A TRANSIÇÃO


          Decide viajar. Procura, em qualquer distância dentro da imensidão de seu mundo, encontrar algo que sabe, há muito, estar dentro dele mesmo, e apenas dentro dele mesmo. Contudo, mesmo ciente de todos os processos psicopatológicos que se passam no imo de seu subconsciente, sabe também que deve viver sua vida sem esquentar muito para estas filosofações psicológicas, e portanto decide viajar. Vai para onde, há muito, decretou ser seu lugar. Começa a jornada. Aquela mesma praia, permeando toda a sua vida. Eterna procura. Sua praia.
          Grande mudança se inicia, e à parte parecem ficar todos os problemas, os medos e aflições, pois toda esta rotina desgraçada e maldita se encerra: vai para a praia; sua praia. Enfeitiçado pelo álcool mergulha no mar, no infinito mar de seu inconsciente tantã, onde todo o seu eu primitivo, incluso, encerrado, se vê em contato direto com seu eu mais a flor da pele, mais humano, mais sensível.
          Em Nova Viçosa, a sua praia, ao mergulhar no mar do mangue mergulha ele também em si mesmo, entrando em contato com seu mais profundo ser. Tenta, sempre quando lá, atingir a outra margem daquele rio, num constante nadar sem chegar a lugar algum. Nada com medo, com angústia, aflição, com peixes pulando sobre sua cabeça, numa loucura desenfreada que o assusta. Barcos passam sem o ver, sem se preocupar com ele, prontos a matá-lo se for preciso, tudo por míseros peixes. Na água, que a cada braçada se torna mais densa e mais turva, ele nada mais vê além de si mesmo e da sua intensa e constante solidão. E ao sentir o peso da água meio doce, meio salgada, também assim se vê, ambíguo; meio triste, meio feliz; meio romântico, meio pervertido; meio morto e meio vivo.
          Bêbado, sempre bêbado em Nova Viçosa, bêbado também se percebe diante da vida, e ao mergulhar nas profundas águas de seu ser, em Nova Viçosa percebe que vê sua vida desde sempre por uma perspectiva bêbada, alucinada, narcotizada, ilusória, fantasiosa. Assusta-se então consigo mesmo e com o mundo, assusta-se com o mar, e de repente um dia cisma de nadar a noite.
          O simples toque da água em seus pés já o congela, e o medo daquele imenso mar o engolir com a minúscula onda que se projeta sobre ele o faz morrer uma morte lenta. Lágrimas escorrem em abundância de seu rosto, apenas a aumentar o poder do imenso oceano.
          Chorando já nem tanto por medo, mas agora transformado e dominado pela raiva, se atira ao mar, em braçadas loucas, disformes e sem direção, percorrendo, em alta velocidade, caminhos sem destino, passagens sem portas, nem saídas nem entradas, apenas mar. Louco e cansado, ilhas e ilhas por todo lado, o corpo agora tenta repousar, esgotado, mas a mente descobre ser impossível repousar no instável mar. É necessário nadar, um constante nadar, mas faltam forças, e já é alta noite em sua vida, e corpo e mente pedem um mínimo de constância nesta sua vida louca.
          Desiste. Seu corpo afunda no mar de Nova Viçosa, e mergulhado no infinito de seu próprio inconsciente, seu próprio eu infinito, lembra de todos os amores perdidos, os nem começados, os mal acabados, os ainda por começar, os sentimentos pungentes vividos, as dores e angústias de uma constante adolescência que insistia, até então, em dominar corpo e mente já adultos.
          Corpo e mente afundam, cada vez mais, naquele mar. Ar nenhum mais vai aos pulmões, e o cérebro estaciona. Sem ar, o corpo fica roxo, e prostra-se em definitiva morte.
          Vivo, pois espírito não morre, e como a alma é grande, uma fênix ressurge do fundo de todos os inconscientes, e um ser modificado renasce. O corpo, morto, emerge, e bóia na superfície de uma calmaria onde paira a mínima brisa quente de um mar resignado, visto que sua vitória foi sua derrota.
          Frente a tamanha ambigüidade que é a Vida, o entendimento vira o deus maior entre mar e homem, e em Nova Viçosa um refluxo pulmonar faz a vida voltar a um corpo já sem vida, num milagre divino só explicado mesmo por um mundo divino, tal divindade que é a existência humana.
          Naquele mar, naquela cidade, num mínimo instante, o que era morte se torna renascimento, e do mar, pela força das ondas, que agora co-laboram pelo bem comum, sai um homem novo.
          Grande festa em homenagem à grande Jubarte. Assim como Jonas de sua baleia, ele, herói, sai do mar novo, e após receber o perdão de Deus, de seu Deus, de seu eu Deus, se torna outra pessoa.
          No mar perdeu suas roupas, seus sapatos, e lá também ficaram os ressentimentos e as mágoas. As experiências vem impregnadas em seu corpo, em forma de algas marinhas, em forma de sal, em forma de vida.
          Do mar de Nova Viçosa surge a vida. De dentro dele surge a vida. Poderia ocorrer em qualquer lugar: em um pensamento, em uma noite sem sono, em um mínimo instante. Poderia acontecer até mesmo num momento de completa inatividade, em seu próprio quarto, a meditar. Para ele, entretanto, e não poderia ser diferente, ocorreu e ocorre, constantemente, em Nova Viçosa. No infinito daquele mar.

Ewerton Martins,
o corneteiro cronista.
em 25 de Novembro de 2003

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