ESPIRITUALIDADE DO ENCANTAMENTO
“Ao ver uma
planta, uma pequena erva, uma flor, uma fruta, um pequeno verme ou qualquer
outro animal, S. Inácio contemplava
e levantava os olhos aos céus, penetrando no mais interior e no mais remoto dos
sentidos” (P. Ribadeneira)
Para
a pessoa que passou pela experiência dos Exercícios, cada criatura
Tudo pode causar “admiração
e encantamento”. Como
não se extasiar diante da majestade da Criação?
Para
S. Inácio, tudo está “amorizado”,
ou seja, cheio de Amor, tudo está “cristificado”
e cheio de sentido. O cosmos
abria para ele um espaço de “totalidade”,
onde a graça de Deus,
depois de consolá-lo, enchia sua existência de um desejo sempre maior de servir
a Deus e ao próximo.
“A
maior consolação que descobrira então era contemplar
o céu e as estrelas. Fazia-o muitas vezes e por muito tempo, porque com isto
sentia em si um muito grande esforço para servir
a Nosso Senhor” (Aut. no. 11).
S.
Inácio vê uma bondade intrínseca
em todas as manifestações do mundo visível. Para ele, não existe um dualismo
entre homem e natureza,
pois tudo é pensado e sentido globalmente a partir de Deus.
A originalidade de S. Inácio está em “olhar”
a Criação a partir de Deus, “com os olhos do Amor”.
A partir de Deus, o ser humano encontra seu lugar
e sua relação com a natureza.
Respeitando a singularidade de ca-da criatura e de seu estado vegetativo,
sensitivo e racional, a beleza
de Deus se faz presença, se visibiliza...A beleza de Deus se difunde, se
manifesta. E ao contemplar o esplendor da Beleza
de Deus revelada na Criação, a pessoa se sente seduzida, fascinada, se faz
amorosa...
A
Criação nos fascina como o sol; nos atrai poderosamente e nos enche de
entusiasmo. Esta experiência evoca um sentimento profundo de veneração,
de encantamento,
de reverência
e respeito.
O olhar contemplativo sobre
a realidade, ativa em nós o assombro,
a admiração,
o espanto.
Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do
universo, o assombro é a única
atitude condigna.
Ele
continua “trabalhando”,
re-criando, fazendo tudo novo. O
mundo inteiro é um enorme sacramento
do Amor. O universo se transforma num sacramento,
num lugar e num espaço
de manifestação da “divina
presença”; todas as coisas são por excelência a revelação do sagrado.
E esta manifestação se realiza nas coisas simples da vida. Fé
e encantamento andam sempre juntas.
“É
poeticamente que o ser humano habita a terra” (F. Holderlin)
Sim,
habitamos poeticamente a terra em cada momento; sentimos,
estremecemos, vibramos, nos enternecemos, ficamos encantados com a Criação
e sua insondável vitalidade e beleza.
A
contemplação não pode ser
compreendida de maneira passiva ou romântica, mas, ao contrário, ativa
e interpelativa. É uma
contemplação em que o belo,
o fascinante
e o diferente
cativam os olhos, enchem a nossa interioridade de louvor
e admiração.
Contemplação
é descobrir Deus em tudo. É sentir-se sempre em Deus.
Contemplação é amar a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus.
É sentir-se amado por Deus em todas as coisas e amar a Deus em todas elas.
Textos
bíblicos:
Heb. 11,1-40 Lc.
12,22-32 Sab.
7,15-30 Eclo. 18,1-14
Prov. 8,22-36
Na
oração:
- entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelos benefícios recebidos por
meio da Criação; considere que toda a Criação saiu das mãos do Criador como
presente especial e gratuito para
você;
- ter presente na memória que fomos criados para viver em relação de amor
com tudo e com todos.
ESPIRITUALIDADE
DO TRABALHO “Considerar
como Deus por mim trabalha e age em todas as coisas
criadas...”
EE.236 Uma
pessoa deve identificar-se com
aquilo que faz. Não devemos considerar o trabalho
que fazemos como se fosse estranho, como algo fora de nós que nos
agrada ou desagrada, que nos atrai ou nos causa repulsa. Podemos
considerar nosso trabalho
como uma extensão
de nós mesmos, de nossa mão, de nossa mente, de nosso coração... Não
é isso que dizemos do pincel
usado pelo pintor e do cinzel
empregado pelo escultor? São instrumentos valiosos que se
encaixam nas mãos do artista e obedecem à sua imaginação,
quase como se fossem partes de seu próprio corpo. E aí nasce a obra
de arte. S.
Inácio aconselha: “esta é a
primeira regra de ação: confia
em Deus, como se tudo dependesse exclusivamente d’Ele, e ao mesmo
tempo trabalha como se
tudo dependesse somente de ti”.
O fundamento do ser humano não é o seu trabalho,
sempre limitado e pobre, mas o amor
criativo e redentor
de Deus que se expressa em seu trabalho.
O ser humano “é
criado... e é criativo”; ele
se realiza no trabalho e
Deus pôs a Criação nas mãos dele para que a aperfeiçoasse e a
levasse à plenitude. É no trabalho
que a pessoa encontra o sentido de sua vida e o modo de colaborar com
o bem-comum. S.
Inácio tinha um pequeno costume cheio de sabedoria e de psicologia.
Ao ir de um lugar a outro, ou antes de começar qualquer atividade,
ele parava e perguntava-se a si mesmo: para
onde vou e para que? o
que vou fazer? para quem vou fazer? Essa
é a retidão e a pureza
de intenção no nosso trabalho
cotidiano: “buscar a
Deus por si mesmo e alegrar-se na ação”. Nesse
sentido, aquele trabalho pesado, arrastado, sem muito sentido...
de repente fica leve, transparente e carregado de utopia.
Deixa se ser “tri-palus”
(instrumento de tortura) para ser “poiesis”
“É
poeticamente que o ser humano habita a terra” (F. Holderlin). O
ser humano contempla
aquilo que a Terra estende à sua frente; e,
lá de dentro, a voz do amor e dos valores lhe diz que a
realidade pode ser
transformada. Aí entra a imaginação,
a criatividade...
e começa a explorar possibilidades ausentes, a montar fantasias...
Aos duros materiais à sua volta ele mistura o desejo
e o amor... re-cria o
mundo. Como se fosse aranha, o ser humano constrói o seu mundo
a partir de suas próprias entranhas. Na
“Contemplação para alcançar
Amor” (3º ponto), S. Inácio pede para considerar
como Deus trabalha
por nós, preparando pessoalmente todos os dons. A presença de Deus
no mundo é ativa
e dinâmica:
Deus ama atuando em nossa história. Tudo está sendo construído
e reconstruído por Deus. Deus trabalha
em todas as coisas. Ele é a força
inesgotável de onde brota todo o trabalho
do mundo. Deus continua fazendo tudo novo.
Diante do “Deus
trabalhador” o
ser humano responde com um trabalho
criativo; ele se sente chamado a trabalhar
a serviço do Senhor, para sua maior glória. Esta
é a espiritualidade da colaboração,
ou seja, o trabalho
é a colaboração do ser humano ao Deus trabalhador; pelo trabalho
a pessoa está louvando o Pai, está salvando o mundo e está
crescendo em graça. Para
S. Inácio e sua espiritualidade, Amor
é serviço, é trabalhar com Deus na mesma direção.
Trabalho que se faz
com amor; amor é servir,
trabalhar: trabalhar com a
mesma intenção de Deus, fazendo as mesmas obras que Deus está
fazendo, ou seja, aperfeiçoando a Criação. A identificação entre amor
e trabalho é
encontrada no mesmo Deus, que é Criador
porque é Amor. Encontramos aqui o fundamento para uma teologia do trabalho: o fazer, seja qual for, é redentor, se a motivação é evangélica, se ele está orientado para o Reino. Não é o trabalho que nos faz importantes, mas somos nós que fazemos qualquer trabalho ser importante, quando ele é realizado na perspectiva do Reino. Todo trabalho é nobre, seja ele o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão. A alegria do trabalho está no fato de perceber o sentido e a intenção presentes nele. O que importa é a atitude. E a atitude que ajuda e que salva é fazer o que precisa ser feito, com entrega sincera àquilo que se faz. A identificação com aquilo que fazemos é o caminho para a paz interior. Textos
bíblicos:
Mt. 20,1-16
Mt. 21,28-32
2Tes. 3,6-12
Jo. 5,10-18 Na
oração:
Dar
sentido de amor e profundidade ao trabalho
diário; através do trabalho, servir a Deus por puro amor.
|
ESPIRITUALIDADE INACIANA:
“estar no mundo... sem sair do mundo”
“Os Exercícios
Espirituais alcançam o homem de hoje em seu desejo de entender-se a si mesmo, e
oferecem ao homem de hoje uma chave importante para entender-se”
(Cardeal Martini)
Até
à época de S. Inácio, todo aquele que se sentisse chamado à santidade
deveria naturalmente afastar-se do mundo e de seus perigos e buscar refúgio no
deserto, nas montanhas ou nos conventos.
O único trabalho permitido era um “trabalho” que não os distraísse de
Deus.
Seu principal dever era manter sua atenção em Deus.
E assim ele fala em “ordenar” nossas vidas para servir a Deus.
Agora, S. Inácio insiste em servir a Deus naquilo que “fazemos”. Para ele
isto é o mais importante; com isso ele vê que o estilo de vida apostólica,
por sua natureza mesma, exige que ponhamos nossa atenção em outras coisas que
não são Deus (trabalho, escola, família, relações sociais...).
Por
isso devemos prestar atenção ao que estamos fazendo: “para quê? para quem?
com quê intenção? qual a motivação?... a inspiração?”
É característico da espiritualidade inaciana encontrar a Deus na vida
cotidiana, ou seja, no dia-a-dia da vida familiar, no exercício da profissão,
nas relações sociais, nas decisões éticas, na ação cidadã, no amplo tema
dos direitos humanos, no campo da economia, na presença ativa em política, no
mundo da cultura, no diálogo com os meios de comunicação, na navegação por
internet...
Claramente a espiritualidade inaciana, em sua capacidade contemplativa na ação,
está concebida para encontrar a Deus “no mundo”, na ação de Deus no
dia-a-dia da vida cotidiana.
É
óbvio que a espiritualidade inaciana faz referência à necessidade das
“experiências fundantes”, ou seja, esses tempos densos de síntese pessoal,
tempos de forte iluminação interior (“não sentíamos arder nosso coração?”),
tempos que desencadeiam uma tensão dinâmica de inspiração espiritual, tempos
que marcam toda uma vida.
A partir do “sentimento agudo do absoluto de Deus” podemos reconhecer que o
específico da espiritualidade inaciana é encontrá-Lo nas mediações: o
trabalho, o ofício ou a vida acadêmica, a relação familiar, a vinculação
com outros na vida cívica ou política...
É necessário fazer a passagem de uma espiritualidade de momentos densos
pontuais (eventos) a uma espiritualidade de seguimento em todos os momentos e
circunstâncias da vida, uma espiritualidade das chamadas “realidades
cotidianas”. S. Inácio assinala agudamente o sentido de nossa oração e de
toda nossa espiritual: “para que cresça e suba de bem a melhor” (EE. 331).
O
ritmo da sociedade pós-moderna, e sobretudo o culto à novidade, ao efêmero,
ao superficial, pedem de nós recuperar a dimensão de profundidade em nossa
vida diária.
Pe. Arrupe assim expressa: “uma experiência não refletida é uma experiência
não vivida”.
A expressão “viver a vida” não é exaltar uma vitalidade superficial,
muitas vezes frívola, senão viver a vida em profundidade. Para isso, é
importante “ler” a jornada vivida, retomando e dando atenção às ressonâncias
interiores de tudo aquilo que acontece no dia-a-dia, para considerá-las a
partir do mais profundo de nós mesmos, pois o santuário da presença de Deus
está nesse “espaço” de intimidade entre o Criador e a criatura.
“Ler a jornada” com os olhos de Deus para perceber por “onde passa meu
Senhor”: trata-se de um tempo privilegiado para fazer mais “profunda”
nossa vida cotidiana.
Textos bíblicos: Jo. 3,11-21 Rom. 8,18-26
Começar
o dia oferecendo-o ao Senhor: “Que todas as minhas
ESPIRITUALIDADE
INACIANA:
fonte de SOLIDARIEDADE “A
amizade com os pobres nos faz amigos do Rei Eterno”
(S.
Inácio)
Começamos
citando uma experiência da vida de S. Inácio, uma experiência na
qual ele escuta o chamado do sofrimento alheio. “Dos
que vinham no navio, ajuntaram-se em sua companhia uma mãe, sua filha
vestida com roupas de rapaz, e um outro moço. Estes o seguiam, porque
também mendigavam. Este
fato da vida de Inácio tem um profundo significado. Ele escuta os
gritos de sofrimento de duas indefesas mulheres. Ao ouvir esses
gritos, levanta-se de imediato, sem considerar outras circunstâncias
(nem seu cansaço, nem sua inferioridade...) e atua sem temor, com ímpeto
e, como ele mesmo diz, com eficácia. Essa
experiência inaciana nos sugere algo que é de uma importância
decisiva. Ou seja, que na experiência autêntica de Deus, encontramos
o impulso mais forte, mais decisivo, mais libertador para responder,
sem ambiguidades, ao chamado dos excluídos. É
precisamente a força da experiência de Deus a que nos dá a
capacidade de vencer todas as resistências internas e externas que
nos aconselhariam fazer “ouvidos
surdos” aos gritos daqueles que sofrem. “Nos
Exercícios Espirituais se encontra uma relação entre o impulso
espiritual de seguir o Senhor e a ajuda aos pobres. É claro que o
‘amor preferencial pelos pobres’ está contido nos Exercícios. S.
Inácio confessa nos Exercícios que para o homem a busca de Deus não
é autêntica se não passa pelo cuidado amoroso pelo mundo dos
pobres, e que, reciprocamente, não existe perfeito cuidado do homem e
de modo particular do homem pobre, que não seja fruto de um
descobrimento do amor de Deus que vem do alto” (P. Kolvenbach). A
experiência de S. Inácio desperta em nós a compaixão para com o
outro que é excluído, marginalizado,
pobre... Somos chamados a viver a solidariedade como
um estilo de vida, fundado no modo
de viver de Jesus. A
solidariedade que nasce da compaixão
leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído) uma
dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação. Textos
bíblicos:
Lc. 16,19-31
Mc. 6,30-44
Mc. 1,40-45
Mc. 10,46-52
Mc. 7,24-40 |
EXPERIÊNCIA
INACIANA: descoberta do mundo dos DESEJOS
“Somente
Deus responde aos mais profundos desejos do coração humano”
Em S. Inácio, o
tema do desejo ocupa um lugar central. Ele havia experimentado em si mesmo a força
e a energia dos grandes desejos.
O desejo é como a pulsação de nossa vida; e falar do desejo é falar do ser
humano em sua profundidade última, seu impulso energético vital; é uma das
expressões mais nobres da pessoa.
Com o termo desejo queremos indicar aquela complexa realidade de sensações
e emoções, de sonhos
e aspirações, através dos quais
exprimimos aquilo que mais nos atrai, aquilo para o qual se dirige o nosso olhar
e que está no centro de nossa vida.
O desejo não é um impulso cego e sim uma tendência
significativa para algo que é importante em si mesmo; é uma força
sentida, portadora de significados, uma aspiração,
um impulso para conseguir aquilo para
o qual a pessoa se sente feita, para a realização de seu fim último.
Os Exercícios Espirituais de S. Inácio foram qualificados como “uma autêntica
escola ou pedagogia do desejo”; deles se tem dito que são uma escola para
suscitar, canalizar e potenciar desejos.
Os
Exercícios nos ajudam a descobrir em nós formidáveis desejos e quanto mais
profundamente procuramos identificar esses desejos autênticos, tanto mais eles
nos revelarão o que na verdade queremos e quem somos na realidade.
“Diga-me
quais são os seus desejos e lhe direi quem você é”.
Para
S. Inácio, devemos ser pessoas de “grandes
desejos”: eles são as grandes avenidas pelas quais circula o melhor de
cada um de nós (riquezas, intuições, criatividade, sonhos...).
Tudo começa no desejo; o desejo se transforma em poderoso motor que nos impele
para a frente, nos impulsiona para não permanecermos inertes, paralisados. O
desejo infunde ânimo, estímulo... sustenta o esforço e faz vencer os obstáculos
do caminho.
O desejo é a base da decisão!
Se
o desejo é movimento para algo com sentido,
ele é um “plasmador do futuro”, é
impulso para a transcendência. O ser
humano é capaz de desejar quando sai de si mesmo e mergulha num mundo maior que
ele. Deus trabalha através dos desejos, suscitando atrações, movendo nosso
coração, impulsionando nossa liberdade. Nos desejos mais profundos habita
Deus.
“De Sua Divina Majestade, da qual procede o que se deseja” (S. Inácio).
“Deus, quanto mais quer dar, tanto mais faz desejar” (S. João da
Cruz).
O
desejo é indicador de Deus, transparência d’Ele, caminho para Ele. Isso
porque o ser humano é fruto do desejo de Deus – Deus cria o ser humano e este
sonha Deus e tem desejo d’Ele.
Isso pede de nós uma escuta atenta dos desejos profundos, saber levantar a
folhagem do “desejo superficial”
para descobrir o solo de nosso “desejo
mais íntimo, mais divino”.
Um
outro dado é importante salientar: o desejo autêntico está sempre vinculado
à alteridade.
Aqui
é imprescindível o trabalho de discernimento da autenticidade dos desejos e de
sua seleção, integração ou ordenação com respeito ao desejo básico de
identificação e seguimento de Jesus Cristo.
É necessário fazer com que o mundo de nossos desejos fique configurado com o
modo de ser de Jesus.
S. Inácio acreditava que nossos desejos mais autênticos deveriam ser cristocêntricos.
1Rs. 3,4-15
Na
oração: Fazer
memória dos grandes desejos que deram sentido e sabor à sua vida.
Perguntar-se a si mesmo: “que
estou desejando?”; “que desejo desejar?”
INACIANIDADE:
busca da MAIOR GLÓRIA de Deus
“Se
a glória nos é revelada na existência e na harmonia do universo, é para que
nós reconheçamos
a presença ativa de Deus no mundo e ao mesmo tempo colaboremos com sua ação”
(F. Courel).
Outro
traço da pessoa inaciana, que emana dos Exercícios, é o da “maior
glória de Deus”, entendida à maneira de S. Irineu: “Gloria Dei vivens
Homo” (a glória de Deus é o homem vivente).
Que todas as pessoas tenham vida!
Quem tem esse carisma inaciano não busca o modo bom, mas o melhor, o que
mais toca, o que mais muda, o que faz com que
todas as pessoas tenham vida, e vida abundante. A espiritualidade
inaciana é uma espiritualidade da glória, da alegre certeza de que Deus
triunfará.
A
fórmula “tudo para a maior glória de Deus” condensa toda a dinâmica
interior do itinerário de sua vida, expressa sua atitude fundamental e motivação
profunda de sua existência; ela é a meta para a qual Inácio orienta sua vida,
o princípio inspirador de suas decisões, a que dá sentido à sua atividade
apostólica.
A glória de Deus, buscada “em todas as
coisas”, é a força interior que o impulsiona a realizar tanto as grandes
empresas como os atos mais simples de cada dia. É a expressão última do
dinamismo apostólico inaciano.
A mística inaciana é uma mística de retorno ao mundo e à ação apostólica.
A pessoa inaciana é continuamente remetida à ação apostólica, à existência
cristã. O serviço da glória é sua vocação, na Igreja e no mundo. Todas as
suas energias, talentos, criatividade... deve estar a serviço da glória para a
edificação do Reino.Portanto, a “maior
glória” é um fim a perseguir, uma meta que ainda não foi realizada
plenamente; ela é um apelo constante e princípio de discernimento para eleger
o melhor e melhor contribuir na obra da Redenção.
Estar
a serviço da glória de Deus significa, ao mesmo tempo, estar a serviço dos
homens. Para Inácio, a “maior glória
de Deus” é, com efeito, o critério proposto para verificar e julgar a
qualidade de nosso serviço. Para isso, quem vive a inacianidade é alguém “excelente”
em algum campo.
Não é que se queira classificar as pessoas, mas, deve haver uma excelência na
pessoa - com o critério mais adequado para cada um. Excelência que não se
mede nem segue parâmetros humanos, senão que se adquire ao sentir-se atraído
por um Deus sempre maior
Obviamente,
a excelência fundamental é o “excedente
de humanidade”: o que supera a norma, o comum, o que vai mais além do lícito,
do razoável... e que se mostra numa atitude para com os outros e que se
aproxima da incondicionalidade na acolhida.
Interessa-lhes encarregar-se “daquilo
que é de Deus”, à maneira de Mt. 25, no juízo das Nações.
As obras de justiça solidária são a avaliação fundamental da ação humana.
Isto faz com que o “nome” de Deus
seja reivindicado, fique bem inscrito na história.
E essa é a ação que atrai e seduz primordialmente. Isto envolve a destruição
das falsas imagens de Deus e a oferta vivencial – a todos e da melhor maneira
– do Deus que Jesus nos manifesta.
“O
que é de Deus”
para o(a) inaciano(a), está perpassado pela contemplação para alcançar Amor,
onde tudo fala desse Deus que se entrega em todas as coisas e ao qual não resta
outra coisa senão devol
ver-lhe tudo, comprometendo-se com Ele, da mesma maneira que faz “o
amado com o amante” (EE.231).
Por
isso, o(a) leigo(a) inaciano(a) tem que estar – física ou moralmente, com
algum vínculo orgânico – numa obra de “ponta”,
que de alguma maneira influa para fazer as coisas de outro modo, para servir
melhor a mais pessoas, estruturalmente.
A pessoa inaciana não pode ser do comum, ainda que esteja no comum, ou seja,
tem que distinguir-se porque realmente vive a busca
da excelência, do magis, da maior glória de Deus, do bem mais
universal... Ela é chamada a ser vanguarda na
igreja e no mundo.
Textos
bíblicos: Mt. 25,31-46
Mt. l4,13-21
INACIANIDADE:
caminho
para as profundezas do próprio ser
“Santo
Inácio me ensinou a teologia do coração”
(S. Felipe Neri)
S.
Inácio nos apresenta uma antropologia da interioridade, do “sentir e
saborear as coisas internamente”. Mas não se trata de uma interioridade
puramente introspectiva ou sentimental, e sim uma interioridade “alterada”,
“habitada” e “constituída” por uma relação com Alguém.
S. Inácio distingue 3 pensamentos que podem alterar-nos: “um propriamente
meu, o qual sai de minha mera liberdade e querer, e os outros dois que vem de
fora: um que vem do bom espírito e o outro do mau”.(EE. 32)
Isto implica uma antropologia com
alteridade, uma pessoa alterada e afetada por Outro.
A pessoa dos Exercícios se experimenta a si mesma constitutivamente alterada
por Outro: “o ser humano é criado” e chamado, busca viver em sintonia com a
Criação, deixando-se conduzir somente por um amor que “desce do alto”.
A interioridade, nos Exercícios, não se deleita nela mesma, senão que se
constitui numa relação, na qual o Criador e Senhor se comunica à pessoa
“abrazando-a” e “dispondo-a”, tirando-a de si, “alçando-a toda a seu
divino amor”. Uma relação Criador-criatura na qual é desejável que não
haja interferências, para que se “deixe agir imediatamente o Criador com a
criatura e a criatura com o Criador” (EE. 15). Mas a relacionalidade, a
interioridade e a alteridade encontram seu cumprimento fora de si mesmo,
pois “tanto se aproveitará cada um em todas as coisas espirituais, quanto
mais sair de seu próprio amor, querer e interesse” (EE. 169).
Toda
pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e
pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida,
“descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. Aí
se pode encontrar o sentido de tudo “aquilo que se é, o porque do que
se faz, se espera, busca e deseja”.
A própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e
preciosa que cada pessoa tem, para encontrar segurança e caminhar na vida
superando as dificuldades e os inevitáveis golpes da luta pela vida.
É no “eu mais profundo” que as
forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia,
tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser.
Assim, a descoberta do nosso próprio ser profundo nos aproxima do autor
da vida: Deus.
É no coração, “última solidão do ser”, que a pessoa se decide por Deus
e a Ele adere. Aqui Deus marca “encontro” com a pessoa. “Deus é mais íntimo
a cada um de nós do que nós mesmos” (S. Agostinho).
Cada
pessoa leva dentro de si mesma a “pegada” de Deus, que atua sob a forma de
desejo insatisfeito.
A oração inaciana é o caminho interior que faz a pessoa chegar até o próprio
“eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado
mais positivo de si mesma, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da
gratuidade, da abundância, onde a pessoa mergulha no silêncio, à escuta de
todo o seu ser.
S. Inácio nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais
profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a
unidade de nosso ser; aqui é o lugar da transcendência, onde nossa transformação
realmente acontece.
Se
a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer
emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Deus
libera em nós as melhores possibilidades, riquezas insuspeitas, capacidades,
intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de
pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no
nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria
interioridade.
Os que mergulham nas profundidades do oceano interior ficam fascinados pelo
esplendor daquilo que contemplam. O coração de cada um está habitado
de sonhos de vida, de futuro, de projetos; sente-se seduzido pelo que é
verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação
interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da
verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo
irreprimível de auto-transcendência...
Textos bíblicos: Mt. 13,44-46;
Sab. 7,7-30; Sl 138
Na oração: Para realizar-se e desenvolver toda a sua potencialidade, busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade. É no mais íntimo de nós que rezamos ao Senhor. É no mais profundo de nossa interioridade que escutamos o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
INACIANIDADE:
êxodo da estreiteza do próprio ser à largueza do coração
“Porque
cada um deve persuadir-se que nas coisas espirituais tanto mais aproveitará
quanto mais sair do seu próprio amor, querer e interesse”
(EE. 189)
Exercícios: experiência de rompimento de fronteiras profundas, de libertação e deslocamento voluntário, de saída do amor próprio, de alargamento (magis) do coração. Experiência que comporta emoção e descoberta, com sabor do risco, do perigo, da ousasia... Uma vez unificado interiormente, o exercitante pode arriscar-se no processo fronteiriço da Eleição. Eleger é ampliar horizontes.
Dos
Exercícios surge uma pessoa internamente reconstruída, com vontade de sair
daquilo que limita, empobrece, degrada... é a experiência de alguém
que é impelido a lançar-se, romper limites, assumir novos riscos,
deslocar-se para as novas encruzilhadas de si mesmo e da história.
Todo ser humano carrega em si mesmo a força do Espírito que rompe as
fronteiras de seus egoísmos, que alarga a pessoa para além de si
mesma...
Da
vivência dos Exercícios brota uma convicção básica: Deus se comunica e atua
“imediatamente”, sem fronteiras,
sem necessidade de mediações estranhas e sem filtros. A pessoa abre-se ao “bem
universal” como horizonte libertador, pessoal e comunitário. Mediante
esta dimensão ela poderá e deverá viver permanentemente mergulhada na História
fluente, numa atitude de permanente êxodo e disponibilidade.
Por tratar-se de um símbolo de movimento
ativo para deixar a escravidão rumo à liberdade, a saída dos hebreus do
Egito é um acontecimento que ajuda a entender o processo vivido nos Exercícios
Espirituais.
É fundamental mencionar que o Egito é, acima de tudo, um símbolo, por
representar um lugar que “já foi
bom” e deixou de ser. As analogias se tornam mais interessantes ainda se
reconhecermos que a etimologia da palavra Egito – mitsraim
- quer dizer “lugar
estreito”.
Todos
nós nos deparamos com lugares que se tornam “estreitos”
em determinado momento da vida. Esses lugares, que outrora serviram para
nosso desenvolvimento e crescimento, se tornam apertados e limitadores.
No processo de saída de um “lugar
estreito”, temos uma descrição interessante do relato bíblico. Segundo
o mesmo, o processo de “saída”
esbarra num limite tão real e profundo como o mar. Arrependido por ter
permitido a saída dos hebreus, o Faraó os encurrala junto ao mar.
Entre o exército e o mar, os hebreus se voltam ao líder Moisés em desespero.
O que fazer?
Moisés consulta o Senhor; sua resposta é decisiva e intrigante: “Diga a
Israel que marche” (Ex. 14,15).
Conhecemos
o final do relato bíblico em que o mar se abre. O futuro existe se o povo
marchar.
Esse profundo ato de confiança em si e no processo da vida garante a passagem
do “lugar estreito” para a nova
terra. O que não existia passa a existir e um novo lugar amplo se faz acessível.
Não existe condição de marcha para quem realmente não se percebe em
estreiteza.
Na outra margem, não podemos nos esquecer de que nenhum lugar poderá ser amplo
para sempre.
A
estreiteza é uma condição da vida.
Passar por um processo de mutação de maneira bem-sucedida é irromper em um
outro lugar que não se sabia que poderia conter nosso “eu”.
Construímo-nos a partir dos acampamentos
que fazemos e do levantar dos mesmos.
Quem não está desperto perde a capacidade de detectar a estreiteza.
Nossa insensibilidade e nosso fechamento se beneficiam daquilo que não
rompe, que não põe em marcha...
A mediocridade é a tentativa de permanecer acampado, não reconhecendo ou
legitimando o mar que existe para ser transposto. “A
mediocridade não tem lugar na cosmovisão de Inácio” (P. Kolvenbach).
S.
Inácio, na sua Autobiografia, nos relata sua experiência de passagem pelo
caminho estreito:
“...empreendeu o caminho até Bolonha, e nele sofreu muito, sobretudo uma
vez que perdeu o caminho e começou a andar junto a um rio..., e este caminho,
quanto mais andava, ía-se fazendo mais estreito; e chegou a estreitar-se tanto
que não podia seguir adiante nem voltar para trás; de modo que começou a
engatinhar-se, e assim, caminhou um grande trecho com grande medo, porque cada
vez que se movia sentia que ia cair no rio. E esta foi a maior fadiga e trabalho
corporal que jamais teve; mas, por fim, saiu do apuro” (Aut.91)
Textos
bíblicos:
Ex. 14,10-31
Mc. 12,41-44
Mc. 4,35-41
Mt. 7,13-14
Na
oração:
recordar dimensões da sua vida que estão se ampliando a partir da experiência
dos Exercícios;
recordar situações, entraves, obstáculos... que limitam o seu crescimento
interior;
- o que você está vislumbrando no
seu horizonte pessoal, profissional, eclesial, familiar, social, político...?
INACIANIDADE: viver nas “fronteiras” da Igreja e do mundo
“A
utopia do REINO gera a audácia”
A
experiência cristã nos impele continuamente a uma vivência essencialmente "fronteiriça".
Seguir Jesus é arrancar-se, desinstalar-se, abrir-se a situações
novas, correr o riso do provisório...
É situar-se no limite, diante de “Jesus-em-limite:
a Cruz.
A fronteira é espaço tenso e conflitivo;
ali o Evangelho se faz mais transparente, o seguimento de Jesus se faz mais
radical, a vivência cristã deixa de ser neutra e começa a ser conflitante.
Dizer “fronteira” é como dizer novidade;
fronteira significa lugares novos, experiências novas, desafios novos.
Comporta emoção e descoberta, com sabor do risco, do perigo, da
ousadia...
Na
história da Igreja muitos homens e mulheres viveram em atitude de permanente êxodo
e disponibili-dade, numa espécie de itinerância interior e exterior que os
converteu em vanguardas da história.
Porque
foi homem “com uma visão que ia além de seu tempo”, S. Inácio nos revela,
na sua vida, um caminho original, alternativo, criativo, diferente, contrastante
com o da maioria; não é uma “via”
como as outras.
Se não é anormal, é certamente não-normal; sua vida é marcada por certa “estraneidade”,
não só face ao mundo mas também no seio da Igreja, porque sua existência
está situada no umbral, no limite...
O umbral é a matriz das experiências religiosas, dos sonhos, dos projetos
originais, das intuições poéticas ou artísticas, da imaginação criadora,
dos ideais vitais...
O umbral é um lugar de relação, de questionamentos, de novidade; é
provocador, incitador, desperta a curiosidade...; ele atua no nível das raízes
mais profundas do nosso ser.
Nem todas as pessoas vivem nesse “umbral”
ou na “fronteira”. A maioria
é habitante do mundo, da região habitada, segura, sem riscos... Aquele que é
capaz de suportar e sustentar a abertura do limite e travar diálogo com ele,
esse é o “habitante da fronteira”. S.
Inácio foi capaz de se aproximar desse limite, tanto interior quanto exterior;
por isso encarnou ideais vitais da sociedade de seu tempo. Ele rompeu as
fronteiras geográficas, culturais, religiosas, sociais...
Tinha o coração maior que o mundo.
Por
ser “homem de fronteira”, Inácio
evitou uma dupla tentação: seja de romper totalmente com a instituição (como
Lutero), seja de deixar-se manipular por ela.
Ele esteve com um pé no sistema para poder dizer-lhe algo (protesto)
e um pé fora para poder anunciar o que lhe transcendia e lhe dava, ao mesmo
tempo, o sentido supremo (proposta-utopia).
Ele foi capaz de “contemplar o outro lado”, de vislumbrar algo novo, inédito...
Deslocou-se do centro para a margem, do “normal” para o “não-normal”,
da segurança do mundo para a insegurança evangélica, da retaguarda para as
novas encruzilhadas da história...
Houve muito de aventura, de risco, de
imaginação criadora... sem modelos prévios, sob o impulso do Espírito.
“Deus o conduzia pela mão como um mestre conduz seu discípulo” (Aut.).
O
peregino inaciano é alguém que “entra”
numa terra estranha, que se afasta dos apoios comuns da existência; é alguém livre,
que não se acomoda num determinado lugar,
que está sempre na expectativa da novidade...
pronto a arriscar-se nas múltiplas e
mutáveis situações humanas de fronteira.
Para
ele, a origem de sua experiência está nessa inquietude de “sair”
e ir aos “extremos”, aos “aforas”...
Na fronteira de si mesmo encontra o espaço sagrado onde Deus se manifesta; ali
encontra-se com o melhor de si mesmo(a), com as energias
adormecidas, com os sonhos escondidos
e projetos ocultos...
“Partir
para a fronteira”
é, portanto, “entrar” no
mistério de si mesmo, no mistério da grande fraternidade, no mistério do
sentimento cósmico.
“Partir para a fronteira” é “entrar”
no nosso coração, morada dos nossos sonhos,
experiências, desejos, lembranças... morada do amor, lugar de encontro e
escuta, espaço de silêncio. Enfim, a fronteira converte-se, para quem tem um
olhar sacramental, num grande Templo, onde Deus revela a sua identidade
e onde descobrimos nossa verdadeira identidade
e missão; estabelecemos nossa moradia no mundo, inseridos nos “extremos”
do trabalho, da luta, da vida, dos direitos, do humano... ali onde se faz mais
necessária a atividade profética,
para sacudir a inércia na qual vai se petrificando a Igreja e a sociedade.
Textos
bíblicos: Ex. 3,1-6
Lc. 5,1-11 Mc.
5,1-21 Gen. 12,1-12
Mt. 4,17-25 Mc.
7,24-30
Na
oração: Há em nós “extremidades
da terra” ainda inexploradas, regiões desconhecidas, onde todas as criações
e intuições são possíveis, se consentirmos entregar-nos a esse mundo
misterioso.