Ensangüentado. O sangue escorre pela calçada, leva esperança de crianças descalças, desprotegidas, sem perspectivas de futuro decente, de futuro digno, de futuro. O tráfico de drogas furtou ingenuidade, apagou inocência.
Senhoras e senhores, moças e rapazes, crianças se aglomeram nos aglomerados, se acotovelam para ver de perto o corpo, quase rompendo o isolamento de fita plástica preta e amarela. Não é um grande espetáculo, nada inédito, a cena não é incomum. Estão acostumados a encontrar um ou outro cadáver caído na calçada – a maioria atingido por disparo de arma de fogo – , quando vão à escola, ao trabalho, ao bar.
Cinco tiros de uma arma calibre 22 atingiram a cabeça de um rapaz, aproximadamente 25 anos. É o palco onde crianças maltrapilhas crescem, onde brincam perto do esgoto. Ilustra o início do feriadão, Dia das Crianças, coincidentemente ou não. Data criada pela fábrica de brinquedos “Estrela”, em 1955. Uma jogada de marketing que, certamente, não tinha como público alvo os miseráveis das favelas.
Os peritos apressados em fazer o trabalho. Vários outros corpos precisavam de análise na tarde daquele domingo de primavera. Identificação? Nenhum tipo de. Indícios: “mais um vagabundo”, diziam policiais.
Certo dia, chamou-me atenção a comemoração de uma militar pela prisão de um homem, 18 anos, suspeito de ter participado da execução de um colega dela, dentre outros assassinatos. Na noite anterior, o jovem matara um “amigo”, menos de um mês depois de ter completado a maioridade. “Menos dois vagabundos nas ruas. O que ele matou de madrugada também era malandro”, explicou-me pelo telefone a mulher de voz suave e linguajar grosseiro. “O vagabundo da madrugada” morreu com dois golpes de uma pedra de ardósia na cabeça, depois de brigar por causa de uma pedra de crack.
Nos locais dos crimes não há sinal de remorso, dor, culpa ou surpresa na pupila inexpressiva dos moradores. Os mais velhos, sempre sábios, ainda sensíveis, usualmente cobrem os lábios com uma das mãos e, por alguns segundos, cerram os olhos. Parecem lembrar de um tempo longínquo onde a vida não era tão banalizada. Questionados sobre o medo da violência, afirmam enfaticamente: “Não moro aqui. Não sei de nada.” Lei do tráfico. Lei do silêncio.
O morto espiado no feriado de Dia das Crianças, em 2004, no Alto Vera Cruz, um aglomerado da capital mineira, era moreno escuro, vestia blusa verde, bermuda estampada de cinza e de alaranjado e chinelos da cor da camisa. O rosto coberto de sangue colore o asfalto, apaga decência da vida de pessoas simplíssimas, umas honestas, outras nem tanto. O morto era mais uma borracha do tráfico, apaga inocência daquelas crianças. |