UM TELEFONE TÃO VERDE

(2° lugar Concurso de Crônicas INTEGRARTE - EMBRATEL - 1988)

 

Aquele verde da casa dela era sem esperança. Não tocava. Que coisa mais patética e angustiante o telefone que não toca. Não por defeito, problema de linha, não. Telefone em silêncio por falta da amigo, conhecimento, de quem telefonar. Por solidão mesmo.

Eram três homens e ela. Pai e mãe de muito falecidos, cresceu amparada no machismo daqueles três protetores e estranhos. E se casaram e mudaram e foram ter filho cada um num canto. O último "olha, mana, essa casa tão grande pra você sozinha, vende, procura um apartamento." Fez pé firme e não cedeu. Sair dali nunca. Agora sim, sozinha, podia ir e vir como bem entendesse. Tinha 40, era bonita, mulher morando só sempre atrai melhor um homem. Ia conhecer o seu, casar e ter filho. Os olhos virgens de amor se iluminavam com a perspectiva. O corpo virgem de homem latejava em sangue e umidade.

Comprou um telefone - verde - e teve início a única e verdadeira relação da sua vida. Como qualquer relação que começa, era feita de suores e expectativas.

Distribuídos os cartõezinhos informando o número, agora era aguardar. Alguns ela "deixou" cair na rua, outros foram displicentemente esquecidos em mesas de restaurante.

Voltava do trabalho pra casa afobada e corria pro telefone. O aparelho acompanhava todos os seus passos pela casa. Ia à cozinha, ao tanque, ao banheiro. Conhecia todos os seus limites e intimidades. Sabia sua insônia e era frio em contato com seu corpo, e amargo na carne da sua língua.

Mas acontecia de alguém telefonar. Era terrível. Se estava perto do aparelho, jogava-se em cima, o coração aos saltos, quase engolindo o bocal. Era o irmão de São Paulo, às vezes o de Belo Horizonte, às vezes uma desconhecida, "faz favor de chamar a Dona Olívia da casa ao lado, desculpe o incômodo." Nunca chamou Dona Olívia e curtia em desespero um ódio secreto por aquela mulher sem telefone e tão telefonada.

"Afinal, o que há de errado?" O espelho explicou, devolvendo a imagem de uma mulher distribuída em olheiras, espinhas e solidão. Sentiu raiva. Escancarou as portas do armário, puxou cabides, abriu gavetas. Erguia roupas no ar, atirava no chão, remexia outras. O quarto transformou-se num caos maior do que o seu próprio. Na manhã de sábado juntou determinação com talão de cheques e saiu.

Às 7 da noite estava na calçada esperando um táxi, se sentindo uma moça de 30. O cabelo brilhava, o rosto faiscava entre sombras, rímel, batom e outros aparatos. A roupa nova e sensual denunciava o corpo explodindo em ansiedade. Sentia-se mulher. Apaixonou-se pela própria imagem refletida numa vitrine.

Depois tudo aconteceu muito rápido. A buzina, o carro encostando "vai pra onde?" Aceitou a carona e foi deixada à porta de casa por um homem surpreso e bem impressionado. "Olha, hoje tenho um compromisso, mas posso te ligar amanhã? Você tem telefone?"

Fechou os olhos enquanto o corpo ia derretendo. Sorriu quando a pele arrepiou-se.

"Ei, o que é que há, eu tô perguntando se você tem telefone...?" Entregou trêmula o cartãozinho e entrou em casa se sentindo uma pluma. Correu pro telefone, alisou, deu vários beijos estalados. Pôs um disco romântico, dançou com o aparelho no colo, abraçada nele. Alisava e beijava num carinho de mãe compreensiva que perdoa todas as ingratidões. Dormiu sorrindo com ele na cama, exausta de felicidade, plena de incesto.

Despertou cedíssimo para viver o mais comprido domingo de sua vida. A manhã foi exasperante. A ansiedade impediu o jornal, o almoço, a televisão. Nem música conseguiu ouvir. A tarde foi atravessada com o telefone e o pânico no colo. Por diversas vezes levantou o fone só pra ver se estava dando linha. Sempre estava. E a noite veio pra marcar 7, 8, 9 horas. Mais nada.

Era meia-noite quando levantou-se e foi até a janela. Nenhum ruído de carro, passos. Nada.

Voltou-se e contemplou no espelho nenhum vestígio da mulher nova que criara. Estava desfigurada. O ódio cresceu nos olhos e tremeu nos braços, pernas e maxilares. Aos gritos se atirou com fúria sobre o telefone, sacudiu, chutou, esmurrou, atirou contra a parede. Então todas as imagens lhe fugiram e o telefone cresceu, ficou enorme e insuportável e todo o quarto era verde e não cabia mais naquela vida.

E pra nunca mais não ouvi-lo tocar foi que deu tantas voltas do fio em torno do próprio pescoço e apertou, apertou até não ouvir mais aquele silêncio.

 

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