Estou novamente passando vergonha. Encontro-me num quarto de hotel em Paris, usando pela primeira vez um lapetope moderníssimo, que me foi emprestado pelo generoso editor de meus livros, dr. Carlos Augusto Lacerda. Entendo muito pouco do que está se passando entre mim e a máquina, que parece não simpatizar muito comigo e me dirige sons e sinais amedrontadores, de forma que — perdão, leitores — não sei nem mesmo o tamanho que terá esta peça, depois de concluída. Alinhavar minhas parcas idéias é ainda mais difícil, já que sou do tipo que tem dificuldade em andar em linha reta e mascar chiclete ao mesmo tempo.
Mas, vejamos. Que faço aqui? Estou, segundo estimativas de boas fontes, na companhia de outros 44 escritores brasileiros, tentando elevar bem alto o nome do Brasil, no Salon du Livre, que este ano é dedicado a nós. Trata-se de uma dose elefantina de escritores, mesmo se tratando de Paris, mas creio que ela, já de muito calejada desde que se chamava Lutécia e era atanazada pelos romanos, está acostumada a duros embates deste tipo. E de que nos ocupamos? Fazemos palestras, mesas-redondas, leituras e outras coisas altamente intelectuais. Não sei que impressão estamos dando aos franceses, mas a imprensa vem sendo muito atenciosa, de forma que vocês podem ficar tranqüilos, eis que a Europa mais uma vez se curva ante o Brasil.
Muito francesmente, instalaram-nos no venerável Hotel Bedford, hoje reformado, mas idoso o suficiente para haver hospedado D. Pedro II em seu triste exílio, após a Proclamação da República. Aqui mesmo ele morreu, como gentilmente nos lembrou uma cartinha circular da direção do hotel, há mais de cem anos, no longínquo 1891. Preocupado com a possibilidade de encontrar o desgostoso fantasma de sua majestade (não tanto por medo ou antipatia, que não os tenho dele, mas por receio de que procurasse entreter-me com alguns de seus famosos dodecassílabos), procurei saber se por acaso seu trespasse se tinha dado em meu apartamento, ao terceiro andar. Não, tranqüilizaram-me. Ele se foi no segundo andar e, de qualquer forma, o aposento que ocupava não mais existe, levado pela reforma. Talvez dê de cara com ele num corredor, ocasião em que lhe prestarei as devidas homenagens, em meu nome e no de vocês.
Acabo de ouvir uns estalidos estranhos, aqui no quarto. Desejará por acaso sua majestade (novos estalidos, isto já está saindo dos limites) comunicar-se, quiçá repreender, este seu humilde compatriota plebeu? Outro estalido, juro a vocês. Mais outros. Alguém aí conhece algum bom médium em Paris? Bem, de qualquer maneira pode não ser sua majestade, pode ser o mestre Heitor Villa-Lobos, o qual, segundo também nos informa a direção do estabelecimento, costumava hospedar-se aqui. Talvez esteja querendo filar um dos charutinhos Montecristo que me deram de presente, talvez queira me ensinar alguma das potocas que, conforme narra a lenda, ele contava em Paris, a respeito do Brasil. Se temos crocodilos, minha senhora? Mais naturellement, crocodilos de mais de 15 metros, ferocíssimos! Se comemos gente? Claro que comemos gente, eu mesmo comi diversas vezes, em minhas estadas na Amazônia. E assim por diante, mas não entendo bem a linguagem dos estalidos (que, por sinal, agora pararam), de forma que vou aguardar alguma nova comunicação do mestre.
De resto, Paris continua esplendorosamente linda. Verdade, verdade. O Salão do Livro é um espanto, com a quantidade de gente que se acotovela para ver livros e autores. Entrar no Louvre é só para quem tem experiência de filas de banco no Rio de Janeiro. Entrar no Museu d'Orsay é maratona menor, mas, assim mesmo, tem de ter preparo físico e disposição. E, para quem quer comer, o de sempre, ou seja, um deslumbramento a cada restaurante ou bistrô. E, novidade das novidades, pelo menos para mim: nunca fui tão bem tratado em Paris, por garçons, balconistas, motoristas de táxi e afins. Os franceses não querem que o resto do mundo acabe, afinal, impressão que já tive anteriormente. Pode-se até — pasmem, senhoras e senhores! — falar inglês e beber Coca-Cola, sem perigo de linchamento ou expulsão do país.
Para finalizar, um toque de orgulho nacional. Vivem, para grande vergonha nossa, assaltando turistas no Brasil e até pirateando o bondinho do Corcovado. Muniz Sodré, orgulho da cultura nacional que integra nossa delegação, estava numa escada rolante do metrô, quando alguém deixou cair os óculos à sua frente. Sem querer pisar nos óculos ele se deteve, houve uma certa atrapalhação no movimento. Foi o tempo suficiente para que lhe levassem a carteira. Estão vendo vocês? Nem lá nem cá se pode facilitar. Só falta agora alguém dizer que os batedores de carteira franceses são melhores do que os batedores de carteira brasileiros. É a velha fracassomania, assim é que não se vai para frente.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 28/03/1998.