AMANHÃ
ERA DIA DE NATAL
(1°
lugar Concurso de Contos Revista Claudia - 1981)
Tinham-lhe
ensinado todas as coisas do amor. Os livros lidos no banheiro
mordendo a boca, as conversas de pátio, as revistinhas que o irmão
escondia. Aos vinte anos já se tinha em conta de grande
entendedora. Da longa carreira de namorada, restara uma enorme
desconfiança do mundo e aquela vontade de felicidade, aquela
vontade doida, doída, machucada. Gostava de citar Cecília
Meirelles baixinho, quando uma dor fina de solidão se espalhava no
peito: "Não sou alegre nem triste. Sou poeta". Contava
nos dedos perdendo a conta os namorados que tivera. As festinhas, as
reuniõezinhas, os sarrinhos. Estudante regular, uma certa preguiça
de aprender as coisas da escola, uma grande ansiedade em aprender as
coisas da vida, um enorme medo de encontrá-las. Vinte anos de
poetice desesperada, unhas roídas, constatações amargas, peito em
frangalhos tantas vezes e tantas vezes recomposto na ânsia de
recompor pra sempre. E aquela dor, aquela dor, aquela falta de ar,
dor, ah, aquele ardor! Mais que tudo, assustada. Boba. Idealizando o
príncipe encantado, o namorado certinho. Convictamente virgem. Só
depois de casar. Só com muito amor. Só com o homem certo. E, de
errado em errado, supondo sempre o certo e nem assim acreditando.
Negava com jeitinho, atiçava, permitia beijos fogosos, mãos
atrapalhadas descobrindo os segredos do corpo que nem ela conhecia.
Ah, era bom. Só isso. Era assustador quando o coração se
descompassava, os dedos desabotoavam, um peito surgia tímido da
blusa que ela depois se arrependia e escondia rápido, chorando de
vergonha. Vinte anos e achava que sabia tudo, menos aquilo.
Sabia
se apaixonar, como sabia! E escrever ansiosa as emoções
desordenadas e ter tudo arrumadinho num livro que papai e mamãe se
orgulhavam da filha poeta. E chorar muito sem motivo aparente e
tocar muito no violão as coisas de dentro do peito. Vivia portanto
assim, comovida e dispersa pelo mundo, captando sentimentos e suando
nas mãos, quando o turbilhão das múltiplas sensações armou uma
bagunça no emocional aflito, desorganizado, sozinho.
O
terapeuta entendia tudo. Calado e ouvindo, sentindo com ela as dores
dela, os podres dela, as cascas. E foi pra ele que ela disse,
convicta e de nariz pra cima: "Eu tenho muita vontade. Mas não
vou." Na tarde suada e pegajosa do dia seguinte, foi.
O
namorado era recente. Ela era antiga. Na dor, no sufoco, no medo. E,
entre tudo isso, preferiu tomar muito chope e se convencer que seria
bonito. Da maneira que tinha sonhado, esperado, preparado o
coração. Seria bonito, ele seria doce e terno, compreenderia sua
inexperiência. Ficaria até orgulhoso disso. A cada pensamento
desse, mais um gole de chope. Mais um copo. Então ele disse vamos
pra minha casa e ela disse tá bem.
No
táxi se encolheu encabulada. O motorista sabia, tinha certeza que
sabia! Numa rua qualquer de Copacabana tentou se manter de pé e ele
ajudou a caminhar até o elevador. O apartamento era pequeno e
escuro. Juntou todas as forças e charmes, coragens e medos e
arriscou: "Olha, não vai acontecer nada. Eu não quero."
E medos, coragens, charmes e forças se perderam numa escuridão de
braços e pernas e todas as solidões do mundo lhe taparam a boca. A
dor, meu Deus, a dor, o ar, o peso, a luz cadê, cadê o sonho
bonito, o carinho, a ternura, o orgulho? Nenhum gesto se salvou. O
suor da testa era de pavor.
Enquanto
ele tomava banho, procurou em desespero as roupas, vestiu-se
devagar, a cabeça era um peso só, o peito era uma brecha só.
Sentada na beira da cama, encolhida, assustada, fungava a lágrima
que descia pelo nariz, alisava as pernas doloridas, procurava. Ele
voltou limpo e cheiroso, esfregando a cabeça na toalha.
"Coração, você se importa se eu não te levar em casa? Tenho
um compromisso". Não, ela não se importava. Saiu arrastada
pelo medo e pela confusão.
Acendeu
corajosamente um cigarro e corajosamente enfrentou a rua,
multiplicada em agitação. Ainda havia sol e pessoas. Algumas até
viviam. Não foi ela quem fez sinal pro ônibus. Foi seu braço,
talvez. O banco lhe pareceu imenso e desajeitado. Encostou a
cabeça, abriu a janela e fechou o peito.
Subitamente,
lembrou-se que era véspera de Natal.
Com
suor e lágrimas assassinou seus vinte anos e renasceu com quarenta.
Fechou
a janela e, cuidadosamente, abriu o peito.
E
esperou o Natal.
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