Podem me chamar de Hans Bach

(João Ubaldo Ribeiro)

É chato mexer com as convicções alheias, mormente para um sujeito como eu, que tem horror a discutir. Não sei discutir nada e de vez em quando acho que deve haver algum traço fascistóide escondido aqui no meio da conturbada cuca. Não tenho paciência nem com meus argumentos nem com os dos outros, fico logo impaciente e deseducado. Durante muito tempo, tentei me corrigir desse feio hábito, mas é uma questão de pau que nasce torto e, agora, já me preparando para tornar-me o velho caturra que sinceramente ambiciono ser, desisti de me aperfeiçoar em qualquer coisa, até mesmo de substituir o distribuidor e as velas ou trocar os pneus carecas.

Quando o companheiro de festa ou de boteco me provoca para uma discussão, geralmente finjo que não ouço, assovio ou tento mudar de assunto, prestando inusitada atenção ao livro sobre animais exóticos desses que largam em mesinhas, para ficarem lá durante gerações, sem que ninguém toque neles. Se o camarada é dos que não aceitam a recusa, uso todo o vasto elenco de recursos desenvolvido ao longo da existência, desde ir ao banheiro a começar a querer trocar piscadelas cretinas com uma desconhecida do outro lado da sala, ou mesmo ir embora de vez, sem falar com ninguém.

Morro de inveja de amigos de ânimo polêmico, como, por exemplo, os prematurissimamente partidos Gláuber Rocha e José Guilherme Merquior (que, por sinal, se davam muito bem e, que eu saiba, nunca discutiram), os quais saíam para o quebra-pau com uma disposição tysoniana que me deixava de queixo caído, ainda mais que eles, no convívio, eram pessoas doces, generosas e afáveis. Bem verdade que, como eu disse uma vez, o único livro que o Merquior não leu foi a lista telefônica de Caracas — se bem que, com mais algum tempo, ele chegava lá — e Gláuber deslocava diversos megatons num discurso para ele corriqueiro.

Eu não. O máximo que faço é, quando o discutidor não tem jeito, propor uma aposta e um árbitro. Foi assim, por exemplo, que, na Copa dos Estados Unidos, ganhei US$ 100 do Juca Kfoury, em meio a um agitado debate sobre a letra de uma das canções de West Side Story (que continuo a recusar chamar de Amor, Sublime Amor, o qual, se não me trai a vã memória, era o título brasileiro). Serviu de árbitro o inatacável orgulho dos pampas Luis Fernando Verissimo, saxofonista de respeito e, como todo grande artista, não insensível à comissão de 25% que à sorrelfa lhe ofereci (ele queria 30%, mas apelei para a tradicional identidade entre baianos e gaúchos).

Portanto, devo deixar bem claro que não desejo abrir polêmica com ninguém e, se instado na próxima semana, passarei cinco dias trancado no banheiro, ou foragido em Conceição do Coité, Estado da Bahia. Recusarei também apostas, porque o Juca, que — sei no meu coração de romancista, intérprete da alma humana — até hoje não me perdoou, alimenta sonhos de vingança e quer me pegar num trechinho de Sete Noivas para Sete Irmãos e outras armadilhas que seu sagaz espírito levantino vive engendrando. Receio ter de desapontá-lo, até porque sei que ele já está tendo trabalho suficiente para engolir o Zagallo — não seria eu quem iria complicar as vicissitudes digestivas de um amigo.

Digo tudo isso por me encontrar num estado em que já me vi várias vezes (não foi o Amapá), qual seja o de enfrentar convicções sobre coisas tais como os discos voadores e os extraterrestres. Notem bem, não digo que não existam, mas meu apóstolo preferido é Tomé e, como ele, só boto fé no que vejo e olhe lá. Mas acredito piamente no que me contam sobre eles, só que nunca vi nenhum, nem nenhuma foto que parecesse mais que a pegada de um capengossauro com problemas neurológicos. Assim como nunca vi experiências convincentes de comunicação com espíritos, embora acredite, acredite.

Uma coisa que me intriga é que as pessoas reencarnadas sempre foram importantes nas outras encarnações. Lembro do pintor baiano Cardosinho, grande amigo de Jorge Amado, que sabia tudo sobre suas vidas pregressas. Já tinha sido tudo, de faraó a ministro de Napoleão. Não me recordo de ninguém que me tenha contado haver sido cavalariço na Idade Média ou faxineiro no Louvre. Só encontro artistas, cardeais, poetas, estadistas e escritores diversos, os quais diminuem bastante sua qualidade literária ou intelectual depois de desencarnados, talvez porque abandonar as coisas deste mundo cause danos ao estilo, à sintaxe e à felicidade de expressão.

Agora, estou envolvido pessoalmente num desses problemas. Minha filha adolescente fez um levantamento de sua vida pregressa. Juntando 2 mais 2 e a com b, cheguei a uma conclusão estarrecedora. Ela foi pintor impressionista, nunca teve sucesso entre seus contemporâneos, viveu nos Países Baixos, teve uma passada na Provença, etc., etc. E tem mais: gosta muito de coçar a orelha, pensativamente. Inferência inescapável: é claro que ela foi Van Gogh e estou pensando seriamente em cobrar direitos autorais. Justiça, ainda que tarde.

E não pensem vocês que paramos aí. Meditando sobre minha condição e meu relacionamento especial com a Alemanha, sou obrigado a ver a verdade transparente, segundo a qual eu fui Bach. João Bach, aliás — e Ubaldo deve ser uma forma especial de Sebastião em alemão. Bach quer dizer Ribeiro e Hans é simplesmente uma variante de Johann que, por sua vez, é João.

Estou entrando com uma liminar (nunca soube o que é isso, mas todo mundo entra com uma liminar e ganha, não haverei de ser exceção) para pegar 10% de todas as vezes em que executarem um concerto de Brandenburgo. Alegarão vocês que não toco nada, mas advirto que sou bom de caixa de fósforos e já comandei o tarol do saudoso Bloco do Jacu, na Bahia. Quero meus cemildola, quem foi rei sempre é majestade.