Escrevo ainda no fim de 97, enquanto esse pugilo de bravos que me lê já está em 98. Não posso, portanto, contar-lhes novidades, mas as velhidades de sempre. Passei uns dias de molho, como vocês devem ter notado. Ou, por outra, provavelmente não notaram, porque, que eu saiba, ninguém reclamou. Nada de monta, apenas achaques dos futuros sessentões. Acabo me acostumando a dedicar metade do dia a cuidar de mim mesmo (inclusive escovando os dentes 20 minutos por dia, sob estrito terrorismo odontológico; se para os dentes tem feito bem, não sei, mas pelo menos já posso mentir dizendo que sou tenista, por ter um braço mais grosso do que o outro). Espero que, levando em conta as vicissitudes econômicas por que passa o trabalhador na presente conjuntura, não escrevam para o jornal, pedindo que ele aproveite a oportunidade e só publique algo da minha lavra daqui a uma década ou duas, se a tanto chegar eu. Estou disposto a tudo, para escapar a esse cruel destino, ou quase tudo, a depender do preço, inclusive falar mal de pombos.
Para que me deu na veneta falar mal de pombos? O lobby columbístico é poderosíssimo e, embora haja recebido umas duas cartas de apoio, caiu-me sobre os ombros e a cabeça, que é onde costuma cair titica de pombo também em estátuas e monumentos, uma devastadora avalanche de xingamentos, a maior parte dirigida à pobre senhora minha mãe e me comparando desfavoravelmente a Hitler. Culminou a execração, quando comprando eu um bagulho natalino em Copacabana (também quem manda sair do Leblon, onde ando sob escolta?), uma senhora me deteve e se confessou arrependida de um dia haver sido minha leitora e que, apesar de comer frangos, perus, codornas, patos, fígado de ganso com cirrose e inúmeros bichos emplumados, jamais comeria um pombo — eis que pombo é pombo. Pombo é pombo, repetiu ela, despedindo-se com desdém. Não chegou ao ponto de outra senhora, que, em carta, afirmou que eu estava com a boca "cheia de fezes de pombo", na hora em que manifestei minhas pobres idéias. Necessito voltar urgente ao dentista. Enfim, deve ser uma religião fundamentalista e me calarei para sempre sobre o assunto, eis que não quero ser morto em praça pública por uma matrona vestida de pombo, gritando, enquanto atira, "sic semper tyrannus!".
De resto, tudo normal. Publiquei um livro novo e fiquei, como sempre, em estado puerperal. Não sou o único escritor, graças a Deus, a passar por isso. Acho até que é muito comum. O sujeito pare um livro (até hoje, não sei, vou à Academia, perguntar ao dr. Houaiss, por que a terceira pessoa do singular do indicativo presente do verbo "parir" não é reconhecida; deve ser de as mulheres, desde que o mundo é mundo, gritarem "pare, pare!", na hora da parturição) e fica de beiço pendurado, num sofrimento de fazer dó a Torquemada. Conheço um que passa semanas, após o evento, andando pela praia com os dedos batucando no ar como quem datilografa num teclado invisível e insultando passantes gratuitamente. Conheço tantos tipos, aliás, que vou guardar o assunto para um dia de necessidade.
Sobram as habituais adversidades para um orgulhoso residente de um apartamento idoso. Deu cupim nos armários da cozinha, com a óbvia ameaça de que também desse cupim em toda a casa. Pai de família impetuoso e decidido, telefonei para uma firma especializada e me mandaram aqui um cupinzólogo de óbvia competência. Depois de cuidadosa busca, o técnico examinou tudo e de fato encontrou uns bichinhos.
— Olha eles aí, olha eles aí! — gritei como quem faz um contato extraterrestre do primeiro grau.
O técnico, com ar cético, pegou um dos bichinhos.
— Isto não é cupim — disse ele. — Isto é caruncho.
Caruncho? Era caruncho, sim, originado de um saco de fubá de milho que comprei faz anos, para fazer um cuscuz-surpresa para a família, e o esqueci completamente, até porque o escondi, para não estragar a surpresa que nunca se deu. Morto de vergonha por ser dono de uma casa acarunchada, desculpei-me e segui o conselho técnico de comprar um bom inseticida, que resolveria o problema, além de jogar o saco de fubá fora, naturalmente.
No setor de eletrodomésticos, trocamos nossa velha Brastemp, que nunca foi nenhuma Brastemp desde o dia em que chegou, por outra — adivinhem — Brastemp, que, pelo visto, também não é nenhuma Brastemp, já que começou a exalar um estranho cheiro de gás que impregna tudo o que está dentro dela, inclusive meu sorvete de abacaxi. Já pedimos ajuda, que dizem estar a caminho, o que virá a calhar, pois o fogão que substituiu o artefato jurássico que antes nos servia aos soluços também é Brastemp e não é nenhuma Brastemp, porque faz uns barulhinhos suspeitos quando não dave e deixa de acender uma das bocas. Somente a máquina de lavar, que não é Brastemp, mas é uma verdadeira Brastemp, continua a funcionar gloriosamente, com seu feérico espetáculo de arte conceitual sempre apreciado através da janelinha de vidro.
Para terminar, estou ciente dos nossos progressos, do pacote e de tudo mais que nos alegra a vida. Tenho duas novas aporrinhações eletrônicas — uma secretária e um lapetope sadomasoquista, sobre os quais escreverei mais tarde uma catilinária ou uma lamentação de Jeremias. A eleição para deputado federal do modelo mais barato custará, leio aqui, mais de um milhão, o que demonstra a que ponto se vai, no sacrifício pela causa pública. Os prefeitos agora emitem moedas e prevejo que, em breve, teremos casas de câmbio em estações rodoviárias, onde trocaremos mandacarus de Caruaru por tamoios do Rio de Janeiro. É bem verdade que, entre todas essas boas notícias, tem havido uma certa falta de luz nos últimos tempos. Mas é tudo má vontade. As dentaduras que agora adornam a boca dos brasileiros poderão ser feitas de material fluorescente, assim matando dois coelhos com uma só cajadada. Em vista de tudo isso, não há como não desejar e prever um grande 98 para todos.
Ah, sim, e também roubaram nosso carro.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 03/01/0998.