Ainda meus filósofos

(João Ubaldo Ribeiro)

Minha intenção, na semana passada, era concluir um despretensioso escorço da filosofia itaparicana contemporânea, através do exame, ainda que perfunctório, do pensamento de alguns de seus mais notáveis expoentes. Mas a cabeça esquentou com o desempenho das forças canarinhas na França e acabei escrevendo uma verdadeira filípica (isso mesmo, filípica; tenho autorização do jornal para continuar pernóstico por mais três semanas; apresentei atestados médicos, é uma doença reconhecida, que dá muito em baianos, paulistas e gaúchos) contra a seleção. Desatinos patriótico-futebolísticos. Não retiro uma só palavra, a não ser, é claro, se persuadido por um torcedor maior do que eu.

Mas não pretendo privar os leitores de tão instrutiva, ou, como se diz hodiernamente, instigante experiência. Já citei aqui, mas nunca é demais, o "pior seria, se pior fosse", cerne da filosofia cuiubana, que deixou perplexo o próprio professor, filósofo e meu ilustre amigo Romélio de Aquino. Na visita à ilha com que este nos honrou, tive a oportunidade de apresentá-lo a Cuiúba. E o privilégio de assistir a um debate sem precedentes, do qual não entendi praticamente nada, mas me sobrou a impressão de que o professor Romélio ficou consideravelmente abalado. Cuiúba aplicou a técnica dialética do "e daí?" Heidegger foi demolido com quatro e-daís, Hegel com seis, Marx com três, foi uma verdadeira devastação.

— Mas, Cuiúba, eu não posso discutir com você assim! — queixou-se finalmente o professor.

— E daí? — disse Cuiúba.

Passo, finalmente, à Grã-Escola Filosófica do Sorriso do Desdém, capitaneada pelo meu primo Walter Ubaldo (o nome não é de família, mas é porque todos os prenomes em minha família ou têm Ubaldo ou têm Manuel). Mantinha como obras basilares O Príncipe, de Maquiavel, e Palavras Cínicas, o nome de cujo autor esqueci. Havia também textos auxiliares, como os de Pittigrilli e Vargas Villa. A ascese do mestre consistia em copiar, em sua bem trabalhada caligrafia, todos os cinco ou seis grossos volumes do dicionário Caldas Aulete. Juro a vocês, está aí Ary de Almiro, que pertencia à escola e não me deixa mentir. Qual o propósito de tão esforçada empresa não sei esclarecer, mas é certíssimo que exerceu grande influência no vocabulário do mestre, até quando ele xingava, o que, aliás, era bastante freqüente.

— Apostrofá-lo-ei com doestos e vitupérios candentes! — bradava ele e não havia alma temente a Deus que não estremecesse, ante palavras tão poderosas quão misteriosas.

A prática da escola consistia na utilização generalizada do sorriso de desdém. Vocês podem experimentar no espelho. Entortem as comissuras, mostrem uma par de dentes, soltem um pouco de ar pelo nariz e aí está, com um pouco mais de treino, um sorriso de desdém. Lembro-me das palavras dele: "Mais forte que a arma do soldado, mais poderoso que a pena do escritor, mais contundente que a palavra do orador, é o sorriso de desdém."

— O sorriso de desdém — urrava ele, para seus discípulos mesmerizados.

— A maior arma que o homem tem!

No auge do sucesso da escola, a gente já estava acostumada, mas os visitantes estranhavam um pouco aquele pessoal circulando de boca torta e meneios de cabeça intrigantes. Até a mim, primo estimado, Walter aplicou uns dois sorrisos de desdém. E tudo corria bem, até a fatídica noite em que os filósofos do desdém foram tomar umas cervejas no antigo bar de Waldemar, hoje de Espanha. Cerveja pra lá, cerveja pra cá, prédicas pra cá, cerveja pra lá — chegou a hora de fechar o bar. Waldemar entregou a conta a Walter. Recebeu um sorriso de desdém de derrubar qualquer um. A mesma coisa com todos, sorriso de desdém por tudo quanto é canto, em vez do dinheiro da despesa. Waldemar, que se interessava muito pouco por filosofia, ficou bastante agastado com aquele comportamento e foi se queixar ao coronel Ubaldo — avô de Walter e meu. O coronel, que não era conhecido por sua munificência, pagou a dívida, mas espinafrou a escola, proibiu suas atividades e, em mais um exemplo da incompreensão que costuma perseguir os filósofos, interditou as instalações acadêmicas e — calamidade das calamidades — confiscou o Caldas Aulete, negando, assim, à Humanidade aquilo que poderia vir a ser uma verdadeira revolução no pensamento ocidental. Se bem que, quando vejo certas autoridades governamentais falando ao povo na tevê, tenho a impressão de que o pensamento de Walter Ubaldo ainda vive.

Para encerrar, transmito-lhes o segredo daquele que chamarei de A., para não prejudicar suas atividades, que continuam florescentes. A. é famoso pelo seu sucesso com as mulheres, mulheres de todas as extrações. Com isso, desperta a cupidez e a inveja de seu vasto círculo de amigos. Qual é o segredo? Ele não se furta a revelá-lo, com grande singeleza.

— Eu conto, mas vocês não acreditam — diz ele.

— O segredo é simpres: mulher é igual a homem.

— Como, igual a homem?

— Igual a homem, igual a homem. Tudo o que o homem pensa de safadeza, ela também pensa. O único truque delas é fazer a gente pensar que existe psicologia feminina. Não existe nenhuma psicologia feminina, só existe psicologia-psicologia, é tudo igual, a mesma safadeza que a gente pensa elas também pensam, igualzinho. Mas aí a gente vai na onda delas e dança. Não existe psicologia feminina. Quando aparece um problema, a gente tem de pensar: se eu fosse ela, o que era que eu fazia? Aí vai, faz isso e dá certo. Mulher é igual a homem.

E, com esta última pérola, despeço-me por hoje. Mulher é igual a homem. Vão em frente que dá certo. E, se não der, paciência, perde-se aqui, ganha-se acolá. Pior seria, se pior fosse.