Condenados ao sexo

(João Ubaldo Ribeiro)

Faz algum tempo, o embaixador da Bósnia nas Nações Unidas disse que, no Rio de Janeiro, as pessoas vivem condenadas ao sexo. Não me lembro mais por que ele disse isso, mas certamente tencionava demonstrar que viver na Bósnia é pelo menos tão bom quanto viver no Rio de Janeiro. Tudo bem, Deus fez gostos para tudo neste mundo, inclusive para a Bósnia. E essa imagem é verdadeira, pelo menos em grande parte, atingindo principalmente nossas mulheres. A impressão que eu às vezes tinha era de que eles acham que as brasileiras vão logo tirando a blusa (sutiã, nem pensar, não conhecemos), ao ver um amigo mais chegado ou, hospitaleiramente, qualquer visitante do Primeiro Mundo.

Ah, o Primeiro Mundo. Como somos recalcados em relação ao Primeiro Mundo, como gostamos de encher a boca em relação a algo de bom no Brasil e dizer: "É coisa de Primeiro Muuuundo!" Está certo, eles são mais adiantados e civilizados do que nós, embora à nossa custa desde o século 15. Até as principais comidas deles, sem as quais teriam morrido de fome com o aumento da população, como a batata e o milho (como ração para o gado e as galinhas deles), foram levadas do chamado Novo Mundo. O pouco açúcar que tinham era caríssimo, coisa de aristocrata. É patético ver os italianos agir como se tivessem inventado o tomate, que se originou no México e, durante muito tempo, foi tido como venenoso, por ser parente da beladona (e da batata, por sinal). Até hoje, não sabem direito que é o chamam de pomo de ouro, porque as primeiras variedades que viram eram amarelas.

Enfim, são coisas, todo mundo sabe disso. Aí ficamos com vergonha de tudo, até de nossa língua, tratada a pontapés por todos os lados até em seus recursos especiais, como, por exemplo, o cujo, que agora virou que e acabou-se. Já imaginaram se os assaltos, furtos e roubos havidos durante a Copa da França fossem numa Copa realizada no Rio ou em São Paulo? Rangeríamos os dentes e nos prostraríamos ao solo à vista de qualquer estrangeiro. Os jornais da Europa e dos Estados Unidos fariam extensas reportagens (falar nisso, quando foi a última vez em que mataram seguranças do Congresso aqui? E a bomba no edifício com creche? E crianças fuzilando colegas?) sobre nossa medonha violência mestiça, sobre nossa miséria e assim por diante. Lá, não; lá os assaltos e furtos são coisas normais nas grandes cidades.

Já imaginaram se a novela dos remédios, que começou envolvendo um laboratório estrangeiro, fosse com laboratórios brasileiros instalados na Europa? Já pensaram no tamanho dos processos, principalmente nos Estados Unidos? Seríamos banidos imediatamente do mercado, sofreríamos sanções comerciais e tarifárias de especial severidade e todo brasileiro, durante algum tempo, seria visto como falsificador ou contrabandista de remédios. Bem verdade que estamos no país do xixi com guaraná ou do guaraná tido como xixi, não cheguei a entender bem (em todo caso, vou dar um tempo no consumo de guaraná; tem células epiteliais não sei de quem e piócitos, embora raros), mas esse tipo de coisa ocorre lá também, assim como máfias, corrupção e neonazistas.

E se mantém a ilusão de que a vida cotidiana no Primeiro Mundo é moleza. Não é moleza, a não ser para os ricos, mas, para os ricos, é moleza em qualquer lugar. Para a classe média, a trabalheira é muito maior do que aqui. Alegue-se que aqui a gente dispõe de mão-de-obra barata e ainda se pode ter empregada doméstica. Verdade, mas não estou escrevendo sobre o que deve ser, estou escrevendo sobre o que é. Em Berlim, por exemplo, o apartamento de um professor amigo meu, de boa situação na universidade em que ensina, fica no quinto andar de um edifício sem elevador. O aquecimento é a carvão, de maneira que, durante os longos invernos prussianos, meu amigo é forçado a levar cargas de carvão escada acima e trazer cinza escada abaixo, todos os dias.

O classe média não tem colher de chá nenhuma. Nem ele nem a mulher dele, é claro. Pensem numa vantagenzinha daqui. Alguém para lavar ou limpar o carro? Nunca. Alguém para cortar a grama? Nem pensar. Alguém para consertar um móvel quebrado? Que se mobilize o dono da casa ou então deixe o móvel fora para os lixeiros pegarem, passando a fazer uma ginástica orçamentária a fim de comprar um novo. Criar filho é uma mão-de-obra tão grande que a taxa de nascimento vem decrescendo em praticamente toda a Europa. Mesmo com creches, a trabalheira é ainda enorme, principalmente nos primeiros anos de vida do pimpolho. Há até restaurantes que aceitam o ingresso de cachorros, mas não de crianças pequenas. Além disso, comer em restaurantes também pesa no orçamento e o que se vê de gente almoçando porcaria na rua é um espanto.

Não quero dizer com isso que devemos continuar atrasados e injustos para com a maioria do povo. O que quero é contribuir um pouco para que tenhamos uma visão realista das coisas e não fiquemos babando diante de tudo de fora. Temos muitas qualidades como povo, temos muito do que nos orgulhar, a ponto de gente como eu, apesar de todos os encantos da Bósnia, preferir ficar por aqui mesmo, condenado ao sexo. Condenação, por sinal, que mostra outra deficiência nossa, a qual cabe reconhecer: a morosidade do Poder Judiciário. Até hoje não recebi notificação nenhuma dessa condenação e ainda não fui obrigado a nenhum ato de sexo. E, pecado desta vez sociológico, nenhuma amiga minha ainda me jogou a blusa em sinal de confraternização. Protesto, isto é uma esculhambação, coisa de Primeiro Mundo.