ME
OLHANDO DE SOSLAIO
(3°
lugar Concurso de Contos Stanislaw Ponte Preta - Pref. RJ - 1991)
Da
minha janela, o Rio se espalha. Do outro lado do vidro, um Cristo de
perfil me abençoa de lado, flutuando num aviltante azul. Aviltante
porque não estou lá fora. Milhões de papéis, clipes e coisinhas de
escritório abagunçam minha mesa, que jamais consigo manter em ordem.
Assim como minha cabeça. Não tão em desordem, mas incapaz de se
manter, fisicamente, nos limites desta sala. Está sempre ligeiramente
voltada pra direita. É o Cristo,. O majestoso Corcovado atravessando
a minha burocrática janela. Impossível evitar a dispersão.
Do 14º
andar, meus olhos abrangem uma bela fatia desta cidade. Hoje, pra meu
desespero, imersa no azul. Lá embaixo milhões de pernas se apressam
pra atravessar a Presidente Vargas. Pra que olhar pra baixo? Eu tô em
cima, sob o braço esquerdo do meu Cristo Redentor que, cheio de
benevolência, tem acompanhado de soslaio o meu dia-a-dia nesta sala.
Dez
horas ainda??? Meu estômago emite o primeiro sinal pré-almoço. Um
telefone toca. Em seguida toca o outro. O computador faz um barulho
infernal. Cadê minha caneta? Acabo de entornar um copinho de café na
mesa. Uma pocinha se equilibra sobre alguns papéis e escorre num
filete comprido que avança, avança e pronto! Molhou tudo! Fio de
telefone, borracha, grampeador. Cristo!!! Dou uma olhada pela janela.
Tenho absoluta certeza de que ele deu uma risadinha.
Agora
sim. Tudo enxugadinho,. Não arrisco nem mais um olhar pra saber se o
Cristo ainda sorri. Mas tenho certeza de que todo o azul à minha
direita está às gargalhadas. Todo o azul à minha direita, à minha
esquerda e sobre a minha cabeça está, neste exato instante,
envolvendo milhares de biquínis e sungas, barquinhos e asas-delta etc
etc etc. Neste exato instante em que uma baratinha de escritório sai
correndo de dentro da gaveta do arquivo. Encaro a baratinha enquanto
todos esses etc se douram ao sol, furam ondas, saltam da Pedra da
Gávea e se espreguiçam.
"O
chefe quer falar com você". Tudo bem, levanto tropeçando em
fios de telefone. Pra que tantos ramais? Tudo bem. A sala do chefe é
de frente, o Pão de Açúcar vai estar lá inteirinho pra mim. Ele
fala e fala e eu disfarço. Faço a maior cara de interesse. Meu olho
vai devagarzinho pra esquerda, depois pra direita. Bondinho pra lá,
bondinho pra cá. Deve estar uma temperatura deliciosa lá fora. O sol
está langoroso, quase obsceno. ?Sinto um arrepio de ar-refrigerado.
Bondinho vai, bondinho vem.
Volto
pra minha sala cheia de papéis na mão, absolutamente sem saber o que
fazer com eles. Culpa do bondinho. Encontro meu contracheque sobre a
mesa. Vou abrindo que nem criança desembrulhando presente. As cifras
tremulam na minha frente. Olho pro meu lindo Cristo Redentor me
sentindo insultada. Desta vez ele não sorriu. Tenho absoluta certeza
de ter ouvido uma gargalhada.
Mas já
é meio-dia e corro pra marcar o cartão. Alguém neste momento está
correndo pro mar, correndo na pista da Lagoa, correndo no Parque do
Flamengo. Eu corri diferente. Corro pra não me atrasar, corro atrás
do ônibus, corro pra não perder o metrô.
Então
"almoço" meu triste sanduichinho. Rápido. Pra dar tempo de
passear (!) durante uma hora. Depois de várias cotoveladas,
esbarrões e pisadelas no Saara, corro pra marcar o ponto do segundo
expediente. Arrependida.
Volto
à minha mesa e ao meu Cristo. E fico olhando, olhando, olhando o
Corcovado. Alguém me chama e custo a aterrissar. Às três da tarde
quase enlouqueço. Me parece que todos os telefones estão tocando,
todas as pessoas estão me chamando e todos os papéis do mundo estão
na minha mesa. Olho pro Cristo, suplicante. "Me ajude"! O
azul e o sol continuam. Peço ao Cristo, desesperada: "Faça com
que parem! Faça chover! Me tire daqui"! Desta vez ele não se
manifesta. Entendo o recado e peço desculpas. "Ok, você
venceu".
Mas
chegou o toque da liberdade. Alguém já fez "plim" no
relógio de ponto. Antes de mim! Já são cinco horas. Dou uma geral
na mesa, tipo empregada varrendo a sujeira pra baixo do tapete. Passo
um batom rápido, conto o dinheiro da passagem, marco o ponto e saio.
Não sem antes lançar uma última olhada pro Corcovado.
E aí,
lá fora, na pressa do chegar em casa, tudo aconteceu muito rápido.
No sufoco de não perder o metrô, eu e o Rio de Janeiro todo nos
precipitamos escada abaixo na Estação. Então alguém empurrou. Meu
pé resvalou e o corrimão sumiu. O degrau sumiu junto e dentro dos
meus dois olhos esbugalhados só cabia a visão de mais vinte mil
degraus me engolindo. Me vi suspensa no ar, com meu coração
disparado acima da cabeça. Eu estava sendo projetada no espaço.
Apertei os olhos antevendo todas as minhas inevitáveis fraturas.
Custei
a entender, mas era verdade: alguém me segurava. Abri os olhos antes
de compreender a forte pressão de dedos firmes nos meus dois braços.
Vi todos os degraus abaixo de mim completamente vazios. Eu continuava
no topo da escada. Intacta. Aí senti a pressão das mãos que me
sustentavam. Ainda me acostumando a não ter morrido, olhei pra trás.
Não tinha ninguém ali. Nem ao meu lado nem à minha frente. A
pressão nos meus braços ia, aos poucos, diminuindo. Então sentei no
degrau, as pernas bambas. Dali minha visão não alcançava o Cristo
Redentor. Nem precisava. Pois dali mesmo eu "vi" que ele
estava, de novo, sorrindo. Desta vez, junto com uma piscadela marota.
|