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Ele queria todos os cantos. Não tinha idéia que estavam ocupados. Três anos cozinhando estas lágrimas. Finalmente estavam prontas para abraçar aquele asfalto, já úmido pelas lamúrias dos Deuses. Seria a última vez que entornaria lágrimas por tê-la (derr)amado. Por ter entornado gargalhadas inconscientes nela. Como fora se enganar daquele jeito? Ser descartado, julgado como excesso, supérfluo? Nem nisso pensava. Não pensava. Apenas se sentia acalentado, identificado. A chuva, a umidade, a pureza, o amassado da roupa, o incômodo no sapato encharcado, a limpeza da face desenganada. A malandragem do céu: apesar de belo, furtava energia básica, esbanjava potência tétrica. Ele se resumia em ser apenas mais um cara. Chorando, chovendo desilusão. Coberto pelo choro de Deuses, sabia que iria cultivar outro amor debaixo dos raios de sol, plenitudes nem tanto angelicais. O perdão da mulher adiantaria a morte, a missão. A morte não era do corpo. Era do sentimento, ingenuamente, oferecido. Nobremente, agora, cuspido. Por isso, seu remorso era não tê-la absolvido mais cedo, justamente pelo fato de nenhum dos dois ter multiplicado, acumulado ou implorado angústia ou rancor.
absol VIDA
Tinha prometido não se envolver mais uma vez com uma mulher que não o fizesse bem, que o fizesse revirar os olhos, que não o fizesse dormir tranqüilamente, que o fizesse vê-la em todas as esquinas. Acabou se envolvendo com a mesma mulher. Há dois anos, ainda mais jovem, destroçara, sem piedade, seu coração. Abre a porta do velho carro. Solta no vento o cheiro dela, que ficou no banco e, agora, fica incrustado na malha. Desce. Chuva. Chove. Olha para cima e descola os próprios lábios, trêmulos pela dor. Engole gotas de chuva. Gotas de choro. A lua linda, esplendorosamente bela. Nuvens tingidas de cereja. O som do carro. Instrumento triste: Piano. Faróis acesos. Calças encharcadas pela chuva. Reflexo em poças na calçada. Entorna lágrimas. Ligou. Não obteve nenhuma resposta. Jogou o telefone pela janela. Parou no cruzamento. Quinze para às 5 da manhã. Olheiras de chorar. Olheiras de insônia. Cansaço de desencontro. Quinze minutos de chuva e choro. As costas tendem a tocar o asfalto. Movimento em câmara lenta. Joelhos dobrando. Cabeça se inclinando. A nuca querendo beijar as costas. Ombros murchos. Face gelada pelo vento triste. Triste de tão calmo e sem graça. A blusa branca transparece a pele colorida. As mangas curtas revelam desenhos nos braços. Parece forte, mas, agora, jorra fragilidade. O cabelo, escorrendo na testa, esconde cílios. Olhos decepcionados pareciam ter acabado de sair da maternidade. Algum gemido de aperto do coração. Arrependimento por ter declarado amor. Decepção por receber em troca desagradável verdade.Descarte que, aos ouvidos de seu pequeno mundo de paixão, parecia precipitado. O nada não era a troca. A troca era o nada. Qualquer espaço servia para ela.
15 de Novembro de 2003
p a r a   n a v e g a r
t e x t o s
r e p o r t a g e n s
l i v r o  d e  v i s i t a s
r e f r e s c o