— Álcool ou droga? — perguntou a moça, com naturalidade.
— Álcool — respondi, também com naturalidade.
Sim, claro que o Prata me havia metido num filme de Fellini, melhor relaxar. O Prata me havia telefonado fazia uns dois ou três dias. Eu deveria seguir para São Paulo, onde ele mora, dormir na casa de Escritor (outro escritor de São Paulo que também faz o tratamento, mas cujo nome não vou mencionar, porque não consegui consultá-lo sobre o assunto) e, no dia seguinte, partir na companhia dele, Prata, para uma cidade do interior de São Paulo, onde se faz um tratamento para alcoolismo e drogas.
— Mas eu não uso droga.
— Usa álcool
— Bem... uso, mas não estou tão ruim assim, o pessoal exagera.
— Está. Eu vi você na tevê e estava todo inchado e moleirão, claro que está. Já bebe de manhã cedo?
— Bom, assim ocasionalmente...
— Todo dia, reconheça.
— É, ultimamente talvez, é, é.
— Já começou a dar desculpas para sair de casa e beber?
— Já, já. De manhã, é para comprar os jornais, de noite para ir buscar o pão. Aí aproveito, passo no Tio Sam e dou uma talagadinha. Mas é só uma talagadinha.
— Meu Deus do céu, já começou a usar o símbolo do dever básico do pai de família, que é levar o pão para casa, como desculpa para encher a cara? Bebe de madrugada, que eu conheço você e sei que é maluco, acorda às 4 da manhã e já está comprando jornal às 5 e diz que não está mal? Você pode dizer qualquer coisa de mim, menos que eu não entendo de birita, todo mundo sabe que eu entendo de birita, você está mal!
— Pode ser, mas nunca bebi antes das 5.
— Chega de cinismo. Esperamos você amanhã, Escritor já preparou o quarto de hóspedes.
De fato, Escritor e sua mulher, gentilíssimos, estavam prontos para me receber. O Prata chegou, em grande animação.
— Escritor já está com uma garrafa de uísque aí, para você tomar a saideira das saideiras. Só pode beber até as 11, porque, às 11 da manhã, nós já estaremos na clínica e tem que haver um intervalo de pelo menos 12 horas entre a última ingestão de álcool e a injeção que é a base do tratamento.
— Vá em frente — disse Escritor, botando diante de mim uma garrafa de escocês e um copo com gelo.
Servi-me meio trêmulo e me sentindo o próprio farrapo humano, enquanto os dois, sorridentes e louçãos, se acomodavam em poltronas a meu lado, cada qual com seu drinque, como convém a reuniões sociais. O Prata bebericando um suquinho de tomate e Escritor se deliciando com uma cerveja sem álcool. Por alguma razão, não bebi muito, talvez porque estivesse meio sem graça mesmo, me achando cercado por visitantes de um zoológico. Jantamos fidalgamente, fui dormir e agora me encontro aqui, no filme de Fellini, diante da moça da recepção, respondendo a uma pergunta que nunca me ocorreria um dia me ser feita.
Éramos na verdade dois álcoois e um álcool com droga, que chamarei de M., amigo do Prata, muito simpático e de boa convivência, que resolvera pegar carona conosco. O Prata já era veterano, vinha para a segunda injeção de uma série de três, parecia estar em casa. Álcool somente é R$ 150, explicou; álcool com droga é R$ 190. Esperamos um pouco, enquanto nossa ficha era preenchida e mandada lá para cima e finalmente fomos autorizados a subir. A clínica, informatizada e com moças simpáticas em uniformes impecáveis, deixa subitamente de parecer um subposto do INSS, como lá embaixo, com aquela pinta de garagem e aquele banco triste, ao longo de uma parede. Vamos ao caixa, Prata é vivazmente cumprimentado por todos, pagamos e somos encaminhados à sala de espera.
— Aquele ali é um 190, pode crer — me cochichou M., mostrando um rapaz de olhos esbugalhados, que mais ou menos se contorcia numa cadeira em frente.
Podes crer. Claro que era um típico 190, birita com cocaína ou anfetamina. Em novos cochichos, desta vez com companheiros de espera, descobrimos que ele já tomara a injeção e ela batera na fraqueza. Certamente — e seus olhos confirmavam isso — porque não respeitara o prazo de 12 horas e estava ali de barriga vazia, viradão e trincadão, curva glicêmica lá embaixo. Tanto assim que, continuavam a informar os cochichos, o médico aconselhara que ele comesse. Devia ser verdade, porque logo o pai dele apareceu com dois hambúrgueres, que ele passou a devorar como um tiranossauro e uma lata de refrigerante.
O pai era comunicativo e do tipo peripatético, porque, assim que entregou os hambúrgueres e a latinha, passou a andar pela sala, dirigindo-se aos presentes.
— Sabem o que é isso? — dizia ele, aparentemente alegre e despreocupado. — Cocaína, co-ca-í-na! Vive cheirando (e o nosso 190, que tem 20 anos desse passatempo nas costas, se encolheu um pouco), não adianta a gente falar: não cheire, miserável! Ele vai lá e, spluft-spluft, mete aquela desgraça pelo juízo adentro. É nisso que dá! Quem é 190 aqui sabe o que é isso, isso mata. Tem algum outro 190 aqui?
— Eu sou 190 — disse um jovem senhor de rabo-de-cavalo e trajes meio metaleiros. — Estou aqui para minha terceira injeção e já deixei. Pode ficar tranqüilo, que ele também vai deixar.
— E sem vergonha na cara o sujeito consegue?
— Bem.
— Consegue nada! Tem que ter vergonha na cara! Olhe ele aí, a gente só "não cheire, não cheire" e ele vapt-vupt, eu não sei mais o que faço!
E o pai continuou seu discurso, enquanto esperávamos ser chamados. Olhei em redor, mistura de gente mais louca não podia haver, gente de todo tipo de extração, inclusive dois escritores 150. Suspirei e me lembrei de como já me convencera, havia muito tempo, de que não adianta planejar a vida, porque ela acaba sempre fazendo o que quer conosco. É isso mesmo, existem coisas piores do que ser personagem de Fellini, vamos aguardar esse atendimento.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 07/03/1998.