Na semana passada, se é que vocês se lembram, falava eu dos filósofos itaparicanos e manda o dever que recomece pelo meu pranteadíssimo amigo Luiz Cuiúba. Ele é autor, como vocês quatro ou cinco talvez saibam, do exemplar axioma "pior seria, se pior fosse". Conhecem vocês pensamento mais profundo e mais consolador, sabem vocês de síntese mais percuciente sobre a angustiante condição humana? Pior seria, se pior fosse — digam isso sempre que as coisas não derem certo, pronto.
E o resto escrevo porque escrevo depois de ver o jogo em que o Brasil tomou três a zero contra a França. Pior seria, se pior fosse. Pior seria se, num dos países mais ricos do mundo, talvez o mais rico que Deus fez e os homens tomaram, jogassem umas 40 bombas de hidrogênio em cima da gente. Saí de casa de madrugada, como sempre, para comprar os jornais. Não li os jornais ainda, sei que estão cheios de besteiras como estas que escrevo. Não, não estão cheios de besteiras como estas que escrevo. Estão, tenho certeza, de besteiras ainda piores, para as quais contribuirei nas linhas seguintes, porque o que eu sinto é o seguinte.
O seguinte é o que sinto, passando pelos meus compatriotas e pelo português da padaria e pela gari que, mesmo debaixo de chuva e de tristeza, cumpria sua sina de trabalhadora e queria apenas, apesar de tão maltratada pelo florão da América, ganhar a última Copa do século. Olhei minha compatriota, tão mais valiosa do que eu, vi sua cara triste e quis lhe dar um abraço, que só não dei por medo de ser mal interpretado. Medo besta, porque sei que não sou americano e ela não ia me acusar, justa ou injustamente, de assédio sexual. Agora mesmo, desci à rua, para ver se ela ainda estava lá, debaixo d'água e tripulando sua brava vassoura. Brava vassoura, que insiste em limpar um país tão imundado pela elite que nunca gostou de nós e agora nos nega o — enganoso, sim — triunfo de sermos pentacampeões de futebol. Enganoso, mas precioso, queríamos gritar de orgulho, no domingo que passou, mesmo os poucos de nós que não gostam de futebol.
Tenho um louro aqui em casa. Animal doméstico, amigo da família, assistiu, vestido de verde e amarelo, a todos os jogos da Copa, torcendo aos gritos, como toda a família. Confesso que tenho um louro, sou, portanto, criminoso, sujeito sem fiança arriscado a ficar cinco anos na cadeia. Me botem na cadeia. Não botem na cadeia os que sempre desprezaram a terra em que nasceram, os que roubam, furtam, escamoteiam e se aproveitam escrotamente da riqueza que milhões dão a milhares. Me botem na cadeia, porque eu tenho em casa um papagaio, salvo por mim da morte, na Cobal do Leblon.
Aliás, não me botem na cadeia. Botem na cadeia quem roubou a minha gari da alegria de sacudir a camisa diante do mundo. Botem na cadeia quem chutou para fora a nossa glória maior. Sim, sim, futebol, bem sei, é apenas futebol. Mas é apenas futebol o que enlouquece o único país genuinamente miscigenado do mundo, em que temos orgulho de ser a desmoralização dessa burrice que é a noção de raça, em que orgulhosamente temos de nigerianos a finlandeses, de japoneses a árabes, de tudo a tudo, e agora nos tiram ignominiosamente o futebol.
Escrevo, meus queridos compatriotas, na manhã da segunda posterior ao domingo da desgraça. Nem perdemos para a Croácia ou para os Camarões, perdemos para um país cuja excelência não pode ser contestada, mas cuja arrogância já sentiram todos os que por lá passaram, a não ser os portadores de cartões de crédito poderosos. Perdemos.
Sei que vou receber cartas odientas, mas Zagallo é burro, Zico é pé-frio, Ronaldinho é um chute (que não deu), Cafu é ruim, Roberto Carlos joga pras negas dele, Denilson só engana a senhora mãe dele, Rivaldo joga para o senhor pai dele, Júnior, Bebeto e Aldair são baianos, mas não merecem, César Sampaio vai acabar a carreira no Clube de Regatas de Birigüi, Edmundo mostrou o beicinho à Nação, Dunga provou que é Dunga, Leonardo necessita de urgente internação, Taffarel fez o pouco que pôde, todo mundo enganou a Pátria. Sei, sei, tudo isso estará esquecido neste domingo. Nós merecemos, eu também mereci. Amanhã, o bandido sou eu? Sou, mas somente se vocês não saíram nesta segunda-feira de manhã.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 19/07/1998.