Às vezes me perguntam como é que eu fui deixar aquele paraíso que é Itaparica, para vir morar na cidade grande, com toda a estricção (esta foi de propósito; deixe de ser preguiçosa(o) e vá pegar o dicionário, é um excelente exercício para um domingo sedentário) que ela traz, insegurança, violência, agitação. Nem sei direito as razões, embora possa fingir que saiba algumas, mas tudo talvez se resuma a que you can't go home again, título de um livro de Thomas Wolfe — Não se pode voltar para casa, mais ou menos. Nem mesmo a Salvador, por culpa minha e não dela, posso voltar. Tanto tempo de ausência me tirou a intimidade, fico querendo chamar ruas e bairros pelos nomes antigos, fico indignado porque a Rua Chile acabou, quero ver Marta Rocha linda, num bonde antigo (como de fato vi pela primeira vez e fiquei até hoje perdidamente apaixonado, vocês não podem imaginar visão mais bela), implico com todas as mudanças, me torno, enfim, um velho caturra insuportável. Aí me entoco no Leblon, de onde detesto sair e só saio mesmo quando me obrigam e me dão carona. O Baixo Leblon, aliás, porque o Alto eu já considero subúrbio, embora não alimente preconceitos contra seus moradores, tenho vários amigos que moram no Alto, são filhos de Deus também.
Isto não impede, é claro, que eu sinta saudades de Salvador e, mais notadamente, de minha terra, a velha ilha. Nesta presente manhã, por exemplo, gostaria de estar batendo um papo com meu amigo Toinho Sabacu, homem de grande senso de humor e retidão de caráter, sempre, se solicitado, pronto a dar uma opinião judiciosa e sábia. Tenho saudades de Bertinho Borba, da saldanhada toda, de Ary de Maninha, de Pimentinha, de Espanha, de Cremilda, de professora Madalena, de Lúcia de Didi, de Bertinho Maluco (ói seus palavrões, seu Bertinho), de Baé, dos peixeiros do mercado, de Dái, de Margarida, de Dalva, de Dida e Renó quer dizer, de todo mundo, inclusive as centenas que não citei, beijos para todos, antes que a melancolia me ataque.
Mas tenho saudades principalmente dos meus filósofos, uns já partidos e outros, graças a Deus, vivos e vigorosos, como Benebê. Benebê é um coroa bonitão, mulato claro, corpo de jovem, assim meio lembrando um Caymmi magro e alto. Benebê é meio socrático, chegado a uma maiêutica (dicionário outra vez, a não ser que você seja o Rouanet, hoje eu estou impossível). De vez em quando, toma uns pilequinhos discretíssimos, ocasião em que fica de uma gentileza mais que fidalga. Não esqueço o dia em que, no bar de Espanha, ele extraiu de um cinegrafista alemão, comigo servindo de intérprete, confissões sexuais horripilantes, tudo para provar, com carradas de razão, que devassos não são os lindos brasileiros, devassos são os gringos branquicelos, que, além de tudo, não tomam banho.
Mas, de modo geral, a filosofia de Benebê tem caráter gnômico (dicionário outra vez: mexa essa poupança, vamos, é um, é dois, é três — já) não deixa de aproveitar e preservar alguns excelentes provérbios e ditos. Não posso esquecer sua resposta aos que invejam a prosperidade alheia: "Tatu tá gordo, a unha é que sabe!" Profundíssima verdade, em qualquer sentido em que a metáfora seja interpretada. Menção igual merecem suas palavras docemente impacientes a alguém que está enchendo o saco: "Meu filho, não aporrinhe o juízo dos outros, vá procurar quem estragou sua mocidade." Acho isso belíssimo e cabe observar que Benebê nunca leu Freud e deve considerar a psicanálise uma atividade indecente e se, por exemplo, alguém fala em sexo oral na presença dele, ele cospe e se retira do ambiente, é um homem sério.
A cosmovisão de Benebê é também muito instigante. Nesse ponto, creio que se aproxima um pouco do Anaximandro (enciclopédia, enciclopédia, também pesa pra burro, mens sana in corpore sano!), na medida em que enxerga equilíbrio na ação de forças ou princípios opostos. Repitamos suas próprias palavras, em puro sotaque reconcavense: "O mundo é pefetcho." O mundo é perfeito. Como de fato, é, demonstra ele, está tudo certo, errado é quem acha que pode consertar. O sujeito não acerta nem a fazer uma tabela de campeonato direito e quer dar palpite em como o mundo e a natureza deviam ser, é muita pretensão. O mundo é pefetcho. Já pensou se fosse como cada um quisesse, ou um só quisesse, ou alguns poucos quisessem? E se todos quisessem seria absolutamente impossível. Ergo, o mundo é pefetcho.
Pensei que faria apenas uma destas crônicas a respeito dos meus filósofos. Mas como deixar de lembrar Luiz Cuiúba, tão prematuramente falecido e sempre com lugar garantido em meu coração? E, pecado dos pecados, meu primo, também finado, Walter Ubaldo, fundador da outrora vicejante Escola Filosófica do Sorriso de Desdém? Esquecer, outrossim (é a primeira vez em que eu uso esta palavra; faz anos que jurei que não morreria sem usá-la, espero estar vivo na próxima semana), a contribuição daquele que, por motivos que vocês depois entenderão, chamarei apenas de A.? Não, não, jamais. Não percam, pois, no domingo que vem, a continuação desta crônica edificante. Aprender é viver, prestigiem o escritor, que é assim que ele descola o leite das crianças.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 12/07/1998.