Me lembro de Gláuber Rocha, em Portugal, ao telefone, berrando a um funcionário federal brasileiro, não sei se do Ministério de Educação e Cultura, ou somente Cultura, porque não sou muito familiarizado com essas questões governamentais e tendo a esquecer as reformas estruturais com que o Brasil se safa de seus problemas até a semana seguinte.
— Bota esse cara no telefone aí! — gritou Gláuber. — Ele é ministro da Cultura, eu sou cultura, ele tem que me ministeriar!
Não ouvi o resto da gritaria, porque estava de saída. Hospedado no casarão que Gláuber alugava em Sintra, queria ver a linda vila, deslumbrado com tudo o que deparava. Mas, quando voltei, a tevê mostrando uma novela brasileira, Gláuber não só continuava discursando como não havia sido atendido pela autoridade que buscava, autoridade que, obviamente, só existia porque havia gláuberes.
— E eu aqui fico assistindo às mulheres brasileiras mostrando as bundas! — disse ele, à minha chegada. — Isso é a cultura nacional!
Gláuber, como sabem os que o conheceram, era chegado a uma hipérbole, mas claro que ele tinha razão. Lembrando as exceções que, se não mencionar, me renderão cartas de protesto, a verdade, como já contei aqui várias vezes, é que, do Brasil, só se sabe de índios, destruição da Amazônia, crianças de rua exterminadas a metralhadora todos os dias e mulheres mestiças absolutamente taradas, que moram nuas nas praias e dão para o primeiro alemão que aparecer, antes que ele diga guten Tag. Sou absolutamente insuspeito para falar, não só porque conheço essa síndrome, como também não me engano e sei que livros meus têm sucesso no exterior porque são exóticos. Não tenho culpa, sou baiano e exótico até mesmo no Brasil, de maneira que vou dançando conforme a música. Graças a Deus, não sou filósofo, porque filósofo brasileiro só é aceitável se for pajé e disser coisas como "sem flor não existe a fruta e sem o papagaio não existe a papagaia" — aliás, precisamente o tipo de coisa que nos dizem filósofos europeus, mas nós não somos europeus. (Recordo um cretino europeu que, faz anos, escreveu para um jornal que o Brasil é um país infantil porque chama as pessoas pelo primeiro nome. E, nos Estados Unidos, onde até presidente da República é chamado por apelido infantil — Bob, Bill, Ike, Dick etc.? Dai-nos paciência, Senhor Bom Deus, neste que espero ser um domingo ensolarado e feliz.)
E a verdade é que os gringos têm razão, porque não existe coisa que brasileiro despreze mais do que o Brasil e os compatriotas. Dão Pedro II, grande sujeito e pai da princesa Isabel, era amigo e correspondente do conde de Gobineau, autor de um livreco chamado Essai sur L'Inégalité des Races Humaines (ensaio sobre a desigualdade das raças humanas), que faz parte da volumosa biblioteca que prova que judeus, negros, hindus, poloneses, mulatos, muçulmanos e itaparicanos são raças perniciosas, cujo extermínio, gradual ou em massa, é indispensável para a consecução do paraíso terrestre. Ou seja, Dão Pedro era imperador de um povo desprezível e melhor destino lhe coube num hotel de Paris, onde escreveu os sonetos que todos nós ainda recitamos.
Leio aqui no jornal que um comercial de tevê custou mais do que um longa-metragem brasileiro, até mais do que dois ou três. Fico pensando em minha mãe, tadinha, que acredita que os comerciais são feitos em tempo real e, portanto, não podem custar tanto. Tamanha é a ilusão audivisual que acredito que a maior parte das pessoas pense assim. Chega lá, filma o surfista, filma asa-delta, filma a moça de biquíni e pronto. Diz aqui no jornal que esse comercial, como certamente muitos outros, custou US$ 5 milhões. Com US$ 5 milhões, quantas bibliotecas estariam salvas, quantas escolas seriam construídas, quantos filmes seriam feitos, quantos balés seriam encenados, quantas sinfônicas seriam preservadas, quantos isso e aquilo?
Mas a cultura é cara e, quanto o empresário brasileiro, apesar dos estímulos, custa a crer que o produtor de teatro que o procura adquiriu desde a infância o feio vício de comer três vezes por dia. Cultura é comprar um jatinho com tripulação a postos 24 horas por dia, é pôr torneiras de ouro num iate mais caro do que o Queen Elizabeth e é criar cavalos cujo custeio vai além do das obras contra a seca. Fico lembrando os Estados Unidos, onde cada universidade possui pelo menos um pavilhão, um curso ou uma sala dedicados a quem, tendo dinheiro, resolveu dar parte dele à comunidade. Aqui, isso é difícil. E até se compreende um pouco, porque o doador desconfia que vão meter o dinheiro no bolso e não fazer nada de últil à coletividade. Já vi muitos casos desses acontecerem. Mas não é desculpa, ou, se é, trata-se de desculpa esfarrapada. Há maneiras de evitar isso, é só não pensar que estamos na Suécia. Chega de jogar nas costas do governo, ainda mais esse daí, a responsabilidade pelo nosso destino. A responsabilidade é nossa. Quem ganhou dinheiro aqui ganhou porque o gastaram aqui. Tudo bem, comprem ilhas, comprem jatos, comprem mulheres ou homens, façam tudo a que o dinheiro, algumas vezes honestamente arrebanhado, lhes dá direito. Mas dêem alguma coisa em troca, que não seja mandar quentinhas para 15 meninos de rua. A educação e a cultura são o que de mais importante há para um povo, porque comer todo bicho come e matar para comer, como se faz todo dia, também todo bicho faz. Depois se queixam porque, havendo dado um festaço em Miami, no outro dia sai numa notinha de jornal em que um milionário colombiano aparece com o nome em espanhol, informando que se trata de um fazendeiro boliviano de Buenos Aires, Brazil, com especial gosto por garotas de programa da Flórida. Além de todas as brasileiras promíscuas de bunda de fora, é claro.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 04/10/1997.