui o maior pesadelo da história portuguesa."
A perda de poder político e financeiro refletiu-se na cultura. É a época da "arte chã", que, na Arquitetura, produziu igrejas singelas, com torres quase como guaritas e interiores ornamentados em madeira talhada. "Uma vez que não havia mármore ou pedras nobres, como nos países ricos", explica Vitor Serrão, "a solução foi trabalhar com azulejo, madeira e painéis pintados". Só em 1640, com a reconquista da independência, o barroco português deslanchou, com quase um século de atraso.
O Pelicano Uma metáfora do amor materno. A ave bica a si própria para oferecer o sangue aos filhos |
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Conchas Conchas de vieira e coquilles de saint-jacques, pregadas no peito, identificavam os peregrinos que iam ao santuário de Santiago de Compostela, na Espanha, no século XI |
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Espinhos Os emaranhados dos ásperos lembravam a consciiencia da dor do pecado |
Palmas Os feixes de folhas sugeriam o triunfo de Jesus sobre o martírio |
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Cachos de uva Ramos de videira e uvas evocavam o sangue de Cristo |
Os três
ciclos do
barroco colonial
No Brasil, a ascensão do novo gênero artístico acompanhou a descoberta do ouro em Minas - a primeira corrida do ouro do Ocidente. Em cinqüenta anos, 600 000 portugueses emigraram para cá. Desses, calcula o historiador Jaelson Britan Trindade, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de São Paulo, "pelo menos 800 eram artistas".
No final do século XVII, descontados os índios, a população brasileira de origem européia contava 40 000 habitantes. No fim do século XVIII, pulou para 1,5 milhão. Nas cidades litorâneas, sob maior influência da metrópole, o barroco foi mais português. Já no interior de Minas, isolado pela distância e pela precariedade das comunicações, ganharia cada vez mais características próprias.
Um século de evolução
Quando surgiu, em Salvador e em Recife, o estilo mudou o interior das igrejas, não o exterior. Nesse período inaugural, chamado de nacional português, as fachadas e plantas continuam retilíneas, mas, por dentro, os templos viraram suntuosas "cavernas douradas", com paredes e tetos inteiramente revestidos de madeira esculpida em alto ou baixo-relevo (a talha), e pinturas encaixadas em molduras (os caixotões). Os painéis que ficam atrás e acima do altar (os retábulos) apresentam colunas torcidas e decoração profusa. É o caso da Capela Dourada (1695), em Recife, da Igreja de São Francisco de Assis (1703), em Salvador, e da capela de Nossa Senhora do Ó, em Sabará (1719), Minas Gerais.
A partir de 1730, nota-se uma mudança. É o período joanino, marcado pela gosto italiano do rei português, d. João V. As estátuas se integram à madeira dos retábulos e os caixotões desaparecem, substituídos por pinturas ilusionistas (que provocam ilusão de óptica), recobrindo o teto. A arquitetura adota linhas curvas, naves alongadas e torres circulares, como nas igrejas de Nossa Senhora da Conceição da Praia (1758), em Salvador, Nossa Senhora do Pilar (1734) e Nossa Senhora do Rosário (1750), ambas em Ouro Preto.
Outras mudanças cristalizam-se a partir de 1760, com o ciclo rococó. Aí, as fachadas tornam-se mais leves e audaciosas, com curvas e contra-curvas, elegantes torres redondas e portadas com relevo de pedra-sabão. Os ambientes são claros e arejados, e a luz natural enfatiza a ornamentação sobre fundos caiados de branco. Os templos projetados por Aleijadinho, como a Igreja de Nossa Senhora do Carmo (1766), em Ouro Preto, e a de São Francisco de Assis (1774), em São João del Rey, são obras-primas da época. "O interior dessas igrejas", diz Myriam Ribeiro de Oliveira, professora de História da Arte na Universidade
Período nacional português (1700-1730)
Pintura em caixotões no teto da Igreja de Nossa Senhora da Ordem Terceira do Carmo, em Salvador |
Pintura ilusionista sugerindo o céu infinito no teto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador |
Período joanino (1730-1760)
![]() A fachada curva da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Ouro Preto |
Período rococó (1760-1800)
A igreja curva da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Ouro Preto |
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o retábulo da Igreja de São Francisco, em São João Del Rey, sobre fundo branco |
As
primeiras marcas
da identidade nacional
O ímã do ouro tornou Minas a capitania mais populosa do Brasil. De 1711 a 1730, começando por Ouro Preto, brotaram nove vilas na Serra do Espinhaço - de São João Del Rey, no sul, a Sabará, no norte. No fim do século XVIII, a região já tinha 500 000 habitantes. Para se ter uma idéia, em 1762, o Rio tinha apenas 30 000 habitantes; Salvador, em 1797, 50 000; e Vila Rica, 100 000. O ouro criou um mercado interno para o gado do Sul, fumo e açúcar do Nordeste e escravos do Rio. Com a abertura do Caminho Novo das Gerais, em 1715, os tropeiros passaram a viajar entre o Rio e Vila Rica em "apenas" doze dias.
A civilização que levou o barroco brasileiro ao apogeu era aventureira e precária. A Coroa confiscava um quinto do ouro extraído e, por isso, o contrabando era crônico. Os costumes eram promíscuos e as leis, pouco respeitadas. A falta de mulheres tornava a prostituição rendosa. Até os padres envolviam-se em escândalos sexuais.
Para controlar a expansão da Igreja nessa região tão rica, a Coroa proibiu a instalação das Ordens Primeiras (de frades e monges) e Segundas (de freiras), em 1738. "Em conseqüência", explica Ana Maria Monteiro de Carvalho, professora de História da Arte na Universidade Católica do Rio, "proliferaram as Ordens Terceiras, as Irmandades e as Confrarias que congregavam leigos. Foi a devoção laica que encheu Minas de obras barrocas."
Cada corporação de ofício tinha a sua Ordem. Havia irmandades de elite e populares. A Ordem Terceira de São Franciso de Assis de Vila Rica, por exemplo, proibia "mulatos, negros, judeus, mouros e heréticos ou seus descendentes até a quarta geração". A Ordem Terceira do Rosário dos Pretos congregava escravos. Cada uma tinha seu santo, suas festas e construía sua igreja exclusiva, competindo com as outras em prestígio. Para o devoto, o prêmio era ser enterrado pela confraria - garantindo o céu após a morte.
Síntese original
Impulsionado pelo ouro e pela multiplicação de igrejas, o barroco português aos poucos adquiriu traços brasileiros. O azulejo, que não suportava a subida da serra no lombo das mulas, foi trocado por painéis pintados. A pedra-sabão substituiu o mármore e a pedra de lioz. As igrejas e capelas tornaram-se menores, já que eram construídas para atender a uma só confraria.
Aos poucos, na medida em que tiveram filhos com escravas, os artistas portugueses repassaram as técnicas a artesãos mestiços. Foi o mestre-de-obras Manuel Francisco Lisboa, branco e português, que formou Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu filho.
Em 1790, os artistas mulatos e livres já predominavam nos cargos de "oficial" e de "mestre". A sintonia com a terra e a cultura artística local filtrava a reinterpretação dos modelos europeus. As paredes curvas se misturaram às retas. As cores avivaram-se com a luz dos trópicos. Os santos ganharam feições amulatadas. E os anjinhos morenos receberam viçosas perucas loiras.
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Ouro Preto foi tombada pelas Nações Unidas em 1980. Fundada em 1698, tem 25 igrejas do sécul XVIII preservadas |
Corte lateral
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Sotaque
brasileiro,
gramática portuguesa
Formalmente, o barroco termina em 1816, com a chegada da Missão Artística Francesa e do estilo neoclássico, em voga na Europa, ao Rio. Mas, para muitos, a influência barroca não acabou aí. "O Brasil nasceu sob signo barroco", disse à SUPER o historiador Nicolau Sevcenko, da Universidade de São Paulo. "A fisionomia e alma brasileiras foram compostas por esse sopro místico. Ele não foi um estilo passageiro, mas a substância básica da síntese cultural do país." Para Sevcenko, há marcas "latentemente barrocas" na identidade brasileira, no catolicismo popular em especial, como "extremos de fé, ilusão de grandeza, exaltação dos sentidos, êxtase de festa, pendor pelo monumental, convivência com disparidades e compulsão de esperança".
Essa associação do barroco à identidade nacional surgiu há cinqüenta anos com escritores como Olavo Bilac (1865-1918) e Mário de Andrade (1893-1945). Adotada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico, fundado em 1937, a tese inspirou pesquisadores como Germain Bazin (1901-1990), Lúcio Costa (1902-1998) e o diretor da Pinacoteca Municipal de São Paulo, Emanoel Araújo, que defende "a existência de uma estética própria do barroco brasileiro, a despeito de raízes e mestres portugueses". Para Araújo, o barroco brasileiro carrega "a tropicalidade, a permissividade e a sensualidade da miscigenação das culturas. Aqui, as ordens religiosas incorporaram o negro e o índio", ressalta. "Era a Igreja que promovia a festa negra do Rei do Congo."
O regional e o universal
Mas se formou a identidade brasileira, o estilo também formou a dos outros países latino-americanos, que reinterpretaram o barroco espanhol. "Lá, muito mais", ressalta Myriam Ribeiro de Oliveira, "pois as civilizações pré-colombianas da América espanhola tinham mais tradição cultural e poder de reelaboração do que as culturas indígenas brasileiras. Na verdade, o barroco brasileiro é o mais europeu da América. No México, no Peru e na Bolívia há mais sincretismo do que aqui." Para a especialista, a genialidade do Aleijadinho não caiu do céu. "As fontes e modelos que ele usou chegavam de gravuras e livros vindos de Lisboa, Paris, Antuérpia e Roma. Ele conjugava muitas influências." De Lisboa, Vitor Serrão reitera: "Por mais genial que a talha do Aleijadinho seja, a gramática era portuguesa".
Há controvérsia, também, sobre a idéia de nacionalidade. Para o pesquisador Jorge Coli, professor de História da Arte e da Cultura na Universidade Estadual de Campinas, "a identidade é um processo: com o tempo, o que parecia essencial revela-se aparente". Coli desconfia da herança "genética" do barroco. Para ele, "o barroco foi universal, com muitos sotaques e acentos regionais".
Ainda parece faltar uma análise que ilumine a fusão da influência universal com a local, como sugere Myriam Ribeiro: "Falta uma síntese que una a tradição européia das igrejas mineiras com a sua incontestável originalidade". Só assim será possível entender o sorriso maroto do anjinho mulato com peruca loira.
Nossa Senhora das Dores, do Aleijadinho, com o peito crivado de espadas |
Painéis de retábulo, do carioca Mestre Valentim da Fonseca e Silva (1750 -1813) |
Uma ousada caríatide desnuda, em pleno século XVII, da Arquidiocese de São Salvador, na Bahia | |
Cômoda papeleira, de jacarandá, de Minas Gerais, do século XVIII | |
O torturado Cristo na Coluna, do baiano Francisco das Chagas, "O Cabra". (século XVIII) |
Os primeiros gênios
Aleijadinho (1730-1814) Antônio Francisco Lisboa era um artista famoso em Vila Rica, que gostava de "mesa farta" e "danças vulgares", segundo seu biográfo. Mas, aos 40 anos, pegou lepra. Tornou-se amargurado e recluso. Com um cinzel amarrado no punho, fez obras-primas como o santuário de Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas (MG). |
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Padre Antonio Vieira (1608-1697) Jesuíta,
veio para o Brasil com 18 anos. Na Bahia, pregou contra
as invasões holandesas. Em Lisboa, foi diplomata e amigo
do rei d. João IV. No Maranhão, defendeu os índios
contra a escravização. De volta à Europa, virou
confessor da rainha da Suécia. Escreveu |
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Gregório de Matos (1633-1696) Escritor baiano, filho de senhor de engenho português. Estudou em Coimbra, foi juiz em Portugal e tesoureiro do Arcebispado da Bahia. Abandonou a advocacia e virou poeta, famoso pela sátira e pelo erotismo. Seu livro Boca do Inferno valeu-lhe a deportação para Angola. Morreu em Pernambuco, impedido de voltar à Bahia. |
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Padre José Maurício Nunes Garcia
(1767-1830) Músico e compositor carioca. Escreveu peças para canto baseadas em harmonia seqüencial (a repetição da frase em outro tom). Tocava em igrejas e na Corte. Até o século XIX não se imprimia música no Brasil. As partituras eram importadas ou copiadas à mão. Até hoje, foram descobertas apenas 100 peças do período colonial brasileiro. |
Para saber mais
O Universo Mágico do Barroco Brasileiro. Emanoel Araújo (org.).
São Paulo, Serviço Social da Indústria, 1998.
A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Germain Bazin. Rio de Janeiro, Record, 1983.