Ah, meu tempo! Quando eu era menino, havia vitrolas, inclusive modelos portáteis altamente chiques. O afortunado proprietário de uma dessas vitrolas, cercado de mulheres ofegantes, reunia uma turma privilegiada (se bem que nunca fosse possível afastar os perus), trazia uma pilha de discos de 78 rotações, uma caixa de agulhas especiais (uma boa agulha dava para tocar uns 20 discos, acho eu), dava corda na vitrola com uma manivelazinha, botava o disco e — portento dos portentos — emanavam do alto-falantezinho fanhoso em cima da agulha maravilhosos foxtrotes, boleros arrebatadores, mambos enfervescentes e o repertório de Francisco Carlos, Marlene, Emilinha Borba, Dircinha Batista, Araci de Almeida, Jorge Goulart e tantos outros, hoje esquecidos até por mim.
Depois, muito depois, apareceram os elepês e logo as agulhas que não se trocavam mais com tanta assiduidade. Havia um dispositivo para girar o cabeçote e trocar de agulha. Quando se queria tocar um primitivíssimo 78, virava-se o cabeçote. Mas quem queria mais saber de 78 rotações? Todo dia aparecia uma novidade. Agulha de safira e até agulha de diamante, que meu pai, apesar de surdo tonal, comprou logo, juntamente com uma eletrola (vitrola já estava fora de moda) Standard Eletric, dernier cri em matéria de alta-fidelidade, com disco de demonstração e tudo. E depois veio o estéreo e tudo mais de que sabemos.
Mas não vinha tão depressa, assim como vem hoje. Solidarizo-me com a rainha Elizabeth, que outro dia, discretamente, se queixou da velocidade das transformações, falando temerosa do advento da Internet e afins. Sim, sou do tempo em que o sujeito só precisava aprender, do jeito e no estilo que quisesse, a manipular uma máquina de escrever (ah, as Burroughs, as Helmas, as Remingtons, as Ximitecoronas!) para fazer 30 anos numa carreira de jornalista. Hoje tem que ler um manual ou tomar um curso a pelo menos cada seis meses e quem já compareceu a uma festinha povoada de interneteiros compreende em sua inteireza o significado da marginalidade e acaba passando a noite num tanto esquecido pelos garçons, conversando com uma senhora surda sobre como antigamente Santa Teresa era um bairro perfeito.
Tem quem pense que eu sou, como disse uma revista outro dia, "tecnófobo", mas eu não sou tecnófobo. É uma injustiça. Na minha profissão, até posso ser considerado um pioneiro. Fui um dos primeiros a usar máquina elétrica, o primeiro em Salvador a usar aquela máquina de bolinha IBM (volta e meia, tinha de levar amigos para visitar-me, a fim de me livrar da pecha de mentiroso cabeludo), um dos primeiros a usar máquina eletrônica e um dos primeiríssimos a usar computador para escrever, no tempo em que ter mais de 200 kilobytes na memória transformava o sujeito num nababo (eu tinha um pouco menos, mas botava banca do mesmo jeito e perdi a conta das comitivas que me visitavam em Itaparica, para contemplar meu deslumbrante monitor de fósforo verde e minha impressora Emília, rápida como um gavião meio chumbado).
Mas manda a honestidade que confesse que estou ficando tecnófobo. Gostaria de que alguma coisa em informática durasse mais que uma semana, para dar tempo de aprender. Mas isso nunca acontece, é um inferno. Não agüento mais. Zé Rubem Fonseca apareceu aqui em casa e ficou constrangido diante de meu equipamento, dirigindo-me ironias maldosas.
— Por que você não faz isso e aquilo? — pergunta ele, já em código informático, para me humilhar.
— Fazer o quê? Eu...
— Ah, não, desculpe, desculpe. Sua máquina não comporta isso. Tinha que ter uma placa... Desculpe, desculpe. Essa sua máquina é do começo da década, não é? Naquele tempo...
— Como, "naquele tempo"? Este computador é de 95.
— Duas décadas, então. Você sabe, quando a gente fala em termos de informática, o conceito de década, aliás, a própria concepção do tempo... Mas eu não vou falar sobre isso, eu leio seus livros e sua noção de tempo... Deixa pra lá, deixa pra lá.
— Você quer me dizer que meu computador é obsoleto?
— Não, não. Cenozóico. Ainda dá para dizer que ele pertence à era cenozóica. Do comecinho, mas pertence.
Ferido mais vez em meus brios, solicitei à Nova Fronteira, sacrificada editora que publica meus livros, que me conseguisse um lapetope dez vezes melhor do que o que Zé Rubem ostenta acintosamente às visitas (só não a mim, para não humilhar um amigo, diz ele). Chegou o lapetope, todo belo, todo cheio de programas ótimos, Pentium não sei das quantas e todos os penduricalhos que um general russo usa em solenidades. Telefonei imediatamente para o Zé Rubem.
— Olha aqui — falei triunfantemente. — Estou com um lapetope Pentium, cheio de bossas. Agora eu quero ver o que você vai me dizer.
Senti um sobressalto do outro lado, marcado por uma pausa pejada de apreensão. Mas Zé Rubem não dá moleza para ninguém.
— Me diga uma coisa, ele é MXX-P-79H4, com drive de CD-ROM de mais de 12 velocidades?
— Não — respondi, lendo para ele as especificações de meu aparelho.
— Ah, então é bonzinho, parabéns, para você está muito bom. Está só uns três ou quatro meses atrás do meu. O meu...
Desliguei indignado. E mais indignado fiquei, ao descobrir que o meu sacripanta não só não tinha nenhum XX depois do nome do chip, como o programa principal é Windows 96, do qual não compreendo bulhufas, nem creio que jamais vá compreender. E a única coisa que ele sabe me comunicar é que eu não estou fazendo nada direito. Se alguém achar os destroços de um lapetope aqui numa rua do Leblon, dê-lhe um funeral digno, coisa que não serei capaz de fazer, depois de jogá-lo janela afora, como tenho vontade, neste exato momento. Mas jogo primeiro minha secretária eletrônica, que já me arrumou mais inimigos do que Saddam Hussein? Daria meu endereço do e-mail, para receber sugestões, mas até agora o lapetope só me diz que não pode dar o endereço. Um dia, os humildes se revoltam, vocês vão ver.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 10/01/1998.