Meus cachorros de todo dia

(João Ubaldo Ribeiro)

A população cachorral daqui do Leblon é das mais ricas que conheço. Às vezes, como resultado de uma pisada incauta, me acontece praguejar contra algum anônimo que descomeu justamente onde estou aterrissando o pé, mas a raiva é contra o dono, nunca contra o cachorro. Há algumas pessoas, geralmente, não sei por que, senhores sisudos de bermudas, meias brancas e boné, que saem com seus cachorros e um jornal velho (ah, esta duradoura glória jornalística, eu escrevo hoje isto e amanhã enrolo aquilo) vincado debaixo do sovaco, o qual desdobram agilmente debaixo do cachorro, na hora em que este começa a dar os frenéticos sinais de que é ali que pretende aliviar-se. Geralmente, é bem na entrada de um prédio de luxo, sob as vistas não muito amistosas do porteiro, mas quem leva o jornal não se aperta: espera a conclusão da operação, embrulha com destreza o seu conteúdo e, triunfante, deixa cair o pacote na lata de lixo mais próxima.

Esse, contudo, é, lamentavelmente, um comportamento minoritário, pois a triste verdade é que a maior parte dos passeadores de cachorro não tem essa preocupação e quem me vê passando cabisbaixo pelas calçadas do Leblon pode pensar que estou triste (às vezes estou mesmo, principalmente depois de ler as notícias do dia), mas, na maioria dos casos, trata-se de uma preocupação elementar para o usuário contumaz das legítimas havaianas — as armadilhas estão em toda parte. Não se diga, porém, que, no famoso mundo civilizado, isto não acontece. Em Nova York, cachorro sem assistência sanitária rende multa ao dono, mas em Berlim, por exemplo, onde há lugares públicos em que cachorros são bem-vindos, mas crianças não (disse W.C. Fields que um homem que detesta cachorros e crianças não pode ser de todo mau; mas esta é uma questão filosófica, que caberia num ensaio sério e não aqui), o perigo da pisada fatal é muito maior, constituindo pequeno alívio saber que só pode usar sapatos ou botas, em vez das sandálias de dedo, a não ser que se queira correr o risco de perder os artelhos, como quem vê quebrar-se um picolé.

Mesmo entre uma praga e outra, que se estão tornando cada vez mais raras, eis que a prática conduz à perfeição, pois, entre todos os numerosos andadores do Baixo Leblon, poucos podem comparar-se a mim, em matéria de evitar poças, bueiros abertos, buracos tombados pelo Patrimônio Histórico e totoca de cachorro (tratando-se de cachorro, só pode ser totoca, titica é no máximo de galinha ou coelho), tenho diversas amizades com cachorros aqui do bairro, a começar pela velha Laurita (devia dizer, dona Laurita, em respeito pela sua idade). Não sei se o nome dela é Laurita, mas ela tem toda a pinta de Laurita, talvez, no máximo, Mafalda.

Dona Laurita é uma dachshund (raça que aqui se costuma chamar de bassê) idosíssima, que talvez esteja com a doença de Alzheimer, porque às vezes me cumprimenta, embora sempre com certo ar de enfado, e outras vezes me ignora. Ou serão coisas de velha caturra, nunca se sabe. Dona Laurita, além de velha, deve ter passado a vida inteira junto à mesa do almoço e do jantar de seus donos, pedindo e recebendo comida, estando na cara que se entupiu de rabanadas no Natal passado. Receio também que esteja com alguns problemas coronarianos e talvez diabetes. A passeadora dela deve ser devota de São Francisco de Assis, porque ela anda no máximo quatro passos de cada vez, parando entediada, enquanto cheira sem muito interesse um arbusto, certamente ponderando se, a esta altura da vida, vale a pena fazer xixi, o que, aliás, compreendo perfeitamente. São raras as manhãs em que não a vejo e resista à tentação de pedir-lhe que escreva umas duas crônicas por mim, certamente muito cheias de experiência e mais inteligência, o que beneficiaria a nós todos.

Há o pequinês da Ataulfo de Paiva, também entrado em anos, cujo dono não tem muita paciência e, não sei qual a razão, fala com ele em inglês. No começo, pensei que era um refugiado de um campo de reeducação chinês, pois chinês aprecia comer um bom cachorrinho capitalista e não há nenhum de nós que tenha freqüentado um restaurante chinês e possa jurar que nunca comeu cachorro com molho agridoce, achando o patinho com amêndoas ótimo (sim, você sabia? Pequinês é também uma espécie de pato e, portanto, aqueles cardápios numerados não estão, em rigor, mentindo, mas apenas falando, digamos, a mesma linguagem que o governo. Bip-bip). Mas não, porque o dono não só tem cara de nova-iorquino, como fala e se comporta como um habitante de Manhattan. "Get goin', you sonofabitch", resmunga ele, um tanto pleonasticamente, quando o pobre oriental resolve passar mais de dois segundos cheirando alguma coisa.

E há também uma profusão de poodles brancos, todos se achando são-bernardos e tentando agredir quem quer que seja, acreditando que vão resistir ao pontapé de um antipoodliano radical qualquer. Alguns são amigos e, assessorados pelas donas (raramente o passeador é homem, no offense), batem papo vários minutos, cheirando-se de uma forma que me faz agradecer muito a Deus por não ter nascido cachorro. "Não me diga — sniff, sniff —, você comeu patê ontem, hem?" "Ah, é? E você andou transando com a beagle do 304, foi ou não foi? Mnnmm, mnnnmm..."

Não há espaço — e, suspeito eu, paciência de sua parte — para falar mais da cachorrada da vizinhança, exceto por uma palavrinha final. Já vi dois rottweilers ameaçando gente na praia, pinschers miniatura que, por parentesco, se consideram dobermanns, ameaçando as canelas de passantes, e um cocker spaniel, repetidas vezes, cheirar minha perna e tentar fazer dela o uso para o qual a natureza e o homem lhe deram árvores, postes e hidrantes. Sim, sou amigo dos cães, sou amigo até dos pombos, de tanto esbregue que levei por falar mal deles. Mas tem de haver limites para tudo, inclusive para os pensamentos caluniosos de uma jovem senhora que de vez em quando passa por mim, acompanhada por um buldogue de extraordinário charme, cujo nome resolvi que é Bóris. Ela pensa que a paquero e soergue o nariz apropriadamente. Mas, para alívio ou desencanto dela, quem me interessa é o Bóris, que venho planejando seqüestrar. Depois eu penso na senhora, que, com perdão da rima, também não é de se jogar fora. Mas, como talvez dissesse Bernard Shaw, antes um bom buldogue. Uma mulher é uma mulher, declarou Kipling certa feita, mas um bom charuto é um bom charuto.