Ilha do Sol - Continuação



Quando Teodoro morreu, Anita chorou sinceramente pesarosa. Conhecera-o viúva jovem com um filho de sete anos e ele, vinte anos mais velho, casado e com dois filhos adultos. Anita trabalhava na indústria dele, como operária, e passava por dificuldades para criar o filho, o único bem que Carlos lhe deixara. Carlos ela amara com paixão. Foram seis anos de casamento perfeito, sem divergências, com uma entrega total e mútua, assim Anita recordava-se dos anos de convívio. Conhecera cada detalhe do corpo dele, todos seus ângulos, seus músculos, suas marcas e cicatrizes e, também, seus pensamentos. Os dias em que Carlos se ausentava em compromissos de trabalho eram, para ela, vazios e ansiosos e o amor que lhe dedicou foi tanto, que esgotou sua capacidade de amar.

Anita enfim adormeceu, e sonhou com Carlos acariciando seu corpo como ainda tão bem lembrava quando acordada, e despertou ansiosa para iniciar a busca. Precisava encontrar o homem das fotos. Seu João afirmou não saber onde encontrá-lo, mas revelou que era um homem de poucas palavras e nas vezes que ali estivera foi para encontrar-se com uma mulher que vinha na barca do continente - nunca deixara se fotografar, o que não inibiu seu João de fazê-lo. Chegava pilotando um pequeno barco a motor que evidenciava vir de alguma outra praia da ilha, pois o porte da embarcação não agüentaria chegar ao continente.

Enquanto pedalava a bicicleta que alugara, o único tipo de locomoção na ilha, Anita observava a paisagem na principal trilha, a que margeava os sopés dos morros e corria quase paralelamente à orla da praia, tendo acesso a todas as praias. Cada dia parava em uma praia diferente, passava horas na areia sob o sol, observava os freqüentadores e os pescadores, conversava com os moradores. Voltava ao entardecer e partia ao amanhecer da casa do Seu João. Conheceu todas as praias e quase todos os seus habitantes, menos alguns que moravam nas encostas dos morros.

Anita fez muitas amizades entre os moradores e, nas conversas, lhe contaram sobre a existência de algumas ruínas das fazendas de café e de cana de açúcar e das minas de ouro e diamantes e, também, da localização das grutas preferidas pelos piratas e diziam serem todas mal assombradas, aconselhando-a não visitá-las. Conheceu os dois guardas florestais, o padre que visitava a ilha uma vez por mês e a professora que vinha do continente. A todos revelou o fascínio que a ilha exercia sobre ela. E todas as noites sonhou com Carlos, e todos os dias sentiu seus carinhos, e continuava desejando-o vivo.

Da trilha principal também partiam os acessos para as encostas dos morros, onde se localizavam as ruínas, e Anita resolveu também explorá-las, apesar dos conselhos dos novos amigos. Não existiam trilhas até as ruínas, pelo menos nas que já havia percorrido. Anita deixava a bicicleta sob alguma árvore e caminhava o restante do percurso. Ganhou vários arranhões e picadas de mosquitos mas, a existências de cobras respeitou e providenciou as botas recomendadas. Alguns dos sitiantes já havia conhecido, outros somente encontrou na passagem, mas todos já tinham ouvido falar da turista que se apaixonara pela ilha e por seus habitantes. E encantados a saudavam, convidando-a para suas modestas moradias.

Em nenhuma das praias Anita havia visto qualquer barco a motor nos pequenos ancoradouros que algumas possuíam - o maior era o da praia em que estava alojada e era o único que podia ancorar barcos de maior porte. Viu somente as canoas com que os pescadores enfrentavam o mar na busca de alimentos. Anita não revelou a ninguém seu desejo em encontrar o homem das fotos, nem mesmo ao Seu João. Naquele primeiro dia na ilha, quando viu as fotos, disfarçou perguntando sobre as pessoas das outras fotos para depois indagar pelas do homem e, desde que ali se alojou, não pronunciou uma única palavra que revelasse sua intenção, com isso a procura era difícil. Mas não impossível, concluía.

Numa tarde que encontrava-se na praia, conversando com alguns turistas, aceitou o convite deles para o passeio, de barco, que iriam fazer ao redor da ilha. O barco partiu rumo ao sul costeando a ilha até alcançar a última praia, a "Praia da Ponta", a partir desse ponto, havia somente pequenas praias, que o taifeiro explicou só existirem quando a maré está baixa, e numa delas, próximo do ponto norte da ilha, ela viu um pequeno barco a motor, amarrado em uma árvore da praia temporária. Então teve certeza que o encontraria.

Num de seus passeios exploradores Anita encontrou umas crianças voltando da escola, seus conhecidos, e convidou-os a tomarem refresco no Comedor. Ela gostava de crianças e, enquanto ouvia suas falas alegres, mais uma vez amargurou-se pela partida prematura de Carlos, que com ele levou seu desejo para gerar outros filhos. Desviando seus pensamentos e concentrando-se em seu objetivo, indagou-lhes se conheciam algum lugar interessante que ela ainda não houvesse visitado. Contaram-lhe que tinham um lugar secreto, mas só a levariam se não revelasse a seus pais.

No dia seguinte, levando água e alimentos, Anita acompanhou os meninos. Percorreram uma trilha, daquelas que se afastavam da praia em direção aos morros, até seu final. Embrenharam-se pela mata por uns metros e logo após encontraram a trilha aberta pelos meninos, que percorria aclives e declives por entre a mata exuberante e perfumada. Anita, em vésperas de completar quarenta anos, acompanhou-os com pouca dificuldade, chegou até a sentir-se uma criança ansiosa com seu segredo, sua traquinagem. Percebeu que os dias na ilha estavam se tornando cada vez mais alegres, ela não sabia se era pela certeza de que sua descoberta estava próxima ou pela vida simples que lhe apresentavam.

Era a primeira viagem que fazia desde que Carlos morreu. Na verdade eram também os primeiros dias que vivia novamente. Resolvera viajar atendendo ao apelo do filho para que se afastasse da cidade, para que se poupasse dos insultos da família de Teodoro que indignaram-se com o legado com que ele a havia premiado. Anita não se achava devedora, pois dedicara-se aquele homem com altruísmo, fizera-o feliz, cumprira sua parte resignadamente, aliás, como tudo que viveu após a morte de Carlos. Agora percebia-se nela um novo alento, alguma força que a impulsionava, que a alegrava.

O menino que caminhava à frente avisou que estavam chegando, Anita seguiu com o olhar a indicação de um deles e avistou a entrada da gruta. A gruta era um túnel natural, atravessava a pequena elevação descrevendo uma curva suave. Os meninos, em visível excitação, contaram-lhe ter sido um dos locais em que os piratas escondiam seus tesouros e mostraram-lhe os deles - estilingues, uma espingarda de chumbo que ganharam de um turista, um rolo de arame e outro de corda e um facão - escondidos em buracos cavados nas paredes e dissimulados com pedras que os fechavam. Os meninos garantiram já estarem lá e que só os descobriram depois de muita pesquisa. Levaram-na depois à outra trilha, alcançada através da outra entrada da gruta, que descia suavemente até acabar bruscamente num local de onde se avistava, há poucos metros abaixo, uma planície de um verde repousante. Anita percebeu que encontravam-se no lado ocidental da ilha, ao noroeste, na direção de onde avistara o pequeno barco e que após os morros que limitavam a planície do outro lado, havia o mar. Perguntou-lhes porque a trilha não descia até a planície. Explicaram-lhe que uma vez desceram até ela e descobriram que lá havia a casa de um homem que não gostou de vê-los, e até proibiu-lhes de voltarem. Sem demonstrar maior interesse, indagou-lhes sobre o homem, como era, se o conheciam. Pelas respostas desconfiou tratar-se do homem que procurava.

Esperou a segunda-feira, quando os meninos estariam na escola, e voltou até o ponto onde haviam interrompido a trilha, mas antes pegou o facão e a corda nos cofres dos meninos para ajudá-la na descida até a planície. Amarrou a corda em uma árvore e desceu alguns met ros apoiando-se nela, pois não queria deixar rastros de sua passagem, e viu a casa, de alvenaria, rústica, com ruínas por perto, talvez uma outrora fazenda de café ou de cana de açúcar. Sentou-se e ficou observando por longo tempo, até vê-lo. Não teve dúvidas de que era o homem das fotos. Sentou-se sobre a vegetação, esquecendo-se das cobras, e chorou convulsivamente como só o fizera naquela tarde ao receber o telefonema que lhe participava o acidente sofrido por Carlos. Enquanto teve lágrimas, Anita chorou e, enfim secaram, para sempre. Quando levantou-se era outra Anita.

Voltou várias vezes, viu a mulher, observou-os embrenharem-se pela mata levando ferramentas e só retornarem horas após rindo felizes, aprendeu com eles e arrependeu-se dos quinze anos perdidos em saudades e recordações, a vida é única e boa em qualquer lugar do mundo, com ou sem companhia.

Duas semanas depois Anita caminhava pela beira da água quando avistou o pequeno barco a motor aproximar-se e parar perto ao ancoradouro. Caminhou rápido para chegar mais próxima, mas a uma distância que não fosse percebida, e observou-os se abraçarem e beijarem-se demoradamente e o homem ajudar a mulher subir no ancoradouro e depois partir acenando. Ela, segurando uma pequena valise, permaneceu no ancoradouro evidenciando esperar pelo barco que traz os turistas. Anita correu até a casa do Seu João, jogou alguns pertences numa maleta, avisou que iria até o continente fazer compras e uma ligação para saber de seus negócios e retornaria logo. Esperou afastada do ancoradouro até o barco atracar, então, quando os primeiros turistas começaram a descer, misturou-se a eles e embarcou, mantendo-se distante da mulher e atrás dela. Pagou ao cobrador sua passagem e desejou que na outra ilha que o barco pararia, outros passageiros embarcassem quando os turistas restantes descessem. Outras pessoas embarcaram e ela respirou aliviada.

Seguiu de longe a mulher e viu o hotel em que ela entrou, esperou um tempo e a seguir entrou e hospedou-se também. Meia hora depois Anita desceu, dirigiu-se ao saguão, pegou um jornal do dia e tranqüilamente passou a lê-lo, a mulher com certeza desceria do quarto. Não demorou muito para ela aparecer. Também foi para o saguão e pegou um jornal. Anita sentia-se segura, ela ainda não a tinha notado, pois no barco ficara a viagem toda escrevendo em uma agenda ou mexendo em papeis e em nenhum momento virou-se para trás, e quando chegaram Anita esperou todos saírem para só então descer do barco, e a peruca loira que estava usando agora, junto com a maquiagem, a transformaram ao ponto de ela mesma não se reconhecer na imagem que o espelho mostrou. Quando Anita sentiu fome, percebeu um bom motivo para dirigir-se a ela. Apresentou-se como Márcia Luz, turista carioca que havia chegado na véspera, à noite, e perguntou-lhe se sabia de algum bom restaurante.

Conversaram durante todo o almoço e Anita observou a mulher. Eleonora pareceu-lhe segura, desembaraçada, falava suavemente, com aparência de estar por volta dos trinta e cinco anos e considerou-a atraente para os homens. Contou-lhe que partiria no vôo vespertino com destino à São Paulo aonde iria tratar de assuntos particulares durante alguns dias, e só. Por mais que Anita fingiu confidências, não resultou em nenhuma da parte dela.

Anita voltou na tarde do dia seguinte trazendo presentes para Seu João e sua família e para os meninos que a levaram até a gruta. Comentou com algumas pessoas que teria que partir em breve, pois teve conhecimentos de alguns problemas em seus negócios que exigiam sua presença para decisões que se faziam necessárias. Em poucas horas quase todos os moradores da ilha comentavam que a turista mineira Lourdes, como a paulista Anita se apresentara a todos da ilha, outro disfarce que Anita usou desde que chegou, iria partir.

No dia seguinte Anita saiu cedo em direção à casa da planície. Desceu o declive tomando os cuidados de sempre para não deixar marcas de sua passagem, como galhos quebrados ou folhagem pisoteadas, abriu caminho com as mãos, que protegera com luvas grossas, até atingir a planície coberta de relva rasteira e pequenos arbustos. Estava a uns vinte metros da casa quando ele apareceu na porta, de costas para ela que parou por instantes como que paralisada, para logo a seguir recompor-se e chamar:

_ Carlos!

Ele virou-se lentamente e aos poucos foi mostrando na expressão a surpresa que experimentava. Enquanto Anita percorria os poucos metros que a separavam dele sua mente reviveu todos os minutos e segundos dos quinze anos de sofrimento como se estivesse vendo num filme. Parou bem próxima a ele, fitando-o nos olhos de olhar perplexo. Anita não sentiu o tempo que se passou durante esse olhar, só saiu do transe em que se encontrava quando ele abraçou-a, escondendo o rosto em seus cabelos e pedindo-lhe perdão.

Dois dias depois Anita estava partindo, acenando aos amigos que vieram despedir-se até sua visão não mais os distinguirem. Acomodou-se no banco inconfortável do barco, procurou na bolsa os filmes que ofereceu-se ao Seu João para mandar revelar e depois lhe enviar - todos que ele tirara desde o primeiro dia que chegara na ilha, até o último que acabou com as fotos de sua despedida - desenrolou-os e atirou na água do mar junto com o vidro, vazio, de barbitúricos; amarrou o lenço nos cabelos, colocou o óculos escuros e passou o batom vermelho sangue, como da vez que seguira Eleonora; ao chegar, hospedou-se no mesmo hotel que estivera antes.

No entardecer do dia seguinte Eleonora chegou. Jantaram juntas e Anita contou-lhe sobre os passeios que fizera, falou-lhe do êxtase que sentiu na Ilha do Sol e ela revelou-lhe que era lá que vivia, lá que encontrara a felicidade. Quando subiram aos seus quartos, Eleonora despediu-se dizendo que partiria para a ilha na manhã seguinte.

Anita, da janela de seu quarto, viu quando Eleonora dirigiu-se para o pequeno porto e imaginou, enquanto a olhava partir, se alguma vez eles haviam pensado nela com remorso ou compaixão. Carlos contou-lhe que ele e Eleonora decidiram juntos fazer-se passar por morto quando o avião no qual o julgavam passageiro, caiu; esconderam-se naquela ilha onde ficariam até terem recursos suficientes para irem embora do país e viverem livremente. Relembrou-se pela última vez, do reencontro com Carlos, do outro a quem ele cedera sua passagem no avião e morrera sem que ninguém soubesse e estava sepultado no túmulo que visitava constantemente e onde derramara tantas lágrimas; da mina de ouro que encontraram e exploravam clandestinamente e da mesma forma ilícita, Eleonora comercializava o produto; dos pedidos de perdão atrasados de Carlos; do barco que soltara da amarra e que já deveria ter se quebrado de encontro a algum costado; do sono profundo que ela lhe provocou com a dose excessiva de barbitúricos e do seu corpo inerte abandonado no matagal.

Algum tempo depois, Anita lia em um jornal sobre a prisão de Eleonora, acusada de matar um homem, não identificado, e ocultar seu corpo na Ilha do Sol; de exploração ilegal do solo, também na Ilha do Sol; de falsidade ideológica, por manter uma firma com um homem falecido há quinze anos e enviar, ilegalmente, remessas de dólares para o exterior, quando Gustavo desviou-lhe a atenção do jornal. Anita dirigiu-se até ele, sentindo ainda mais a liberdade encontrada, sentou-se à sua frente na mesa de café, carinhosamente preparada por ele, analisou-o demoradamente e concluiu que merecia as emoções que estava vivendo.

-----------| FIM |-------------
Last updated 15.6.2006