Por não querer fazer nada, fiz. Quando quis fazer algo, nada fiz. A força que impulsiona as atividades é a ociosidade, recheada de inércia maculada. Por que você está me olhando desse jeito? Nunca viu ninguém querer fazer e não fazer e fazer querendo não fazer? Duvido. Você também age assim, em algumas noites de lua cheia. Notei isso outro dia. Quero dizer, noite. Você não percebeu que eu te observava. Eu, na soleira da janela; você, deitado no sofá de pensamentos. Foi numa noite com cheiro de chuva, apesar das gotas não terem sido despejadas, de imediato, pelo dono das águas do céu. Noite de lua cheia. Véspera de primavera. Durante todo o dia deste dia, nem mesmo consegui pensar. O calor era demasiado. Meus músculos estavam cansados e minhas pernas bambeavam ao menor sinal de raio de sol. Antes de chegar na soleira da janela para te observar, já no início da noite, torci o pé. Na noite de ontem também torci o mesmo pé. Será que ele está torto? Um sinal de algo torcido? Retorcido? Confesso que, certa vez, ele foi remendado. Mesmo assim, continuei com meu propósito de não fazer nada querendo fazer. Meu pé direito já está todo doído de tantas torções. E o sapato fechado que uso todo dia, sufoca meus dedos. Coitados. Que maluquice! Tenho pés e dedos enforcados. Pés enforcados procurando cultivar desiderato no caminho e dedos sufocados procurando procurar. Escondidos, procuram procurar. Foi por isso que fiquei a te observar naquela noite. A falta de ar no pé direito me seduziu, me induziu a contemplar-te. As nuvens que cobriam o céu exalavam cheiro de chocolate. O céu pintado de cacau. Depois dessa noite, sempre que comia chocolate, ele parecia ter gosto de nuvens. O chocolate nas nuvens e as nuvens no chocolate eram obra do pintor solitário. Você chegou a conhecê-lo? Acho que foi você, inclusive, que me apresentou a este artista. Rara sensibilidade ele tinha. Não usava tinta, pincéis, nem mesmo tela. Mas quanta arte fazia! A arte fazia ele e ele fazia a arte. Olhando-te nesta noite, poucas estrelas, nuvens achocolatadas, céu querendo derramar vinho do paraíso. Águas do purgatório. Mas o dono das águas do céu não despejava por despejar. Ele não despejava não querendo despejar. Só derramava quando não podia mais segurar. Pedi que ele me derramasse, pelo menos algumas gotinhas da vinícola que mantinha. Não o conhecia muito bem, nessa época, mas achei que com isso te enxergaria mais nitidamente. Quanta ingenuidade! |